Como é sabido – a teoria da literatura não esquece de o referir – há uma descoincidência entre autor e narrador. Apesar destes textos não serem literários ou, no melhor dos casos, serem exemplos de má literatura, também há neles não apenas um desencontro entre autor e narrador, mas um verdadeiro conflito de pontos de vista. Eu, pobre narrador, sou uma criação ficcional de um autor anónimo, o qual não me permite fazer coisas que ele faz. Por exemplo, falar de política. Ora, descobri há pouco uma enorme colecção de artigos do autor sobre esse tema. Crónicas publicadas num jornal regional, de acordo com a sua natureza provinciana, para não dizer paroquial ou mesmo tacanha. Estive a ler textos de 2012 e de 2024. Senti-me recompensado e vingado. Ele envelheceu. Os textos de 2012 eram muito mais vivos e acutilantes do que os actuais. Não foi só o corpo dele que envelheceu, o olhar que perdeu fulgor, mas a sua verve e o modo como expressa as suas extraordinárias – quero dizer, disparatadas – ideias sobre a coisa pública também envelheceram. Falta-lhes a jovialidade e sobra-lhes o cansaço. Enquanto narrador, dava-lhe um conselho. Dir-lhe-ia: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. E quando ele me perguntasse o que deveria fazer hoje, dir-lhe-ia: deixar de escrever para jornais. Isto, porém, é impossível, pois é um autor despótico que nunca se permitirá escutar o que um narrador tem para lhe dizer. Assim, e para vingança, vou deixá-lo patinar no seu envelhecimento, que será também o seu envilecimento, até que os seus escritos não sejam mais do que um longo exercício de decrepitude. A vingança serve-se fria.
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