terça-feira, 30 de setembro de 2025

Filhos de ficções

Setembro acaba hoje, embora não exista na natureza nada que seja Setembro ou Outubro. E aquilo que não existe não pode acabar, pois nem sequer chegou a ser. As convenções humanas são expedientes para lidar com o insólito de estarmos vivos, num mundo estranho, cheio de ameaças, mas também de oportunidades. Contudo, estas coisas que não existem na natureza, mas que são fruto de acordos, tornam-se obsidiantes, ocupando o espírito. Tudo isto terá nascido do medo de nos perdermos. Perdermo-nos no tempo e no espaço, as duas grandes condições de possibilidade da vida, mas também a razão de muitos conflitos. Por isso, submetemo-los à pesada geometria das convenções, que vão do calendário ao mapa, onde podemos desenhar o espaço que nos cabe, o que nos é favorável e aquele que devemos evitar. Toda essa geometria é uma ficção, mas é com ela que tecemos a nossa existência. Numa linguagem sem propósito, podemos dizer: do nada tirámos a possibilidade de sermos. Somos filhos de puras ficções.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Experiências

Ontem não saí de casa para caminhar. Chovia. Hoje saí, mas o sol era quente, esquecido já da tristeza de ontem. Estes traços de volubilidade do tempo – melhor, do clima – deixam-me sempre perplexo. Não é por falta de experiência. São décadas e décadas perante estas alterações súbitas com que sou acolhido. Perturba-me a mudança e a inconstância não porque eu seja imutável e constante, mas porque sonho com um quadro onde a vida se desenrole com a suavidade das coisas que não mudam. Sim, eu sei. É um sintoma de velhice, mas o que posso fazer, se essa é a minha condição. Voltando a ontem, um acontecimento inesperado trouxe-me uma experiência a que me desabituara. Ia já o crepúsculo avançado, quando a electricidade faltou nesta zona da cidade. Demorou algum tempo o retorno da energia, o tempo suficiente para ver o adensar das trevas sobre a cidade. Essa, porém, não é a experiência fundamental. O que vi de mais decisivo foi a impossibilidade de ficar a sós com a escuridão, não porque me rodeasse a turbamulta, mas porque a escuridão foi proscrita na nossa cultura. Um clarão vindo de longe, de outras zonas onde a iluminação eléctrica se mantinha viva, invadia o meu espaço. Uma luz irreal, como se viesse de uma procissão de fantasmas de olhos ateados de uma brancura fosca. Depois, tudo voltou ao normal, embora o que cultivamos como a norma – estarmos sempre rodeados de luz – seja uma anormalidade, cujas consequências ainda não percebemos. O Outono finca-se nos pés e progride à procura da fortuna ou do encontro com o Inverno.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Questão de enquadramento

Acabei de lanchar. Frugal, apenas uma dúzia, nem tanto, de avelãs. É preciso anotar estas trivialidades, não porque serão esquecidas, mas porque são a própria vida. Esta é o somatório de gestos sem importância, mas, no seu conjunto, têm a importância de uma vida. O que marca os tempos modernos é a ascensão do trivial. A alegria e a tristeza, a coragem e a cobardia, a beleza e a fealdade, tudo isso faz parte da banalidade, pois deixou de existir o enquadramento onde um gesto se revelava extraordinário. Aquilo que distingue as eras da existência humana é, antes de mais, o enquadramento. É neste que tudo se organiza e é ele que confere sentido. Coube-nos o da trivialidade e, contra isso, nada há a fazer. O nosso enquadramento é também o do excesso. Qualquer gesto que se faça, haverá milhões a repeti-lo. Por isso, é indiferente narrar o lanche ou uma aventura onde se combata contra moinhos de vento ou se mate um dragão. Se eu sair de casa e, numa esquina, matar um dragão, haverá milhões de “eus” a matar dragões, numa esquina, ao saírem de casa. Talvez tudo isto seja falso e a verdade seja mais crua: falta-me o talento para o não trivial e, assim, como avelãs para contar como a aventura a que tive direito, enquanto oiço o Canto Ostinato XXL, de Simeon ten Holt. A peça tem apenas quatro horas e oito minutos, por isso não pode ser considerada XXXL. Já a estou a ouvir há bastante tempo, mas devo ir a meio da aventura. Talvez não estejam, neste momento, milhões a ouvir o Canto Ostinato XXL. Talvez.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Anotações

O Outono chegou – já na segunda-feira –, mas veio tão tranquilo que nem dei pela sua presença. Tenho com ele um tratado de amizade: declarei-o como a estação do ano preferida, e ele gostou da distinção. Também as estações do ano se deixam lisonjear e retribuem como podem. Olho pela janela para ver se as árvores já estão adaptadas ao tempo, mas as que vejo aqui ou são de folha perene ou amarelecem as folhas mais tarde. Imagino que as tílias da avenida já estarão outoniças, mas não me apetece confirmar. Oiço o ruído de uma sirene, a luz da tarde reverbera anémica na brancura do telhado do pavilhão desportivo da escola ao lado. Não está ninguém na praceta nem no parque infantil; talvez na esplanada do café haja por lá alguma alma cansada, mas também não vou verificar. Faço um esforço para identificar o dia da semana; depois, não sei o que fazer com a identificação. Não tenho nada agendado. Um cartão de um restaurante dorme em cima da secretária: vejo o número de telefone, mas apenas por curiosidade; serviu-me para marcar um livro. Talvez o restaurante já não exista. Não quero saber. Olho para as horas no telemóvel e penso que já é tarde. Para quê? Não sei o que responder à pergunta.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Novidade

As minhas netas ofereceram-me os dois grossos volumes com que a Quetzal empacotou os vários tomos – para usar uma expressão de ressonância grega – da Conta-Corrente, de Vergílio Ferreira. Claro que elas não sabem quem foi o Vergílio Ferreira, mas a avó sabe e eu também. No dia 8 de Setembro de 1984, o escritor registou nessa conta-corrente o seguinte: E todavia uma ideia faz-me falta. Mas que é que hei de ainda pensar? Arrumei a vida e assim, quando percorro o caminho que vai dar a uma ideia, vou ter sempre a um lugar conhecido. Tinha ele 68 anos. Fiquei a meditar na experiência, mas a meditação foi interrompida várias vezes com uma experiência recente. Ontem, mas hoje também, sempre que me olhava a um espelho – e, meu Deus, há espelhos por todo o lado – não reconhecia aquela cara que via. Havia ali – o que me desconcertava, e ainda desconcerta – uma novidade. Perguntei se estava diferente, olharam para mim como se estivesse a enlouquecer. Não estou a ficar doido, mas essa é a convicção de todos os que endoidecem. Esta novidade – reputo-a de real – dá-me esperança de que não me aconteça o mesmo que ao Vergílio Ferreira. Se procurar uma ideia, espero que descubra uma desconhecida. Se o meu rosto se pode transformar em qualquer coisa que não conheço, talvez o meu pensamento me possa oferecer uma ideia que também desconheço, mesmo que isso represente um risco, pois essa ideia pode negar todas as que tive até hoje.

domingo, 21 de setembro de 2025

A virtude da perplexidade

Foi Gottfried Leibniz que, pela primeira vez, colocou a questão mais radical que se pode colocar: por que razão existe alguma coisa em vez de nada? Os seres humanos estão de tal modo imersos na existência que, só muito tardiamente, início do século XVIII, lhes terá ocorrido a questão de que, em vez de tudo o que existe, nas suas múltiplas formas de existência, poderia não haver nada. A questão colocada pelo filósofo alemão centra-se, porém, na constatação de uma evidência: existe alguma coisa, aquilo a que chamamos mundo, como globalidade de tudo o que há. A pergunta incide na razão dessa existência. Este é o enigma dos enigmas, aquele perante o qual a razão humana se detém perplexa. Podemos, contudo, supor que essa perplexidade não se deve à natureza enigmática da existência do mundo, mas ao limite da razão humana. Uma razão mais potente poderia apreender a razão que leva à existência do mundo em vez de nada existir. Contudo, a razão que temos é esta e não outra. É uma razão fabricada à medida da perplexidade. E ficar perplexo é a maior virtude que um ser humano pode ostentar. E, como se pode verificar, é uma virtude pouquíssimo cultivada. Poucos são os perplexos. A multidão habita a casa das certezas, sem que a menor perplexidade lhe ilumine a sombria caverna.

sábado, 20 de setembro de 2025

O último refúgio

Graças à ignominiosa inteligência artificial, traduzi do alemão as primeiras seis cartas de Rilke sobre política. Como desconfiava, a maior parte delas tem alusões muito genéricas sobre povos e costumes, que só com muita boa vontade se podem denominar cartas sobre política. Contudo, uma carta a Bodo Wildberg, datada de 7 de Março de 1896, tem um conteúdo efectivamente político. Trata da oposição entre as concepções de Rilke e de um certo Thiel: Thiel desenvolve a sua opinião estritamente germano-patriótica, em oposição ao meu «delírio cosmopolita» [Weltdusel], e parece-me que a história das nossas concepções da vida é a das duas rectas paralelas que se intersectam no infinito! O conflito entre o nacionalismo e uma visão cosmopolítica. Sabemos – embora se esteja em maré de esquecimento, se não mesmo de negação – que a opinião germano-patriótica conduziu a duas guerras mundiais. O mais surpreendente, porém, é a filiação do poeta na perspectiva de um autor tão pouco dado à poesia. O grande pensador cosmopolita é Kant. Hoje vivemos, mais uma vez – talvez como comédia, mas que pode desembocar em tragédia –, a exaltação das opiniões patrióticas e uma caça às bruxas cosmopolitas. Pergunto-me por que razão o resultado haverá de ser diferente daquele que se obteve no século XX. Poder-se-ia dizer que, apesar de pouco inclinados à política, os poetas têm sensibilidade para certos perigos. Seria o caso de Rilke. Estaria, porém, a mentir. Nem é verdade que os poetas sejam pouco inclinados à política – há de tudo –, como muitos deles não deixarão de louvar o espírito patriótico, o barulho das botas cardadas, o fogo dos combates e a dor das mortes inúteis. Nunca esqueço as palavras atribuídas ao Dr. Johnson – Samuel Johnson: o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Consta que não as terá escrito, mas tê-las-á dito perante testemunhas.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Conversa com o anjo

Peguei num romance de Ruben A., A Torre de Barbela, e como a obra é antecedida por uma “Antologia Crítica”, entretive-me a ler os comentários. Os críticos antologiados eram, naqueles tempos, os anos de 1965 e 1966, figuras de prestígio e autoridade. Fiquei abismado com o texto de um reputadíssimo académico da área da literatura, figura cimeira da história e crítica literárias. A sensação não foi das melhores. Pensei comigo: o homem não percebeu o objecto que teve debaixo dos olhos, talvez a academia e a literatura tenham um conflito insuperável. Depois, considerei que talvez fosse eu, cuja autoridade é nula, a estar errado, e a obra de Ruben A. seja risível. Foi aí que o anjo bom que me protege nas coisas literárias decidiu entabular conversa comigo. Falou, falou, falou. Em resumo disse-me que em arte – e o romance é uma arte, coisa que frisou longamente – o melhor é não ter autoridade nenhuma, pois quanto mais autoridade, mais são os riscos de não perceber os objectos que caem sob os olhos. Quem não tem autoridade, continuo a resumir o meu anjo literário bom, é humilde e tenta perceber o que está ali. A autoridade aniquila não só a humildade, como o desejo de compreender. Quando o anjo se foi batendo as asas, pensei que todos deviam ter um anjo literário bom. Os académicos da literatura, mais que qualquer mortal. A cátedra – quando a têm ou quando a ela aspiram – mata a sensibilidade artística, embora desenvolva a capacidade de emitir opinião e proferir sentenças.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Hildegard

Hildegard von Bingen, não me canso de ouvir a sua música. Terá nascido em 1098 e morrido em 1179. Não consigo imaginá-la fisicamente, pois a diferença dos seres humanos entre aqueles dias e os de hoje é mais do que se imagina. Foi uma mulher extraordinária. Monja beneditina, além de compositora notável, foi poeta, teóloga, cientista (naturalista), linguista, médica e mais não sei quantas coisas. É doutora da Igreja. Não conheço a sua poesia nem o seu pensamento, mas a música basta para ficar grato à sua existência. Há seres extraordinários que têm o dom excepcional de não ter de sacrificar os múltiplos dons que receberam para afirmarem a excelência num deles. Por exemplo, Kant ou Mozart foram extraordinários, mas apenas no seu campo: vieram ao mundo num tempo em que a especialização se tinha tornado a norma. A questão, porém, não é apenas de época: Tomás de Aquino, outra figura notável da Idade Média, estava longe da maleabilidade de Hildegard; o seu campo era a filosofia e a teologia. Desde que descobri a sua música, nunca deixei de retornar a ela, sempre com a sensação de estar a ouvir algo de inédito, como se aquela música não pertencesse ao tempo, mas à eternidade.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Perder o pé

Dois versos de Rilke: Es tauchen tausend Theologen / in deines Namens alte Nacht. A tradutora portuguesa – Maria Teresa Furtado Dias – verteu assim: Mil teólogos mergulharam / na antiga noite do teu nome. Talvez fosse preferível traduzir tauchen por afundaram-se, não porque a tradução esteja incorrecta, mas porque estaria mais perto da realidade. Mais do que mergulhar na antiga noite do nome de Deus, os teólogos afundam-se, perdem o pé, andam à deriva naquele lago feito de uma noite antiga, a mais antiga das noites. Contudo, foi Rilke que escolheu tauchen e a tradutora tentou evitar a traição. Mesmo contra Rilke, prefiro a ideia de que os teólogos se afundam, pois o mar onde entram é feito de uma água que não é própria ao logos que cada teólogo transporta no nome da sua ocupação e no espírito com que entram nela. 

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Azares

Deixei passar a tarde como água que se esvai entre os dedos. A imagem não é extraordinária e muito menos inédita. Talvez devesse ser acusado de plágio. Contudo, tenho uma teoria sobre o plágio e os plagiadores. O facto de usarmos palavras que foram criadas muito antes de sabermos falar é um exercício de plágio. Para designarmos uma laranja dizemos a palavra laranja roubada sabe-se lá a quem. Só não haveria plágio se inventássemos todas as palavras que usamos. Isso conduziria a uma cacofonia universal e a uma radical incomunicabilidade. Conclusão: o plágio é a condição de possibilidade da comunicação humana. Quanto mais plagiamos, melhor comunicamos. Há ainda o problema dos plagiadores, aqueles que são censurados moralmente e, talvez, juridicamente. Esses, em vez de censura, merecem piedade. Porquê? Porque têm um grande azar. Eu uso laranja, mesa, intervalo, tudo palavras que plagiei, mas ninguém me censura. Ora, os pobres plagiadores sofrem de falta de sorte. Imaginemos que alguém, numa tese de doutoramento, tem toda a tese ou parte substancial dela igual a uma outra que foi escrita antes por outra pessoa. O plagiador consegue um feito notável: escreve as mesmas palavras e na mesma ordem que o plagiado. Querem azar maior? Uma pessoa senta-se para escrever e, na sua inocência, escreve um texto exactamente — nos casos mais radicalmente azarados — igual a um outro que já existia. Com tantas combinações de palavras possíveis, é preciso mesmo grande falta de sorte para sair um texto igual, mas essas coisas acontecem. Todos conhecemos pessoas que têm azar. Ainda há pouco, ao passar por um canal desportivo, vi uma guarda-redes — era um jogo de futebol feminino — deixar escapar uma bola das mãos, vê-la passar sorrateira entre as pernas e entrar vagarosamente na baliza. Um azar. Acontece o mesmo com os plagiadores: deixam passar, por entre as mãos, as palavras organizadas por outros, e estas caem no seu texto.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Meia efeméride

Efeméride. Chegou-se ao meio de Setembro. Então, não é uma efeméride, mas apenas meia efeméride. Concordo, pois hoje estou virado para a concórdia, mas não tanto para a concordância, o que é um perigo para quem escreve, ainda que coisas sem sentido. Não convém exagerar, e há que assegurar, por exemplo, a concordância entre sujeito e predicado. Discutível, oiço-me dizer. Imagine-se a frase: Ela corremos todos os dias. Uma frase lamentável, onde o sujeito não concorda em pessoa e número com o verbo. Contudo, a frase pode ser lida de modo mais fundo, percebendo-se que o eu está subentendido: ela (e eu) corremos todos os dias. As regras gramaticais são impotentes para dar conta do uso da língua, pois é tão importante o que se explicita como o que se cala. Podemos imaginar que o eu tem prazer em correr com ela, mas pretende guardar segredo linguístico. A sua omissão no sujeito é uma máscara, mas o verbo na primeira pessoa do plural é uma pista para quem queira descobrir com quem ela corre. O verbo “correr”, na expressão “correr com ela”, é ingrato: pode significar que eu e ela nos deslocamos juntos com rapidez superior à marcha, mas também que o eu corre com ela, a expulsa, a põe a milhas. Também é plausível que seja ela a correr com o eu, mas aqui entra-se no domínio da ascese: ela liberta-se do seu eu na busca de realização do self. Esta foi a minha comemoração da efeméride – ou meia efeméride – de 15 de Setembro. Amanhã será 16, e a temperatura disparará.

sábado, 13 de setembro de 2025

Uma alegoria

Diante de mim tenho um pequeno romance de Hermann Hesse. Há muitas décadas, li várias obras do autor alemão. Li-as com verdadeiro prazer: desde Siddartha até a O Jogo das Contas de Vidro, passando por O Lobo das Estepes ou Narciso e Goldmundo. Por volta dos trinta, tentei voltar ao autor, mas, ao fim de algumas páginas, abandonava enfastiado a obra. Vou tentar de novo: começo com o primeiro romance, Peter Camenzind, que nunca li. Se conseguir ler a obra romanesca de Hesse, então sei que estou já num processo de regressão. Ficarei a aguardar o momento em que procurarei as edições antigas da Romano Torres das Aventuras de Pinóquio, tendo antes passado por Enid Blyton e por outros autores que não vêm agora ao caso, sem esquecer as aventuras de Jaime Eduardo de Cook e Alvega, o famoso Major Alvega da colecção Falcão. Do Pinóquio aos grandes autores da literatura universal, e retorno à casa da partida: eis uma alegoria sobre as limitações do mito do progresso.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Meditação

A semana útil termina hoje, mas para mim a utilidade desvaneceu-se. Entrei pela casa da inutilidade e estou nela como quem está numa casa de repouso, embora não saiba que tipo de casa é esta, pois nunca me repousei por lá. Talvez já não existam casas de repouso. Há estabelecimentos – ou designações de estabelecimentos – que o tempo, com os seus dentes aguçados, devorou. Uma dessas designações desaparecidas é a de casa de pasto. Não havia vila ou cidade que não tivesse a sua casa de pasto. Depois, sem me darem qualquer explicação, desapareceram. Seriam uma solução intermédia entre a taberna e o restaurante, um lugar onde se comia barato. Hoje, os portugueses já não têm onde pastar, mas também os seus gostos começam nos restaurantes com estrelas Michelin e terminam sabe-se lá onde. Estou a cometer uma falácia, a da generalização precipitada, mas este é um tempo de falácias. Quanto mais falácias um indivíduo mobilizar nas suas arengas, e quantas mais mentiras contar, mais digno de crédito se torna no auditório universal. Universal referente aos portugueses. Não é que os outros auditórios sejam diferentes, mas conheço melhor o nacional. E este é o que é. Não há nada que uma boa tautologia não resolva, e «é o que é» será a melhor de todas as tautologias. Em vez de explicar, afirma a existência. E se existe, então não precisa de explicação ou de justificação. Isto recordou-me uma antiga idiossincrasia pátria coeva das casas de pasto. Para certos – e não seriam poucos – assuntos de ordem burocrático-legal, não bastava o bilhete de identidade: era preciso uma certidão de nascimento passada no registo civil. A medida justificava-se plenamente, não fosse o portador do bilhete de identidade estar ali e não ter nascido. Era uma coisa frequente, naqueles dias, andarem por aí pessoas que, apesar de devidamente identificadas, não tinham nascido. Eram os chamados vivos não nascidos. Hoje, o Estado português já não se importa que possam existir pessoas que não tenham nascido: deixa-as andar por aí e não exige certidão de nascimento. Se se descobre algum cidadão não nascido, é obrigado a pagar uma coima, pois ninguém imagina como seria possível obrigar a nascer alguém que existe mas não nasceu. A coima é mais sensata e rentável. Perdi-me na meditação. Vou repousar e, depois, procurar uma casa de pasto.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

O filho do sapateiro

Ontem referi o estranho caso de Manuel Ribeiro. Protelei na revelação da sua estranheza. Nasceu em 1878, em Albernoa, filho de um sapateiro, e morreu em 1941. Por norma, conta-se que foi um dos fundadores do Partido Comunista Português e que, posteriormente, se converteu ao cristianismo. Ora, a história é mais complexa. É um facto que foi eleito, em 1920, para a comissão organizadora do Partido Comunista. Em 1921, foi eleito para a Junta Nacional do Partido e, imagine-se, foi enviado a Moscovo, ao III Congresso do Comintern (Internacional Comunista), como delegado da Secção Portuguesa. Antes disso, tinha escrito no jornal anarquista A Batalha e fora secretário da Comissão Executiva da Federação Maximalista Portuguesa e director do jornal A Bandeira Vermelha. A lista da sua actividade revolucionária é maior, incluindo o sindicalismo revolucionário. É provável que seja após 1921 que ele se desliga deste mundo, mas a sua atracção pelo cristianismo e pela vida espiritual católica é bem anterior. Em 1920, publica o romance A Catedral, onde é muito clara essa aproximação. No ano de 1916, publica no jornal A Capital artigos sobre literatura monástica. A estranheza reside nesta dupla atracção – pelos valores do cristianismo e pelos ideais revolucionários – num tempo em que a adesão a uns implicava a negação dos outros. Quem ler A Catedral, sem saber estes traços biográficos, nunca imaginará que o autor é um dos fundadores do Partido Comunista Português, que também é um estranho caso, e que, de algum modo, se liga a Manuel Ribeiro. Enquanto a generalidade dos partidos comunistas nasceu de cisões nos partidos sociais-democratas, o português nasceu a partir de um grupo de anarquistas, como o terá sido Manuel Ribeiro. Se se deixar de lado a espuma dos dias, o caso de Manuel Ribeiro deixa de ser estranho. Os credos anarquista e comunista são laicizações do credo cristão, devendo-lhe muitas das suas ideias. Manuel Ribeiro terá pressentido isso. Descobriu, porém, que o original era preferível aos sucedâneos – simulacros poderá ser o termo mais exacto – e abandonou a ideia de um paraíso na Terra. É pena que já não seja lido. Também é verdade que um leitor actual teria de o ler com um dicionário à mão, tal a riqueza do vocabulário deste filho de um sapateiro.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Uma visita a Lisboa

Chegado hoje a casa, em fuga do mau tempo na Figueira, encontro na caixa do correio um livro que tinha comprado num alfarrabista online. Não se trata, na realidade, de um verdadeiro livro, tal como o imaginamos, mas de uma brochura, de pouco mais de trinta páginas. Foi publicada em 1922 e contém uma novela de Manuel Ribeiro, A Madona do Convento. Faz parte de uma colecção lançada pela revista mensal Contemporânea, que parece ter tido notoriedade naqueles anos. Talvez um dia, caso me lembre, escreva sobre o estranho caso de Manuel Ribeiro. A brochura apresenta na capa a identificação do comprador. Um certo António, cujo apelido omito, apesar de explícito, comprou-a em 1923. Custou, segundo a indicação da badana da capa, um escudo, o preço de qualquer uma das novelas da colecção lançada pela revista. Do proprietário, não consigo descobrir mais nada. Terá lido a novela? Nada há que permite dizer que sim ou que não. Descobrem-se, porém, coisas interessantes. Há uma lista de autores de novelas e nessa lista, de acordo com uma prática antiga, os licenciados surgem com o título de dr. no nome. Por exemplo, a novela número 2 é do Dr. Feliciano Santos. Descubro, também, que o melhor chocolate é o da Leitaria Portugália, na Rua do Ouro, que também tem a melhor doçaria regional. Por outro lado, se alguém quisesse mandar imprimir livros de luxo ou revistas ilustradas, podia ia à Imprensa Libânio da Silva, na Travessa do Fala-Só. E fotogravuras? Na Fotogravura Nacional Ld.ª, na Rua da Rosa. Se  o problema era comprar um relógio ou um anel, uma jóia, na Praça dos Restauradores, Júlio Rei, Ld.ª seria um destino a ponderar. Contudo, se o problema era barbear-se ou tratar das unhas, o Salão Modelo de Pereira & Brio esperava o cliente no número 94 da Rua dos Fanqueiros. Isto no ano de 1922, há 103 anos. E também se descobre onde era a sede da Contemporânea. No segundo andar do 53 da Rua Nova do Almada. Lisboa era pequena, os portugueses eram, em grande percentagem analfabetos, mas os romances de Manuel Ribeiro – tanto A Catedral como  O Deserto – já iam na terceira edição, o equivalente a oito milhares. E o que trata a novela? De uma Madona, claro.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Outros mundos

Procurei, durante o dia, um poema que fosse pequeno e que nele contivesse uma porta para outro mundo. Encontrei-o há pouco, de Emily Dickinson: Uma sépala, uma pétala e um espinho / Numa vulgar manhã de Verão — / Um frasco de Orvalho — uma ou duas Abelhas — / Uma Aragem — um volteio nas árvores — / E sou uma Rosa! Mas este não será o nosso mundo? Claro que não. Este é o mundo onde o sujeito do poema – como é insuportável a expressão sujeito lírico – é um ser do mundo vegetal. Entramos nele e vemos rosas que não as nossas rosas, mas seres dotados de consciência, pensamento e linguagem. Não são mudas nem surdas, e não estão presas ao solo. Pelo contrário, caminham e voam, talvez nadem, mas não tive tempo de averiguar. A estadia nesse lugar é excessivamente cara, alguns minutos ainda se podem comprar, mas há que ter cuidado para não se ficar falido para o resto da vida. De resto, a contabilidade sempre teve um contencioso com a poesia e ainda mais com a poesia dos mundos possíveis. Vi o que me foi possível e paguei o que pude. Agora, estou sentado no quarto de hotel, olho o mar e recito baixo o poema da Dickinson. Espero uma rosa, ou uma Emily, ou uma poetisa vinda de um outro mundo possível.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Coincidência

Sentado na varanda do hotel, olho o mar. Este, porém, está longe, pois o areal parece não ter fim. A nortada agita o arvoredo, fustiga as bandeiras que nunca faltam em lugares de veraneio, o sol hesita entre o vigor de Junho e o cansaço de Novembro. Imagino que um dos encantos da Figueira da Foz seja esse: uma promessa de oceano que parece retroceder a cada passo. Daqui a pouco irei caminhar, talvez me aproxime das águas, se os passadiços me levarem até lá. Respiro o ar marítimo trazido pelo vento, observo o movimento na marginal e penso que Setembro deixou de ser um dos meses de férias, apesar de ainda haver pessoas a fazer a grande travessia das areias até chegarem perto do mar. Hoje, sabe-se lá porquê, tenho-me lembrado dos tempos de escola, dessas férias grandes, tão grandes que só o Outono, e não de imediato, lhes punha fim. Gostava particularmente do mês de Setembro, mas não me lembro das razões. Talvez não as tivesse ou ainda não me preocupasse com elas. Gostava porque gostava, e isso era tudo. Coincidia comigo, na inocência que me cabia naqueles dias. Perde-se a inocência quando se descobre que não se coincide consigo mesmo ou, para ser mais exacto, quando a coincidência consigo se torna um projecto, ou uma doença, o que será a mesma coisa.

domingo, 7 de setembro de 2025

Tempo

Sem se dar por isso, a primeira semana de Setembro – sete dias exactos – está consumada. Faltam ainda umas horas, é certo, mas elas apressar-se-ão a esgotar-se. Talvez o tempo não exista. Para onde vão os dias que acabam? Nunca ninguém encontrou vestígio de nenhum. É certo que não é prova suficiente para negar a existência do tempo o facto de ninguém ter encontrado vestígios de um dia que passou; contudo, pode ser razão suficiente para tornar plausível a sua inexistência. Fomos habituados a pensar na existência do tempo. Esse hábito, todavia, não se deve a uma experiência real do tempo, mas à necessidade de ordenar a nossa existência. Transferiu-se uma crença utilitária para uma crença ontológica. Isto quer dizer: transformou-se a utilidade para os nossos negócios de ordenar as coisas em sequências – umas vêm antes de outras, outras acontecem em simultâneo e outras, depois – numa realidade a que se dá o nome de tempo, mas essa transformação é subjectiva e pode não corresponder a nada de efectivamente real. Não devia pensar nestas coisas ao domingo. É dia de descanso e o pensamento – por fútil e incompetente que seja – também precisa de sossego, mesmo que, durante o resto da semana, seja pouco dado ao trabalho. O dia, por aqui, nasceu chuvoso, mas agora debita uma luz açucarada que banha o telhado do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado, que responde com uma reverberação anémica. Na avenida, os carros passam devagar, sem motivação para chegar a segunda-feira, enquanto os peões seguem a sua transumância habitual dos domingos. Caminham para aqui e para ali, sem destino, mas apenas porque é domingo e eles não sabem o que fazer com esse dia. Nem eu.

sábado, 6 de setembro de 2025

Hábitos

O sábado começou com uma ruptura com as rotinas ultimamente instaladas. Levantei-me demasiado tarde para ir caminhar. Portanto, a rotina ainda não é um verdadeiro hábito. Se o fosse, ter-me-ia levantado mais cedo, apesar das razões que tive para o não fazer. Aristóteles definiu o hábito como uma segunda natureza. Como muitas coisas que provêm de Aristóteles, também esta ideia deveria fazer parte do senso-comum da época. Ele registou-a, dando-lhe um relevo que, sem esse acto de registo, não existiria. Diante de mim tenho um livro publicado no final do século XVIII. Questiona duas coisas: o fundamento da autoridade e o dever de obediência. A resposta que o autor dá não vem para o caso, mas eu poderia dizer que ambos se devem ao hábito. Uns habituam-se a mandar e outros a obedecer. O que conduz a uma conclusão inesperada: não há uma humanidade, mas duas humanidades, a humanidade que manda e a humanidade que obedece. A pergunta que surge é se essas espécies, caso se cruzem, darão origem a um novo ser ou se esses eventuais cruzamentos serão estéreis. Imagino, mas imagino apenas, que ainda não serão completamente estéreis. As razões, porém, não são fundadas em dados empíricos, mas numa intuição. A educação daqueles que se habituaram a mandar destina-se a que os novos membros da espécie evitem cruzar-se com alguém que esteja habituado a obedecer. Seja como for, é muito possível — contam-se histórias — que existam híbridos, o que será sempre um problema, mais para quem pertence à espécie obediente do que para quem pertence à espécie mandante. A hibridação, caso seja verdade, mostra, porém, que a teoria aristotélica do hábito apresenta alguns problemas. Confesso que me falta assunto. Poderia falar do romance Ave do Paraíso, de Carlos Selvagem, mas nunca o li.