A Antígona Editores Refractários está a publicar uma pequena colecção de cinco livros, Sementes de Dissidência, um projecto apoiado pelo programa Europa Criativa, da União Europeia. Desses cinco, já li dois – Niels Lyhne, de Jens Peter Jacobsen, e A Parede, de Marlen Haushofer – e comprei, hoje, um terceiro, A Pequena Comunista que Nunca Sorria, de Lola Lafon. Ora, a pequena comunista é uma figura real. Trata-se da ginasta romena Nadia Comaneci, que, como se sabe, acabou por sair da Roménia. Lembro-me de, há quase 50 anos, ela, nos seus ingénuos 14 anos, surgir como uma heroína. O romance de Lola Lafon, imagino, tratará do exuberante triunfo da adolescente romena, do modo sufocante como terá sido produzido e da queda posterior, pois tudo o que sobe terá de cair. A queda é um dos temas centrais, senão o tema central, da arte do romance. O interesse pela queda é muito anterior ao romance moderno. Basta lembrar a história de Ícaro. Contudo, a queda que sobre nós ocidentais exerce um maior fascínio é a de Adão e Eva. Podem estabelecer-se, sem dificuldade, pontos de contacto entre as duas quedas. Contudo, aquela que nasce na tradição judaica tem a particularidade de ser uma queda dupla, a de um homem e a de uma mulher, o que significa que não se trata de um episódio de alguém que ultrapassa a sua medida, mas de uma marca da própria humanidade. Não somos apenas seres decaídos, como uma leitura religiosa sublinhará, mas seres cuja natureza é cair. Nadia Comaneci era exímia na sua luta contra a gravidade, mas nela, como em todos nós, havia uma inclinação para a queda. E é esta inclinação que habita a imaginação romanesca. Sem esta inclinação, a literatura romanesca não teria sentido.
Peregrinatio
ad loca infecta
quarta-feira, 20 de novembro de 2024
terça-feira, 19 de novembro de 2024
Individualidade
segunda-feira, 18 de novembro de 2024
Disciplina da escuta
Uma das doenças que corrói as nossas sociedades ocidentais está ligada à morte daquilo a que poderíamos dar o nome de disciplina da escuta. Aprender a escutar, permanecer em silêncio perante a voz do outro, conter o impulso para tomar a palavra, todos esses dispositivos de formação de humanidade tornaram-se obsoletos, perderam prestígio e encontram-se a caminho de um museu, onde se exibem coisas destituídas de sentido. Ora, a disciplina da escuta não visa apenas aprender a escutar a voz do outro, embora isso seja fundamental, mas encontrar, no saber fazer silêncio em si mesmo, a possibilidade de escutar a sua própria voz. A proliferação opinativa a que as redes sociais deram origem inscreve-se já como um efeito da perda da disciplina da escuta. Quando se aprende a escutar o outro, é-se menos propenso a tratá-lo mal e mais inclinado a moderar a própria opinião, pois o acto da escuta tem o poder de revelar a fragilidade das nossas opiniões. Quando nunca se aprendeu a escutar, então toda a ignorância que nos habita se toma por certeza, uma certeza tão absoluta que deve ser imposta aos outros nem que para isso tenhamos de os esmagar. Terá sido em casa, no ambiente familiar, que a disciplina da escuta terá começado a morrer. Daí, a doença ter-se-á propagado para os sistemas educativos, a partir dos quais a sociedade como um todo foi contaminada. Contudo, nenhuma palavra terá sentido e profundidade se não estiver ancorada numa longa disciplina da escuta. As palavras que se ouvem, não são palavras. São gritos articulados em forma de linguagem. Só isso.
domingo, 17 de novembro de 2024
Caricatura
O fim-de-semana está gasto. Restam uns farrapos que se irão desfazendo até à meia-noite. Nesse instante, entrar-se-á na semana útil, mas, como a realidade é ardilosa, as vítimas só darão por isso lá pela manhã. Tarde demais para travar o tempo e prolongar a inutilidade por mais uns dias. Oiço o choro de uma criança. Aliás, uma especialista em submeter os pobres pais através da técnica da birra prolongada. Eles, os pais, avançam de derrota em derrota. A criança sabe bem quem manda e parece nunca se fazer rogada. Isto, porém, são palavras de quem pertence a outro país. Refiro-me à famosa frase de Leslie Poles Hartley: «O passado é um país estrangeiro; lá, eles fazem as coisas de modo diferente». É a esse estranho país – o passado – que pertenço, e lá, posso confirmar, as coisas faziam-se de modo bem diferente. Quando chegam ao presente, aqueles que pertencem ao passado ficam perdidos. Não conhecem a língua, nem os hábitos e têm dificuldade em perceber as acções. Os autóctones, porém, não querem saber daquilo que pensam os estrangeiros. E muita sorte têm estes em não serem deportados em massa para o seu país de origem. Talvez as coisas tenham começado quando um grupo de rock se pôs a cantar: «Hey! Teacher! Leave them kids alone!» Então, as crianças, para treinar o enfrentamento escolar, exigiram que os pais as deixassem em paz. E estes, formados na música do tal grupo de rock, estão a deixar. Dir-se-á que isto é uma generalização precipitada, uma maldita falácia que persegue os raciocínios indutivos. É um ponto de vista. Um outro, que prefiro no dia de hoje, diz-nos que é uma avaliação hiperbólica que se torna uma caricatura. Ora, a virtude da caricatura, ancorada no recurso à hipérbole, é dar a ver aquilo que não salta à vista.
sábado, 16 de novembro de 2024
Consolação
Amareleceram as folhas das acácias do parque. Diria que amareleceram bem, como quando se diz que alguém envelheceu bem. Ainda se nota a metamorfose, pois o manto amarelo deixa ver folhas verdes. Não é um amarelo como o do limão; é mais escuro, como se, no fundo de si, ainda restasse uma gota de sangue. Olho-as e deixo-me levar pela cadência com que o vento as move para um lado e para o outro. Muitas pessoas sofrem de tédio, mesmo que tenham de usar palavras como spleen para enquadrar o fastio que as devora. Ora, se deixassem os seus olhos poisar sobre as árvores e observassem, com atenção, o movimento das folhas, recobrariam do enfado e da náusea com que cobriram a existência que lhes foi oferecida. Não poucas pessoas pensam que uma vida digna de ser vivida deve decorrer num vórtice, num culto da energia e numa liturgia do dinamismo. Isso, porém, é apenas o resultado de uma impotência estrutural: a incapacidade de se deter e contemplar aquilo que se oferece ao olhar. Ao demorar o olhar sobre as acácias, estou a receber uma dádiva. Essa demora é um exercício de reciprocidade: uma dádiva que responde à primeira. O culto do entusiasmo e da velocidade é a confissão de uma incapacidade para receber e para dar, pois, assim como tenho um secreto prazer em olhar o amarelo das folhas das acácias, também elas têm um consolo não menos secreto em serem olhadas. Sim, também as árvores precisam de consolação.
sexta-feira, 15 de novembro de 2024
Devorações
A primeira metade de Novembro está cumprida. Também o conjunto musical da escola aqui ao lado realizou o seu ensaio. São músicas arcaicas. Imagino que o grupo seja composto por professores reformados, mas é apenas uma suposição. Ou será uma banda animada por um professor de História que esteja a pesquisar a música dos anos sessenta e setenta do século passado? É possível. Também nestes ensaios há um antes e um depois da pandemia. Até à emergência da COVID-19, os ensaios eram às quartas-feiras. Agora, são às sextas. Talvez tenha sido por eles ensaiarem às quartas que se desencadeou aquela doença tenebrosa que caiu sobre o mundo. Estas coisas nunca se sabem, e a generalidade do que acontece tem causas insuspeitas. Se tiver sido esse o caso, ou mesmo que não tenha sido, foi sensata a mudança do dia de ensaio. Não vá o diabo tecê-las e mande nova pandemia. Isso mostra que o grupo musical tem capacidade de ler os sinais e aprender com o que acontece, mesmo se os progressos musicais não sejam, ao longo dos anos, coisa de assinalar. Isto é outra suposição, pois não sou crítico musical. Quando comecei a escrever este texto, a noite estava perfilada, ao longe: hirta, pronta para marchar. Agora, já oiço as suas botas cardadas. Ela aproxima-se com um passo cadenciado e firme. Não tarda e devorará o crepúsculo, que é coisa que as noites gostam muito de fazer pela tardinha. Para se vingar, o crepúsculo devorá-la-á, para que chegue a aurora. É triste, mas a vida não passa de uma cadeia de devorações, como se sofresse de um transtorno crónico de compulsão alimentar. Na avenida, os carros seguem a luz dos seus faróis, e as pessoas passam rápidas para desaparecer do meu horizonte — um horizonte limitado.
quinta-feira, 14 de novembro de 2024
Falar do tempo
O Outono vestiu as roupas do Inverno e, agora, distribui frio e chuva pelas ruas. Oiço uma voz feminina a queixar-se: ainda ontem saí à rua de manga curta e hoje já tive de me vestir como nos dias frios. As pessoas falam do tempo para terem assunto — um tema nobre que não implica dizer mal do próximo. Também eu falo do tema por falta de assunto, embora não faltem assuntos nobres, mesmo nobilíssimos, para discorrer. Será que o centauro existe ou é apenas um nome? Outro, não menos nobre: os buracos — por exemplo, os buracos de um queijo — existem? Uma outra possibilidade seria escrever sobre se existe uma coisa como a vermelhidão ou, ainda mais interessante, sobre se existe uma realidade denotada pela palavra humanidade. De todos estes assuntos, o que me interessa mais é o centauro, a que poderíamos associar a sereia e todos os seres desse género. Chamei-lhes seres, e isso pressupõe já um compromisso ontológico, isto é, a afirmação de que têm alguma forma de existência e não são puros nomes. Há quem pense, por exemplo, que esses seres têm uma existência potencial. Não existem actualmente, mas podem vir a existir; podem passar da potência ao acto, para usar o jargão de Aristóteles. Não partilho deste ponto de vista, pois estará fundado numa analogia sem fundamento. Imaginemos o projecto, desenhado por um arquitecto, de uma ponte sobre o rio desta terra onde me acolho. O projecto será a ponte em potência; a construída, a ponte em acto. Ora, não me parece plausível tomar o centauro ou a sereia como projectos, seres potenciais que dariam lugar a seres actuais — aquilo a que se chama reais. E, no entanto, discordo daqueles que negam a existência de centauros e sereias. Existem na imaginação de seres como os homens. Não têm uma existência material, mas mental. Melhor: imaginal. E todos nós sabemos reconhecer uma sereia ou um centauro, apesar de nunca os nossos sentidos terem tido qualquer contacto com eles. É por estas e por outras que mais vale falar do tempo.
quarta-feira, 13 de novembro de 2024
Macaquices
Nunca fui a Marraquexe – para dizer a verdade, a vontade é nula – mas os portugueses parecem ter uma grande propensão para lá ir. Presumi isto ao consultar, por motivos que não vêm ao caso, a lista de chegadas ao aeroporto de Lisboa. Em menos de três minutos, tinham aterrado ali dois voos, de diferentes companhias, vindos daquela cidade marroquina. Imagino que sejam turistas portugueses de retorno ao lar, pois não me parece que o volume de negócios entre Portugal e aquela cidade, ou mesmo Casablanca, justifique tal número de voos, mesmo que sejam apenas dois por dia. A mente, refiro-me à minha, parece um macaco. De Marraquexe foi para Casablanca, da capital de Marrocos para o filme de Michael Curtiz, deste para Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Desta saltei para Ingmar, também Bergman, e deste para dois filmes: Morangos Silvestres e A Flauta Mágica, uma espantosa encenação cinematográfica da ópera de Mozart. Isto levou-me à ária da Rainha da Noite e desta ao facto de já ser noite e estar frio. Tudo isto para demonstrar que sou habitado, no lugar onde devia estar a razão, por um macaco, um babuíno, por certo. Enfim, não será de admirar que escreva macaquices.
terça-feira, 12 de novembro de 2024
Verdade e autoridade
No evangelho de Nicodemos, um dos evangelhos apócrifos, Jesus, em resposta à pergunta de Pilatos – Na terra, verdade não há? – diz: Vês como os que dizem a verdade são julgados por aqueles que têm autoridade na terra. Não seria diferente a resposta dada por Sócrates à mesma pergunta. Jesus não nega a existência da verdade neste mundo. Torna manifesto um conflito insanável entre a verdade e a autoridade. Ter autoridade na terra significa poder prescindir da verdade. O poder não é apenas algo que se exerce sobre os que o não têm, mas um modo de conformação ontológica. Torna realidade aquilo que é desprovido dela. Nem Jesus nem Sócrates cometeram algum crime, mas o poder – a autoridade – transformou inocentes em criminosos e agiu em conformidade. Quando as pessoas se espantam que gente com grandes problemas com a verdade seja adulada pela multidão e levada ao poder, esquece estes episódios que são marcantes na história da humanidade ocidental. O conflito com a verdade é uma virtude para aquele que aspira a ter autoridade sobre os outros, que aspira a poder moldar a sua natureza, tornando-os inocentes ou criminosos em conformidade com o seu desejo. Apesar de Jesus ter sido executado há mais de dois mil anos e Sócrates há mais de dois mil e quatrocentos, apesar de serem figuras centrais na cultura ocidental, continuamos iguais aos gregos que votaram a condenação de Sócrates e à turba que pediu a morte de Jesus. A verdade não interessa à autoridade porque não interessa aos que a ela se submetem.
segunda-feira, 11 de novembro de 2024
Hábitos matinais
domingo, 10 de novembro de 2024
Santa Preguiça
sábado, 9 de novembro de 2024
Espoleta e despoleta
Como não tenho nada para escrever, aproveito o ensejo de um artigo do Público, no qual se usa o verbo espoletar, para fazer uma comunicação urbi et orbi. Reconheço que é um avanço relativamente à deplorável moda de usar despoletar, pois espoletar acorda-se com a função da espoleta numa granada. Contudo, ainda não consegui perceber qual a necessidade de recorrer a estas metáforas militares para dizer desencadear, originar ou provocar. Um dia alguém achou interessante usar despoletar e a atracção foi de tal maneira intensa que provocou uma pandemia de despoletamentos por tudo o que era texto e comunicação oral. Lentamente, lá se foi percebendo que despoletar significa exactamente o contrário, evitar que se desencadeie deflagração da granada. Se não se deve usar despoletar, então que se use espoletar. E começaram a deflagrar espoletamentos sem fim. Deixem as espoletas e as granadas em paz. Já basta quando, no teatro de guerra, têm de ser utilizadas. Usem originar, desencadear, provocar, gerar. Ainda por cima, a palavra está longe de ser esteticamente agradável. Despoletem a mania de espoletar e despoletar por dá cá aquela palha. Isto ainda não é uma guerra.
sexta-feira, 8 de novembro de 2024
Pensamentos
Saí para caminhar às cinco e meia da tarde. A noite caía sobre a cidade, envolvendo-a na tenaz da escuridão, cobrindo-a com um véu de negrura, um tule sarapintado pela melancolia da iluminação pública. Nas ruas, as pessoas iam e vinham. Nos parques infantis, havia pais e avós olhando com desvelo as crianças, arrancando com os olhos a noite que sobre elas caía. Não me lembro do que pensei durante o trajecto, mas terei pensado muitas coisas, pois a consciência é um babuíno aos saltos, nunca parando quieta, disparando pensamentos uns atrás dos outros. Para ser exacto, deveria dizer: eu não pensei nada, pois os pensamentos que tive foram acontecendo em mim e não coisas que eu decidi pensar. A maior parte dos nossos pensamentos não são nossos, são deles, que, numa atitude tirânica, se impõem, como déspotas orientais, a nós. Acontece, e não é raro, as pessoas serem vítimas dos pensamentos que nelas se pensam. Ficam obsidiadas pelos invasores, cercadas pela torrente de ideias que as assaltam. A certa altura, fazem coisas que nunca fariam senão fosse a impertinência daquele inimigo que tomou conta delas. Quantos crimes se evitariam caso as pessoas soubessem pôr os pensamentos que nelas se pensam ao longe? Serão elas culpadas dos seus crimes? São culpadas de não resistirem ao cerco dos pensamentos e, por isso, são cúmplices desses pensamentos. Contudo, enquanto caminhei não pensei em nada disto, mas não consigo já recordar o que pensei. E esta é uma grande virtude que possuo. Esquecer-me de coisas que não merecem recordação. Talvez seja a única, e mesmo isso é duvidoso.
quinta-feira, 7 de novembro de 2024
Gramática e categorias aristotélicas
Diante de mim tenho, neste momento, uma gramática de português com mais de mil e cem páginas. É uma gramática árdua, cheia de designações que me são estranhas. Perante ela e a sua opacidade – opacidade para a minha ignorância gramatical – senti uma inquietante saudade das antigas gramáticas normativas. Eram gramáticas aristotélicas, embora não saiba se os gramáticos as consideravam assim. Por que razão as associo a Aristóteles? Imagino que seja por causa das categorias. O discípulo de Platão construiu uma tabela de dez categorias: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, estado, acção e paixão. Imaginei, e continuo a imaginar, que sem dificuldade a gramática, aquela que me foi ensinada, se deixaria combinar com estas categorias. Talvez o principal problema esteja na preeminência dada à substância em relação às outras categorias, que não passam de acidentes da substância. A substância é aquilo que é e os acidentes são coisas que podem ou não ocorrer nela. A substância é o que é designado pelos substantivos – nesta volumosa gramática apelidados de nomes – e os acidentes relacionar-se-iam com as restantes classes de palavras, com algumas excepções, pois também aqui não haveria regra sem excepção. Isto, porém, é a visão de um ignorante gramatical, deixando-se arrastar por um saudosismo insensato e imaginando ver coisas que não existem. A sabedoria de Aristóteles manifesta-se na categoria da paixão. Enquanto a categoria da acção nos diz aquilo que uma substância faz, a da paixão indica aquilo que ela sofre. A paixão, qualquer paixão, indica-nos uma passividade – na verdade, uma impotência – da substância. As paixões sofrem-se, não se é delas autor. Contudo, como qualquer outra categoria, a paixão é um acidente e não faz parte da essência da substância. Quanto mais apaixonada é uma substância, tanto mais passiva ela é, pois, mesmo a sua acção, passa a depender daquilo que ela sofre.
quarta-feira, 6 de novembro de 2024
Fantasias
Um dia magnífico por aqui. Um começo promissor, que a manhã e a tarde cumpriram. Pena que tivesse passado parte substancial desse tempo em reuniões online cuja finalidade, como é hábito, ainda não consegui descortinar. Tenho uma natureza pouco dada a reunir. Gosto da comunidade, desde que não tenha de a frequentar. A comunidade como horizonte ou pano de fundo é o meu ideal. Contudo, entre a realidade onde me movo e a idealidade com que me consolo, há uma grande distância, tão grande que, caso fosse dado a isso, cairia num grande desconsolo. Não caio, talvez porque não acredite naquilo em que acredito. Isto tem a aparência de ser contraditório, mas é só a aparência. Explico-me. Todos nós para vivermos neste mundo precisamos de ter crenças. Sem elas, a vida seria não apenas insuportável como impossível. Por isso, eu tenho um conjunto de crenças. Por outro lado, suspeito de todas as minhas crenças, o que me leva a descrer naquilo em que creio. Melhor, eu creio firmemente nas minhas crenças, mas sei que elas são fantasias – fantasias produtivas que me permitem andar por este mundo. É evidente que não tenho nenhum grande causa. Ter uma grande causa é esquecer que a crença que a sustenta é uma fantasia. E isso é uma das poucas coisas que não esqueço. Aliás, se ninguém tivesse grandes causas, o mundo seria um lugar mais decente. Aproximamo-nos do crepúsculo e mesmo este está belíssimo, como esteve todo o dia. Imagino que esta minha crença na beleza do dia de hoje seja uma fantasia, mas uma fantasia necessária.
terça-feira, 5 de novembro de 2024
Saber, não saber
Têm estado, por aqui, uns dias verdadeiramente outonais, embora não se saiba muito bem o que definiria um dia verdadeiramente outonal. Também se suspeita, não sem razão, que o Outono não passa de uma convenção humana, um modo, entre outros, de lidar com o tempo. Seja como for, sei o que é o Outono e o que são dias outonais, apesar de não saber nem uma coisa nem outra. Sabemos que estamos no Outono como sabemos que estamos em casa. Reconhecemos a casa, sem que dela façamos uma concepção teórica. É assim que sei o que é o Outono. Reconheço quando estou nele. Saber não sabendo é o melhor. É deste modo que se inicia o capítulo 71 do Tao Te King. É assim que sei do Outono, da minha casa, de mim. Como sei de mim? Habitando-me. É no Outono que me habito melhor, pois eu sou uma morada outonal e o morador dessa casa. Talvez não seja nada disso. Apenas a cinza do dia rasgou o lençol da nostalgia e comecei a pensar que hoje é um dia outonal, até que me perdi e comecei a escrever coisas sem sentido.
segunda-feira, 4 de novembro de 2024
Destruições da humanidade
Um artigo do Público online referia as sondas von Neumann e o conceito de singularidade proposto pelo mesmo John von Neumann. As sondas seriam dispositivos auto-replicantes que, lançados para o cosmos, teriam a capacidade de explorar os planetas, de enviar informação para a Terra e – aqui está a novidade – de se auto-replicarem, o que suporia uma espécie de autonomia genésica, através de materiais encontrados nesses planetas, Poderiam constituir uma vasta rede de pesquisa e informação espalhada cada vez mais longe neste nosso universo. A singularidade significaria um ponto no futuro em que a rapidez e extensão do desenvolvimento da tecnologia escapa à capacidade de compreensão humana. Ora, há um comentário ao artigo em que se verbera o autor, pois este não tem em consideração o potencial destruidor da humanidade contido nas duas ideias. É perante coisas destas que tenho pena de não poder viajar no tempo e visitar certos momentos da história da nossa pobre espécie. Até certa altura do nosso desenvolvimento – tal como acontece ainda hoje com os outros animais – os humanos não dominavam o fogo. Imagino que, no tempo em que os homens aprenderam a domesticá-lo e a conservá-lo, não tenham sido poucos aqueles que viram nesse poder sobre o fogo a porta aberta para grandes desgraças. Esta minha especulação tem algumas bases. O mito de Prometeu, o roubo do fogo pelo titã, a sua dádiva aos homens e o castigo de que foi vítima – tudo isso não é mais do que a condensação daquelas vozes que um dia viram no domínio do fogo pelos homens um potencial destruidor da humanidade. Toda a vez que dominamos o fogo, isto é, que desenvolvemos o poder de utilizar de novas formas a matéria e a capacidade de inventar novos dispositivos tecnológicos, levantar-se-ão vozes que nos advertirão que o resultado será um fatal castigo que levará à extinção da humanidade. Ora, estas vozes falham o essencial. O perigo não está no desenvolvimento da tecnologia, mas no facto de não conseguirmos pensar o mistério que esse desenvolvimento encerra. Não são apenas os seres naturais que encerram mistérios indecifráveis. Também os produtos do engenho humano são misteriosos, mesmo que só os consideremos do ponto de vista da utilidade e os abandonemos à sua sorte quando se tornam inúteis.
domingo, 3 de novembro de 2024
Meditação dominical
Chegado a esta altura da vida, penso que tudo, e não apenas o Zen, possa ser o referente das palavras de D. T. Suzuki: Com efeito, está na natureza do Zen escapar a toda a definição e explicação; noutros termos, não pode ser convertido em ideias e descrito em termos lógicos. O que, neste mundo e mesmo num outro, poderá ser convertido em ideias e descrito em termos lógicos? Plausivelmente, nada. Por muito que me esforce para reduzir este domingo a uma ideia e descrevê-lo no âmbito de uma lógica, mesmo que modal, com os seus operadores de necessidade e de possibilidade, os meus esforços serão baldados. Os seres humanos ficaram deslumbrados com o facto de pensarem e, como corolário, com o impacto que, através da técnica, o pensamento tem na configuração das coisas. O deslumbre, devido à intensidade da cintilação, cegou-os e não os deixa perceber a incomensurabilidade entre as coisas e o pensamento acerca delas. As nossas definições não definem nada, nem as nossas explicações explicam seja o que for. Aquilo que é escapa-se sempre à rede com que o tentamos capturar. Defino uma árvore, classifico-a e explico o modo como nasce e se desenvolve, mas ela, se tenho a humildade da atenção, permanece para mim um mistério, não maior ou menor do que eu sou para mim.
sábado, 2 de novembro de 2024
Histórias hegelianas
O mês, refiro-me a Novembro, começou mal-encarado, mas hoje mudou de disposição e tem estado um magnífico dia de Outono. Já não me recordava da história, mas um acaso levou-me a ela. Em Jena, Hegel teve um caso com uma jovem mulher casada. Desse acidente nasceu um rapaz que foi baptizado como Ludwig Hegel. Entretanto, o filósofo foi para Bamberg, não sem antes prometer à mãe do filho, que, entretanto, enviuvara, casamento. Os deuses não estiveram pelos ajustes e fizeram-no encontrar Marie von Tucher. Caiu em estado de adoração por mais esta manifestação do espírito absoluto e esqueceu a promessa a Christiane Charlotte Burkhardt, nascida Fischer. Imagino que na mãe do seu primeiro filho o espírito absoluto se manifestasse com menos vigor. São coisas que acontecem. Quanto a Ludwig, nem tudo correu pelo melhor: a mulher do pai detestava-o. Para piorar a situação, a criança queria ser médica, mas o pai desviou-a para o comércio. Uma decisão fatídica. Hegel encontrou uma ocupação para o filho ilegítimo como oficial na Companhia Holandesa das Índias Orientais. O pobre rapaz terá morrido, em Jacarta, Batávia, na altura, de uma infecção nas vias respiratórias. Em compensação, o pai morrerá três meses depois. Estas informações encontrei-as em Alexander Kluge. Não é claro que Ludwig possa ter tido prazer em reencontrar o pai no outro mundo. Afinal, não lhe faltavam razões para estar decepcionado com o grande filósofo. E, por certo, não seria por motivos filosóficos, nem por disputas sobre a Fenomenologia do Espírito ou a Ciência da Lógica. Também é possível que o pai nem tenha dado pelo filho. Teria o espírito ainda ocupado com a dialéctica e tentava, talvez com um certo desespero, verificar se a negação da negação funcionava naquele mundo onde os espíritos se passeiam sem o revestimento do corpo. Conta-se a anedota de que ao morrer Hegel terá dito Só um homem conseguiu entender-me… e esse não me entendeu bem. Aliás, esta incompreensibilidade hegeliana era partilhada pelo próprio Hegel, que, segundo outra história, terá dito numa aula, talvez ao ser incomodado por um pedido de esclarecimento de um aluno, depois de eu ter dito o que disse, só Deus sabe aquilo que eu disse. Esta anedota, porém, nunca me convenceu. Imagino que o próprio Deus não sabe ou soube alguma vez aquilo que Hegel disse.
sexta-feira, 1 de novembro de 2024
Broas dos Santos
Mais do que a totalidade dos santos, o que aqui se comemora no dia de hoje é as broas dos Santos. As famílias faziam as suas, numa produção privada. Hoje, porém, as coisas ficaram entregues ao comércio e a uma pequena indústria caseira. O resultado, deve-se reconhecer, é bastante bom. O facto de haver um mercado e de os fazedores de broas estarem em concorrência levou a um certo esmero na produção dos diversos espécimes. Já experimentei uma de café e outra de mel e nozes, compradas na frutaria aqui ao lado. E experimentar foi mesmo experimentar e não deixar-me arrastar pela tentação que representam para mim. Comi metade de cada uma. Esta frugalidade, tão em desacordo com o que acontecia outrora, mas num outrora cada vez mais longínquo, é o sinal dos anos. De um grande prazer, fica o pequeno consolo da sóbria experimentação. Contava ir para Lisboa. De manhã, ia ver o meu neto na sua aprendizagem de raguebista e almoçar em família alargada. A realidade, porém, não esteve de acordo, e tive de ficar por aqui, num dia cinzento, onde a melancolia se desprende das árvores e desliza, sorrateira, entre casas. Oiço a música de Carlo Gesualdo, o príncipe de Venosa. E tudo parece conjugar-se num espírito crepuscular. O melhor será levantar-me e assaltar as broas. Afinal, os Santos são hoje.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
O sentido
quarta-feira, 30 de outubro de 2024
Vulnerabilidade
Hoje já apanhei um susto. O que causou o susto, felizmente, mostrou-se menos causa de susto do que se chegou a supor. Ora, passado o susto, ficou o espaço para olhar para os efeitos do susto sobre mim. Descobri que o acumular dos anos não nos fortalece a invulnerabilidade. A imaginação, com as suas suspeitas, torna-se mais poderosa, quase maléfica. É nisto que tenho pensado nesta tarde que se tornou negra como a noite. Vejo que deveria estar a cair chuva forte, mas, se chove, é coisa fraca. Alegra-me o vídeo que, entretanto, recebi. O meu neto, nos seus quase seis anos, a marcar um ensaio num jogo de râguebi dos minis. E isto é o outro lado da vulnerabilidade, esta alegria por um pequeno feito do neto, que, na verdade, é apenas uma brincadeira de criança. Aliás, a experiência do aumento da vulnerabilidade está muito ligada à experiência de se ser avô. O que se passa com os netos afecta de uma maneira que não estava à espera. E, estou desconfiado, que a afecção não nasce da fragilidade deles, mas da minha, o que não é coisa fácil de aceitar.
terça-feira, 29 de outubro de 2024
Uma súbita metamorfose
Acabei de ler, no número de Outono de 2024 da revista Electra, um artigo do matemático Umberto Bartocci. Não trata de problemas matemáticos relevantes ou mesmo irrelevantes. O problema deste universitário reformado é o desaparecimento de um jovem físico siciliano, tinha 31 anos, em 1938. Discípulo de Enrico Fermi, Ettore Majorana era uma jovem estrela em ascensão no céu da física. De um dia para o outro eclipsou-se e, até hoje, não se faz a mínima ideia do que aconteceu. Imagine-se o conjunto de teorias que a evaporação do jovem prodígio terá originado. Leonardo Sciascia, um dos grandes escritores italianos, dedicou-lhe um romance, La Scomparsa di Majorana, não traduzido em Portugal, e as especulações e efabulações sobre o que lhe terá acontecido são imensas, segundo o texto de Umberto Bartocci. O próprio matemático, talvez cansado da Matemática, não se poupou e apresenta uma tese, também ela romanesca. Envolvimentos amorosos com mulheres casadas, filhas que terão passado a vida a chamar literalmente pai a outro, conflitos familiares, a começar, como não podia deixar de ser, com a mãe, tudo numa família siciliana. Isto apesar de ele ser tímido no contacto com as mulheres. De efectivo fica-se a saber que Majorana era um grande físico, nomeado aos 31 anos para cátedra de Física Teórica na Universidade Real de Nápoles e que desapareceu poucos meses depois da nomeação. Também se sabe que se filiou cedo, e por convicção, nas juventudes do partido nacional fascista. Bartocci termina o artigo dando a entender que talvez saiba mais do que diz e que, eventualmente, saberá o que terá acontecido ao discípulo de Fermi. O melhor seria que Bartocci escrevesse dois romances. Um sobre o desaparecimento e as razões que assistiram ao desaparecido e outro sobre a sua segunda vida, talvez, imagino eu, com outro nome. Ter-se-á perdido um grande físico, mas, devido a uma súbita metamorfose, descobriu-se uma bela personagem romanesca.
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Contribuição decisiva
Chegou a altura de nos lamentarmos por anoitecer tão cedo. A mudança da hora terá por finalidade, duas vezes por ano, gerar uma certa perturbação no ritmo de vida das pessoas. Haverá ainda uma outra finalidade, mas que está em vias de se tornar destituída de sentido. A de acertar o relógio pelo novo horário. Ora, nos tempos que correm, consulta-se as horas em muitos dispositivos digitais, os quais nos roubam o prazer do acerto, tomando-o eles próprios para si. É certo que existem ainda muitos dispositivos, entre eles relógios, que não fazem alterações horárias automáticas, mas lá chegaremos. Resta o prazer de perturbar a vida das pessoas. Diria que essa é uma das prerrogativas dos poderes deste mundo e, apesar da sensatez que seria evitar essas perturbações, aqueles que têm o poder de determinar a hora oficial não evitam a perturbação, pois se o fizessem seriam despojados de um poder, coisa que os perturbaria a eles. Entre a perturbação dos muitos que têm de seguir a hora oficial e a perturbações dos poucos que têm o poder de a determinar, estes últimos agem do modo mais racional possível. Defendem os seus interesses e evitam a sua perturbação por não poderem perturbar os outros. Esta é a explicação mais plausível jamais dada para justificar aquilo que não tem justificação, andar a mexer nos ponteiros dos relógios, ora adiantando, ora atrasando. Fico-me por aqui. Hoje já contribuí para decifração de um dos mistérios que atormentam o mundo.
domingo, 27 de outubro de 2024
Infelicidade e esquecimento
sábado, 26 de outubro de 2024
Degradação
Talvez não devesse mobilizar, nestes textos, referências. A erudição é uma doença e, neste caso, uma aparência de erudição não é uma aparência de uma doença, mas uma doença mais radical e deplorável. Contudo, nem sempre posso evitar o jogo das referências, tal como acontece hoje. No capítulo cinco, “The Degradation of Sport”, de The Cultura of Narcissism – American Life in An Age of Diminishing Expectations, Christopher Lasch defende que aquilo que corrompe uma performance desportiva, tal como degrada um ritual ou um drama, é a sua transformação em espectáculo. É nesta transformação em espectáculo que as actividades humanas se degradam. A seriedade que as habitou perde-se quando se transformam em entretenimento, uma forma de matar o tempo, de lidar com o tédio existencial. Não foi apenas o desporto, o ritual religioso (imagine-se uma procissão em Espanha) ou o teatro que transformaram em espectáculo para entretenimento. A própria acção política, na sequência da degradação do ritual religioso, tornou-se um espectáculo e degradou-se em entretenimento. O sério e o decisivo da existência tornaram-se um logro, um divertissement. É com esta palavra que Pascal, no início da modernidade, trata dessa fuga que impede o indivíduo de se confrontar com o enigma da existência. O desporto moderno, com as suas paixões, é um símbolo de uma existência impotente de enfrentar o mistério colocado pelo facto de se existir. É um símbolo totalizante, pois ele simboliza a degradação de toda e qualquer actividade humana, desde o ritual religioso até à práxis política.
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
Mais lento
A certa altura, a autora escreve: Desde que os meus movimentos se tornaram mais lentos, a floresta à minha volta ganhou, pela primeira vez, vida. Este elogio da lentidão está em conflito aberto com as exigências das sociedades modernas. Estas são uma revolta contra o prazer de saborear, pois saborear exige que se evite a pressa. Cada vez mais rápido é o lema em que se funda a modernidade. A pressa impede-nos de usar os sentidos na sua plenitude e essa alienação sensorial torna-nos cegos. A floresta de que fala a autora da frase citada, a austríaca Marlen Haushofer, é no romance, A Parede, uma floresta real, tanto quanto uma floresta ficcional pode ser real, mas também é uma metáfora para a existência. A velocidade torna-nos incapazes de saborear a existência, de perceber como ela é viva. É um facto que a narradora e protagonista do romance só chegou a essa hora em que os movimentos se tornam mais lentos depois de um acontecimento decisivo, mas sobre ele não falo. Quem o quiser descobrir que leia A Parede, um grande romance, e a sua grandeza não reside no número de páginas, mas na própria natureza da obra. Em vez de perorar sobre a aproximação do fim-de-semana, vou ler, sem pressa, as páginas finais de A Parede. Também eu cheguei a uma altura em que os movimentos se tornaram mais lentos.
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
Classificações
Olhei lá para fora e pensei que era sexta-feira. Uma ilusão de óptica. Apesar de a tarde de hoje se parecer com uma tarde de sexta-feira, ainda estamos na quinta-feira. A mente humana tem uma curiosa propensão para fazer classificações e, depois, integrar os fenómenos nessas categorias. Ora, essas categorias são arbitrárias e a inclusão nelas daquilo que acontece ainda é mais arbitrário. Contudo, é essa arbitrariedade que nos permite viver. Torna-se num hábito social ou psicológico, torna-se numa tradição ou num ritual declinado pelo indivíduo. Veja-se o caso de a classificação da tarde de hoje no grupo das tardes de sexta-feira ser completamente errada, ainda assim teve utilidade, pois confrontou-me com o facto de que nem tudo o que parece é, e, sendo assim, estas classificações estão abertas ao erro e não devem ser tomadas como dogmas, mas meras indicações para navegar no mar da existência. Ensina ainda outra coisa. Que há tardes de quinta-feira que se parecem com as de sexta-feira. O dia continua a aproximar-se da hora crepuscular, mas ainda há crianças no parque infantil, perfurando o ar com a verruma das sua vozes e o estile dos seus gritos. Não querem saber qual a tonalidade da tarde que vivem, apenas querem vivê-la na plenitude que toda a inocência implica. As vozes calaram-se, mas o ranger das roldanas das cadeiras de baloiço ocupou o palco. Não há pássaros no horizonte e isso é tudo o que me ocorre.
quarta-feira, 23 de outubro de 2024
Fado
Sou especialista em esperas num consultório médico. Uma coisa deplorável. Hoje, porém, aprendi a mitigar a avaliação dessas esperas. Uma ida às Finanças foi uma lição exemplar. Três horas e meia depois de chegar, fui atendido. O funcionário foi gentil, mas não tratei de nada, pois faltou um papel do banco, banco esse que através de um funcionário disse não ser necessário. O facto de ter sido atendido e a explicação que recebi de como podia tratar do assunto online amenizaram-me a indisposição. Falta, porém, ir ao banco e conseguir o papel que as finanças pretendem, coisa que não me parece que seja fácil e que me fique barata, segundo percebi da conversa de hoje. Antes de mim estava uma pessoa que foi toda a vida emigrante na Suíça e não percebia como é que estas coisas eram assim por cá. Como para tudo, também para isto tenho uma tese. É uma questão genética. Os portugueses, entre os quais me incluo, apesar de nem sempre passar por tal, têm um gene especial. Esse gene tem por função tornar complicado tudo o que é simples. Mal o português vê um processo simples, logo trata de o tornar complexo. Esse gene está intimamente conectado com os genes que suportam a inteligência, pois, apesar da decisão de tornar complexo o que é simples ser eminentemente estúpida, o português consegue encontrar uma teia de explicações que justificam a complexificação. O normal é a inteligência suportar acções e decisões inteligentes. Não é o caso em Portugal. O nosso gene da inteligência tem por função fundamentar decisões estúpidas. O mais interessante de tudo isto é que nós nem somos culpados. Que culpa pode haver em alguém que não fabricou os seus próprios genes, mas os recebeu? Nenhuma. É a isto que se chama fado
terça-feira, 22 de outubro de 2024
Instabilidades
Como ontem, o dia de hoje tem uma luz vibrante. O céu, de um azul-pálido, é sulcado por pequenas nuvens de uma cinza esbranquiçada. Formam uma frota dispersa, em fuga, depois de uma derrota em alto-mar. Quase se ouvem os gemidos dos marinheiros moribundos, mas será apenas a imaginação de um narrador sem ocupação. Talvez o bom tempo tenha vindo para ficar. Se assim for, chegará a hora em que se ouvirão lamentos pela falta de água, pelas terras secas, pelas culturas perdidas. Nenhuma novidade. A questão da novidade é interessante, talvez mais do que se pensa. Se pensarmos que tudo o que acontece é único e irrepetível, que nenhum momento é idêntico a outro, chegaremos, de imediato, à conclusão de que tudo o que acontece é novidade. Ora, a ideia que transportamos de novidade está fundada na oposição entre o velho e o novo. Ora, se tudo é constantemente novo, então não há lugar para o jogo de oposição entre velho e novo e, como corolário, não há qualquer novidade. Os móveis velhos daquela sala são, na verdade, continuamente novos, pois a cada instante que passa eles tornam-se outros, numa alteração contínua e sem fim. Eu, narrador deste instante, não sou o narrador que começou o texto, pois a escrita de cada letra me fez ser outro, por muito que eu afirme que sou o mesmo, que sou o velho narrador de há pouco ou de há dez anos. O problema é que não sabemos como lidar com o fluxo da diferenciação e consideramos como iguais coisas – isto é, tudo o que existe – que, constantemente, se tornam diferentes. Confundimos a nossa necessidade psicológica de estabilidade das referências com o facto de as coisas serem estáveis. Não são. Nós também não.