quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Desordem da natureza

Uma das editoras a que compro livros tem por hábito oferecer-me pequenos contos em livros de dimensões frugais, 15,5 X 10,5 cm, com cerca de vinte páginas. O último que li, de Alphonse Daudet, tem o inusitado título de A Mula do Papa. Inusitado porque se espera que um Papa, ainda por cima de Avignon, se desloque de cavalo e não num ser híbrido, fruto de relações sexuais não previstas na ordem natural do mundo. Que ordem é essa? A de que cavalos se cruzem com éguas e burros com burras. Contudo, num momento de desatenção, a ordem do mundo desordenou-se, e um cavalo enamorou-se de uma burra, ou um burro seduziu, não a burra que lhe fora destinada, mas uma égua. Desse cruzamento ímpio nasceu a tal mula que os acasos do mundo fizeram que se tornasse propriedade de um Santo Padre de nome Bonifácio. Ora, apesar de ser propriedade de um Sumo Pontífice, a mula não seguia os ensinamentos de Cristo, talvez pela sua origem duplamente pecaminosa: concebida no pecado da luxúria, como acontece a grande parte dos seres vivos, e de uma luxúria contra-natura, coisa que, sendo menos rara do que se pensa, ainda assim tem a sua raridade. Não estava disposta, essa criatura pactuada com o demónio, a dar a outra face e, será o pior, não era avara no cultivo do rancor. A isto adicionava uma memória persistente e viva, fruto, aposto, de uma longínqua hibridação em que um elefante terá dado um contributo genético que se veio a manifestar na memória da mula. Um tal Tristet Védène, um dia, pregou-lhe uma partida de mau gosto, uma cabriolice de adolescente. Ela, com todo o peso hereditário, onde se manifestavam os vícios em que a natureza se perde, jurou vingar-se. Esperou sete anos – um número cabalístico que é um princípio hermenêutico para interpretar a narrativa de Daudet – para consumar a vingança através de um extraordinário coice que, por certo, concentrou a força dos antepassados burros, cavalos e, suponho, elefantes. O pobre Tristet sumiu-se da Terra e a mula aplacou a raiva alimentada por sete anos de espera. Ficámos assim a saber que estes produtos híbridos, frutos do desejo desordenado, não são fiáveis, isto é, dignos de fé. O melhor é abstermo-nos de comércio com eles. Já basta o comércio espúrio de onde provêm. É plausível pensar que nunca mais Papa algum teve uma mula por animal de transporte. O cavalo seria mais digno da sua dignidade, apesar de Cristo ter preferido um burro.

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