Os versos de John Donne, No man is an island, / Entire of itself; / Every man is a piece of the continent, / A part of the main, tiveram uma enorme fortuna, apesar de terem sido escritos no século XVII, época em que a afirmação do indivíduo, enquanto singularidade diferenciada do todo, começava a estabelecer-se e a lançar as raízes do individualismo posterior. Imagino, não poucas vezes, que a arte do romance está intimamente ligada a essa tensão entre o indivíduo e a totalidade – o continente, no poema de Donne. Em A Parede, Marlen Haushofer radicaliza essa individualização, mas para encontrar uma comunidade mais funda. A personagem, uma mulher de que nunca se conhecerá o nome, descobre que, de um momento para o outro, ficou separada do mundo humano por uma parede ao mesmo tempo invisível e intransponível. Mais, começa a ter razões para pensar que a espécie humana terá praticamente desaparecido. Esta singularização forçada e radical – imposta não se sabe bem nem porquê, nem como, nem por quem – leva-a a procurar refazer o continente, agora com os animais com que estabeleceu laços no território onde ficou confinada. A protagonista descobre que existe uma rede mais funda do que aquela que se estabelece socialmente com seres da mesma espécie. Para ela, na morte destes seres – do cão, da gata, do vitelo – podem aplicar-se os versos finais do poema de Donne: Any man's death diminishes me, / Because I am involved in mankind. / And therefore never send to know for whom the bell tolls; / It tolls for thee. Ela morre também na morte deles. A radicalidade da narrativa de Marlen Haushofer torna patente a necessidade de comunidade – e de comunhão – sentida pelos humanos. Uma experiência bem diferente é a de Peter Kien no romance Auto-de-Fé, de Elias Canetti. Ele é obsessivamente solitário e intrinsecamente misantropo. É a manifestação de uma crença e modo de ser contrários ao verso de Donne. Kien é uma ilha rodeada por livros. E quando estabelece relação com Therese – primeiro, sua governanta; depois, mulher – o desastre é total. A saída da singularidade e o fazer parte de uma comunidade, tão pequena quanto a de um casal, é a porta aberta para todas as desgraças. O romance moderno, aquele que poderá ter nascido com o D. Quixote, de Cervantes, o Simplicissimus, de Johannes von Grimmelshausen, ou, antes destes, Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, parece ser uma meditação contínua sobre a singularidade de seres que só podem existir mergulhados numa totalidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário