sábado, 14 de dezembro de 2024

Entre o bife à Marrare e o gato de Schrödinger

Talvez o mais célebre bife da gastronomia portuguesa seja o bife à Marrare. Hoje decidi, em rememoração, ir almoçar um bife à Marrare num belo restaurante lisboeta. O normal seria fazer o exercício ao jantar, mas as rememorações nocturnas começam a ser penosas. Podemos imaginar que um bife à Marrare actual é uma repetição daqueles que, no início do século XIX, António Marrare criou num dos seus quatro cafés de Lisboa, todos tão mortos quanto o seu criador. Contudo, mesmo que as receitas usadas sejam as originais, não é de crer numa repetição. Não apenas porque nada se repete neste mundo, mas também porque uma receita culinária é como uma partitura musical. Terá de ser interpretada, e tudo depende da qualidade do maestro e dos músicos que ele dirige. Como na arte, seja a da música ou qualquer uma das outras, a criação sobrevive ao criador. Pode-se pensar que a culinária é uma arte do efémero, que morre no consumo do prato. Contudo, também nisso se pode estabelecer uma analogia com a música. Cada interpretação de uma sonata, de uma sinfonia ou de qualquer outra obra morre no momento da sua execução. Também ela é efémera. Resta a partitura, tal como, na culinária, resta a receita. Podemos pensar que esta analogia entre culinária e música não é extensível a artes como a literatura, a pintura ou a escultura. Isso, porém, reside numa visão fisicalista das obras de arte. O romance ou os poemas inscritos no papel dos livros são também partituras que só vivem na efemeridade da leitura. Se ninguém está neste momento a ler Os Maias, o romance de Eça de Queirós existe num estado idêntico ao do gato de Schrödinger: num estado de superposição, em que está vivo e morto ao mesmo tempo. É apenas a receita culinária que espera um chef – um leitor – que a actualize e a faça viver nesse momento de leitura. O mesmo se passa com as esculturas e as pinturas. São partituras que esperam os seus intérpretes e só nestes têm vida. Toda a arte é efémera. Melhor, toda a arte é uma colecção de efemeridades: aquelas em que um leitor ou espectador as trazem de um limbo onde, repito, são verdadeiros gatos de Schrödinger.

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