sexta-feira, 3 de maio de 2024

Palavras

O dia deslizou rapidamente. Ainda vai durar um pouco, antes de se entregar no crepúsculo, mas a luz já perdeu o viço e ninguém que passa nas ruas precisa de se acoitar nas sombras das árvores ou dos prédios. Ao escrever acoitar, pensei que estranhos e extraordinários instrumentos são as línguas que os povos vão criando na sua peregrinação sobre este pobre planeta. Basta uma simples cedilha e tudo muda. De acoitar passa-se para açoitar. De encontrar refúgio transita-se para o exercício da violência. Como pode uma coisa tão insignificante como a cedilha mudar o universo em que se vive. Em tempos contaram-me uma história que não tinha que ver com açoitar, nem acoitar, mas de algum modo se ligava com esta última palavra. Um professor, já não me recordo de quê, pessoa excessivamente religiosa, tinha um aluno de apelido Coito. Ora, coito é também a designação do acto sexual e, por isso, nunca tratou o aluno pelo apelido, imaginando, possivelmente, que cada vez que dissesse Coito cometia um pecado. E como se peca por pensamentos, temera cair num pecado mortal, ao chamar o Coito e pensar no coito. Asseveraram-me ser a história verdadeira, mas a imaginação das pessoas é coisa que, não poucas vezes, transborda para lá dos muros da verdade. Coito é, ainda, uma forma de dizer couto, e assim como há Coutos, também há Coitos. Já sou tão arcaico que me lembro de haver um comentador político da RTP denominado João Coito e nunca constou, apesar daquele tempo ser dado ao pudor e à censura, que o seu nome fosse censurado. Por aqui, coito também é um lugar que, nos jogos infantis, serve de abrigo. Se aquele professor em conflito com o coito tivesse de ensinar lógica, não sei como substituiria a palavra cópula que, numa proposição categórica, une o sujeito ao predicado. Quem bane o coito, por certo não admite a cópula. Chegou o fim-de-semana e com ele os dias inúteis onde nos acoitamos do açoite da realidade.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Destino

Entrámos em Maio no meio da incerteza climática. Os dois primeiros dias do mês parecem pagamento de juros ao Inverno. Uns juros moderados – talvez o Inverno não seja dado à agiotagem – pois o frio não é excessivo, a chuva é moderada e o vento não é tão exuberante que lembre um vendaval. O mais grave é que, neste momento, ainda não sei se lá pelas seis da tarde poderei ir caminhar junto ao rio. Dependerá dos humores de quem gere a grande empresa que fabrica o tempo. Acabei de ler o romance O Caminho do Sacrifício, do escritor alemão Fritz von Unruh. O destino das pessoas é mais estranho do que aquilo que se espera. Este aristocrata prussiano pertencia a uma família de militares. O pai era General e ele próprio foi militar. Deixou de o ser, para se dedicar à escrita, em 1911 e voltou a sê-lo com o início da primeira grande guerra. O Caminho do Sacrifício é uma obra baseada na sua experiência na mais longa das batalhas desse conflito. Contudo, não é uma obra para glorificar a guerra e promover heróis, mas um libelo pacifista. Foi este o destino de Unruh. Pertencer a uma tradição guerreira e a uma casta feita para o combate e tornar-se em pacifista. Quando os nazis chegaram ao poder, os livros de Unruh foram proibidos e ele emigrou para França e, de seguida, para os Estados Unidos. A primeira guerra mundial foi fértil do ponto de vista literário. Do lado alemão, por exemplo, há, para lá de Unruh, Erich Maria Remarque ou Ernst Jünger. É provável que a Europa nunca se tenha recomposto dessa guerra, que assinala o fim de um mundo que começara a acabar em França, no ano de 1789, e dá origem a um outro onde essa Europa deixou de ser o centro e começou a sua inexorável caminhada para a periferia onde se encontra nos dias de hoje. O destino das nações é tão estranho quanto o das pessoas. Aliás, não há coisa mais estranha do que o próprio destino.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Sem retorno

Sem se dar por isso, Abril de 2024 escapuliu-se para um lugar de onde não há retorno possível. Se tem de prestar contas – e que mês não terá as suas a prestar? –, não será aqui, mas naquele lugar para onde vão os meses que acabam. Talvez lá, mas isto é uma especulação sem dados empíricos, exista um tribunal, onde, após um processo rigoroso, o mês é julgado por aquilo que deixou acontecer no seu reinado e aquilo que deveria ter acontecido, mas não aconteceu. Será, parece-me, um tribunal de júri, mas também isto é incerto. Como qualquer outro mês, também Abril terá uma equipa de advogados que o defenderão. São especialistas no direito dos meses, gente treinada na barra dos tribunais e que a cada mês tem um cliente novo para defender. Os honorários serão altos – também as acusações são graves – e não se sabe como cada mês encontra dinheiro para saciar a voracidade dos seus defensores. Nesse reino para onde vão os meses acabados ou mortos, houve em tempos uma célebre disputa constitucional. Girou em torno de uma das penas propostas para o caso de um mês ser condenado, o que não é caso raro. Alguém defendeu, mas é incerto quem foi, que em determinadas ocasiões um mês, especialmente culposo, seria condenado a retornar ao calendário e ter uma segunda vida. Argumentou-se que isso possibilitaria a sua redenção, ao tornar-se mais propício a uma existência sensata dos homens. Os defensores da proposta viam na pena um instrumento de recuperação do condenado. Formou-se, de imediato, um partido oposto. Este argumentou que a pena de retorno ao calendário de um mês condenado feria dois direitos fundamentais. Em primeiro lugar, punha em causa o direito de um mês que, assim, não vinha à existência, pois o calendário teria sido ocupado por outro que já fizera o seu papel e agora regressava. Em segundo lugar, o retorno de um mês condenado seria a antecâmara de uma segunda condenação, quando acabasse e voltasse ao reino dos meses mortos para ser de novo julgado, o que contradizia uma norma constitucional que afirma que cada mês só pode ser julgado uma vez. O tribunal constitucional acolheu esta última interpretação e, a partir dessa decisão, já muito antiga, sabemos que nenhum mês que acaba torna a voltar às suas funções no calendário humano. Portanto, não voltaremos a ter um Abril de 2024.

terça-feira, 30 de abril de 2024

Curiosidades

O mundo, apesar de tudo, não deixa de ser um lugar curioso. Comprei no site denominado Trade Stories um romance, O Vestido Vermelho, do escritor sueco Stig Dagerman. O livro custou-me oito euros, incluindo os portes, enquanto novo custa dezasseis. A curiosidade reside não apenas no livro estar praticamente novo, tem apenas uma folha ligeiramente dobrada, mas no caso de a vendedora ter incluído na remessa um post-it (não daqueles amarelos, mas um com alguma animação) com agradecimento pela compra, um marcador de livros com uma reprodução de um excerto de um quadro de Monet, um autocolante que figura uma pilha de livros e, pasme-se, uma saqueta, devidamente embalada, de um chá, Earl Grey, da Lipton. Confesso que não sou um cultor de chá, nem do chá das cinco nem o de qualquer outra hora. Isso, todavia, é irrelevante. Nunca imaginei receber chá ao comprar um livro. A obra é publicada pela Antígona que se apresenta como Antígona Editores Refractários. Não tem um catálogo muito grande, mas tem muitas coisas que merecem ser lidas, como os livros de Stig Dagerman, Silvina Ocampo ou o romance O Caminho do Sacrifício, de Fritz von Unruh. Seja como for, ainda não será desta que me converto ao chá, agora que estou a limitar o café.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

O dia de hoje

Só cheguei aqui depois de jantar. Isto significa que o dia foi excessivo em ocupações e actividades. Valeu-me a caminhada junto ao rio, seis quilómetros para ajudar na pacificação com a balança. Em pouco tempo, o volume da água diminuiu assustadoramente, deixando já entrever o leito, anunciando o fio de água que será no Verão. Em contrapartida, a erva cresceu na proporção inversa à descida das águas. Espantosas estavam as papoilas nas margens, mas não havia quem colhesse um ramalhete rubro de papoulas, nem burguesas que descessem de burros e fizessem piqueniques, onde houvesse pão de ló molhado em malvasia. Tudo isso acabou há muito. Sobraram as posturas tolas, mas essas são eternas ou tão eternas quanto a espécie humana. Estarão inscritas no seu, isto é, no nosso ADN. Os dias estão enormes, a luz prolonga-se e é um prazer o fim da tarde na rua, como se fosse a promessa de um dia sem fim e de uma luz que não acaba. Uma ilusão, mas a vida seria impossível sem ilusões, há que cultivá-las com cuidado, na exacta medida em que estabelecem um laço com a existência, mas não mais do que isso. Vou ver a noite da janela do escritório, observar como é conspurcada pelas luzes artificiais, que apagam as estrelas do céu e matam o mistério do mundo.

domingo, 28 de abril de 2024

Palavra

A sabedoria que dirige a humanidade – falo de sabedoria e não de ciência – é uma coisa muito antiga. Veja-se o que está escrito no capítulo 15 do livro dos Provérbios, do Antigo Testamento. Ira destrói até sensatos; / Mas uma resposta submissa desvia fúria; Porém, uma palavra melindrosa desperta cóleras. / Uma língua de sábios sabe coisas belas; / Mas uma boca de tolos anunciará maldades. A tradução é de Frederico Lourenço. O excerto começa com a descrição dos efeitos de um estado psicológico, mas, de imediato, passa para o domínio da linguagem. O que o texto bíblico nos mostra é o imenso poder da linguagem no concerto e no desconcerto das comunidades humanas. Isto significa que o homem não tem apenas voz, não é um mero animal comunicacional, mas, ao ser dotado de linguagem, a sua palavra é uma forma de agir sobre o mundo e a comunidade em que vive. A regulação do discurso é essencial nas comunidades humanas, embora sejam aquelas em que ele foi menos regulado que se tornaram mais prósperas e onde a vida é menos desagradável. A linguagem articulada é um poder extraordinário, uma arma de grande calibre, mas, como todos os poderes e todas as armas, pode ser usada para o bem e para o mal, para enunciar a verdade e proclamar a mentira, para apaziguar ou para desencadear a guerra. Não é impunemente que se usa a palavra. Ela nunca deixa de ter consequências.

sábado, 27 de abril de 2024

Disrupção

Há qualquer coisa de errado na minha relação com o calendário. Ontem sentia que estava numa segunda-feira. Hoje, dou por mim a pensar que é domingo. O melhor será ir à oficina, talvez possam consertar o que parece avariado. Tive de ir a um aniversário. Centro e trinta quilómetros para lá, mais centro trinta quilómetros para cá. A aniversariante ficou um ano mais velha, mas eu, apesar dos quilómetros andados, trago a mesma idade e apenas mais umas escassas horas. Como se vê, o tempo é uma coisa muito estranha. O que para outra pessoa representou um ano, para mim não me acrescentou mais do que uma dezena de horas. Como estava perto do mar, estou com a sensação na pele de que passei o dia na praia. Não passei, nem sequer vi o oceano. Tudo o que escrevi até aqui refere situações disruptivas. Quando nascemos, penso, existe já a disrupção no ser que somos. Saídos do ventre materno, somos trabalhados e trabalhamos para curar essa disrupção, sentida como uma patologia. Com o passar dos anos, conseguimos ocultá-la e, a certa altura da vida, nasce em nós a convicção de que estamos curados. Pura ilusão. A pouco e pouco, ela começa a forçar o cerco que lhe montámos e as muralhas, sem se dar por isso, vão cedendo, abrem brechas, é o que se passa comigo, até que cairão, com um grande estrondo. As coisas são o que são e toda a sabedoria se resume a aceitar a verdade desta tautologia. O que não é fácil, diga-se.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Pessoa

Há pouco o céu estava negro, mas, depois de uns chuviscos, foi ficando cinzento. Cinzento, foi a cor desta sexta-feira. Ia para dizer segunda-feira, pois andei todo o dia a pensar que estava no início da semana, tendo de fazer algum esforço para não dizer coisas insensatas. Poder-se-á argumentar que escrevo por aqui muitas coisas insensatas. Logo, dizê-las não traz qualquer novidade. Seria um mau argumento, pois o facto de escrever coisas sem sentido aqui não implica que as diga publicamente. Aliás, poderei sempre dizer que utilizo este espaço narrativo para me purificar das coisas levianas que me ocorrem, e não são poucas. Este espaço está para mim como a tragédia, segundo Aristóteles, está para os gregos. É uma catarse da minha estarolice, a qual, catarse, me permite, na vida quotidiana no mundo real, disfarçar a irrazoabilidade que há dentro da minha pessoa. É verdade, eu também tenho uma pessoa. As pessoas pensam que são pessoas. Eu não sou uma pessoa. Eu tenho uma pessoa, como outros têm automóveis, acções em empresas, amores fatais. A minha fatalidade é ter de possuir a pessoa que sou. Tivesse eu comprado outra e tudo poderia correr melhor, ou pior, quem sabe? John Locke afirmava que uma pessoa é um ser consciente e reflexivo, dotado de memória e capaz de pensar por si mesmo. Já Kant define a pessoa como um ser autónomo e racional, capaz de agir segundo a lei moral. Apesar de terem perspectivas diferentes, tanto o inglês como o prussiano incorrem no mesmo erro. Ambos não percebem que pessoas é uma coisa que se compra – e se se compra, alguém a vende – e se usa ao longo da vida. Pode-se deixar em herança, mas até hoje não se conhece nenhum filho ou filha que reivindicasse essa herança. Como nenhum herdeiro quer a pessoa do pai ou da mãe, é o Estado que fica com ela em depósito. Passados anos – normalmente, várias décadas – o Estado privatiza as pessoas e elas entram de novo no mercado. A pessoa que eu tenho já pertenceu a outro ser humanos ou, melhor, a outros. E haverá de pertencer a mais, muitos mais, espero. Tudo isto porque a minha pessoa está convencida de que hoje é segunda-feira.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Um desvario

Imagino muitas vezes que a realidade é muito mais bela na escrita do que despejada dos artifícios da escrita. Por um desvario que ainda não entendi, ontem comprei um romance de Hermann Hesse. Tem por título Hans – Sob o Peso das Rodas. Na contracapa tem um excerto que diz O Outono estava a revelar-se mais belo do que nunca, pleno de tons suaves, amanheceres argênteos, meios-dias banhados de sol e cor e noites igualmente claras. Os montes ao longe adquiriam um profundo tom de veludo azul, os castanheiros refulgiam em tons amarelo-dourados e do cimo dos muros e cercas pendiam videiras de tons purpúreos. Este Outono escrito é, por certo, mais belo que um Outono real, talvez porque a escrita torna presente um todo que, na experiência dos sentidos, se dá de modo fragmentário. Não é que os fragmentos não possam ter beleza, claro que a têm, mas falta-lhes a completude. Não são epigramas, mas restos amputados de um texto que nunca se escreve. Falei em desvario por ter adquirido um romance de Hermann Hesse. E é verdade. Há décadas, li, com prazer, alguns romances desse autor alemão. Quando por volta dos trinta anos tentei voltar a eles, não o consegui, tinham alguma coisa de infantil. Ainda tentei mais uma vez ou outra, mas os resultados foram sempre os mesmos. Este de que falo nunca o tinha lido e trata-se do segundo romance do autor e, imaginei ao comprá-lo, ainda não estivesse contaminado pelo estilo e temáticas das suas obras de maior fama, que lhe terão valido o Nobel da literatura, além do Prémio Goethe. Veremos se a obra resiste ou se eu já estou numa fase regressiva da existência e volte a gostar daquilo que um dia gostei e depois deixei de gostar.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

O grotesco

Recebi uma das minhas revistas preferidas, a Electra. O assunto da edição da Primavera de 2024 é o excesso. Há um artigo de Christian Salmon com o título O excesso e o grotesco: as novas formas de soberania política. Como estou proibido pelo autor deste blogue de falar acerca de política, fico por três citações. A primeira diz O grotesco parece ter tomado conta de tudo. A segunda acrescenta Onde quer que se tenha conseguido impor, a tirania dos bufões combina os poderes extravagantes do grotesco com o domínio metódico das redes sociais. A terceira sublinha Nunca os bufões, os palhaços e os bobos tiveram tanta influência na vida política. Deixo de lado a análise de Salmon e pergunto-me de onde terá vindo este grotesco. Não caiu do céu, não foi trazido por uma invasão de alienígenas, não surgiu do nada, pois do nada, não se sendo Deus, nada se tira. O grotesco estava aí, estava dentro de cada um de nós à espera de se poder manifestar. Somos habitados por pulsões dadas à hipérbole e à incongruência e quando os quadros da racionalidade se rompem, essas pulsões, à falta de um Apolo vigilante, vêm à luz do dia. As redes sociais permitiram a manifestação dessas pulsões, as quais se foram acumulando até se tornarem um rio caudaloso. Antes de os bufões, os palhaços e os bobos terem chegado à política, já o grotesco e o ridículo que nos habita chamava por eles, os quais, ao descobrirem o mercado, se lançaram na concorrência, certos de terem uma mercadoria para oferecer aos que foram abandonados pela tocha de Apolo e se acolhem sob o tirso de Diónisos.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Simplicidade

Tive um dia cheio de complicações, pois elegemos a complexidade e esquecemos as coisas simples como um poema de Ryōkan: será que me fartaria dele / cem anos / passados / a contemplá-lo? / o orvalho sobre a eulália do meu jardim. Talvez o tradutor devesse ter escrito eulalia e não eulália. Cheguei a conhecer mulheres com o nome de Eulália, mas há muito que não encontro nenhuma assim chamada. Talvez volte ao uso, pois os nomes também têm épocas altas e baixas. A poesia de Ryōkan é feita de uma extrema simplicidade, talvez porque as nossas autênticas razões, e não aquelas que usamos para complicar a vida e o mundo, sejam simples: não é por não gostar do mundo / que vivo aqui / recolhido – / simplesmente / habituei-me a esta vida. Poderia dizer uma coisa semelhante: não é por não gostar do mundo / que não viajo / de terra em terra / apenas / habituei-me a estar onde estou. O hábito é o que torna as coisas simples e é por isso que se instigava – nos dias de hoje, não sei – a criar bons hábitos e a combater os maus. Ao dar uma vista de olhos pela imprensa descobri um grande tumulto em torno de uma exigência de uma escola lisboeta em relação à indumentária dos alunos. Parece que há alguns que a simplificam em demasia, pois confundem as salas de aulas com as praias da Costa ou da Linha. O erro é da escola, pois não encontrou a simplicidade suficiente que permitisse a esses alunos, e aos respectivos pais, perceberem que estarem sentados numa carteira numa sala de aula é diferente de estarem sentados na areia a olhar as águas do oceano. Esta diferença é complexa e há que, cartesianamente, a simplificar para que todos a possam compreender.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Da mudança

Presto sempre alguma atenção ao começo de um romance, às primeiras palavras. Diante de mim está um que começa assim: A minha família estava sempre a mudar de casa. Pelo menos, desde que me lembro. Esta família, por certo, é um símbolo dos tempos modernos, da incapacidade dos homens se enraizarem e permanecerem fiéis a um lugar, da sua necessidade contínua de mudança. Não se trata de uma revivescência do nomadismo, pois os nómadas – pelo menos certos nómadas – acabam por estar fixados a um certo percurso. É antes uma inclinação para a vagabundagem. Ir para aqui e para ali, não ter poiso certo. Esta paixão pelo movimento é a confissão de uma incapacidade, a incapacidade de se manter no seu lugar, de habitar o sítio a que se pertence, talvez porque tenhamos todos deixado de pertencer a um lugar ou porque temamos o horizonte que esse espaço nos oferece. Não sei, porém, como o romance se desenvolve, como é que Mario Benedetti, em A Borra de Café, tece a história daquele cuja família estava sempre a mudar de casa. Talvez daqui a dias o saiba, caso tenha tempo e o ânimo me incline para a leitura. Olho para a rua e vejo o calor. Aqui o calor não é coisa que apenas se sinta. Vê-se, ouve-se, saboreia-se, não sem uma careta, cheira-se. Com um horizonte destes, o meu sítio é-me adverso. Terei de mudar de casa?

domingo, 21 de abril de 2024

Falar com orquídeas

A minha neta mais nova tem estado por aqui o fim-de-semana, a contas com a Matemática e os humores algébricos da avó. Ela leva a ascese com alguma paciência, embora se confesse cansada de funções. Alegrou-a, porém, o estranho episódio de surpreender a avó a falar para uma orquídea que se tem mostrado renitente em abrir o caminho para a floração. O que terá pensado quando perguntou: mas a avó fala com as plantas? Eis um assunto delicado. Será que a minha avó, terá pensado, está a enlouquecer. A avó esclareceu que é um velho hábito e que as plantas não se dão mal com ele. E eu acrescentei que é muito mais interessante falar com orquídeas do que com muitas pessoas, pois as orquídeas nunca nos dão respostas idiotas, ao contrário das pessoas. Eu, acrescentei, também já tenho tentado falar com as orquídeas, mas devo estar surdo, pois nunca oiço o que dizem. Ela olhou-nos com ironia e comiseração e deve ter pensado que os avós deveriam estar à porta do hospício. Esclareci-a que há pessoas que falam com anjos que nunca viram ou santos que morreram há muito. Outros há que falam com cães e gatos, que apenas ladram ou miam. Há mesmo quem fale com pessoas que não merecem qualquer palavra. Que problema haverá em falar com orquídeas? E seja o que for que se lhe diga, assegurei, elas nunca contam a ninguém. São óptimas a guardar segredos. Talvez seja melhor passarmos às funções, disse ela, estupefacta.

sábado, 20 de abril de 2024

O que procuramos

Num ápice li as cem páginas de A Promessa, um romance da escritora argentina Silvina Ocampo. Quase a terminar, a narradora diz: Morrerei depressa! Se morrer antes de terminar o que estou a escrever ninguém se lembrará de mim, nem sequer a pessoa que mais amei no mundo. Existe, esta pessoa? Creio que existe. Nunca me abandonará e seguir-me-á como uma sombra divina que eu procurarei ao meu lado, porque tudo o que procuramos aparece de repente da forma mais inesperada. O que me prendeu de imediato não foi a situação existencial da narradora, nem o questionamento sobre a existência da pessoa que mais amei no mundo, um estranho questionamento, pois as alternativas são não ter amado ninguém no mundo ou ter amado todos os que amou com a mesma quantidade de amor. O que me feriu a atenção foi a certeza expressa de que aquilo que procuramos acabará por aparecer, ainda que da forma mais inesperada. Esta frase é a abertura da narrativa para uma dimensão metafísica que parecerá estranha ao leitor. Aquilo que aparece de forma esperada fá-lo no âmbito de um cálculo da razão. Ora, aquilo que chega da forma mais inesperada surpreende a razão e a sua capacidade de calcular. Está para lá da compreensão da razão a fonte de onde brota aquilo que procuramos e que surge inesperadamente. A essa fonte têm-lhe sido dados diversos nomes, mas deixemos a denominação de lado, e contemplemos o enigma de onde surge inesperadamente aquilo que procuramos.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Da inutilidade

A semana útil terminou. Começou a sacrossanta inutilidade. Comemoro este início espreguiçando-me na cadeira, enquanto penso na ordem moral do mundo, um problema que nos últimos tempos me tem vindo ao pensamento mais vezes do que seria suposto, caso eu me tivesse dedicado a fazer suposições. Um episódio ouvido permitiu-me acentuar o cepticismo sobre a espécie humana. A recompensa não cabe ao que se esforça e realiza, mas aos que fingem e movem influências. É verdade que estamos num mundo de influencers, o que é sintoma de que o projecto iluminista de abolição de tutores e afirmação da autonomia dos indivíduos anda pelas ruas da amargura. Pobre Kant, pensei. Os influencers são os tutores dos tempos pós-modernos que nos cabem viver, os seguidores são aqueles que insistem em ser menores, dessa menoridade culposa que insistem em manter, pois dispensa-os de usar o seu entendimento, como escreveu o dito Kant. Eu nem comecei mal o texto, com um elogio à preguiça sob o manto de uma loa à inutilidade, mas logo caí em elucubrações fantasiosas sobre coisas que não interessam a ninguém. Deveria contentar-me com a certeza leibniziana de que vivemos no melhor dos mundos possíveis e aproveitar o tempo das coisas inúteis dedicando-me à inutilidade. Mas não foi isso o que fiz ao escrever este texto?

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Quinto email

Meu caro amigo,

Reconforta-me que não tenha excluído a possibilidade de me visitar. Temia-o e ainda o temo. Não sabe se há-de ler de princípio ao fim os cadernos que Eduína lhe deixou como herança acidental. Não tenho a certeza, porém, que tenha sido um acaso, mas que deliberadamente ela quis deixar-lhe alguma coisa. Disse-me que há muito não os abre, que só em certos momentos, inspirado por alguma coisa que não identifica, pega num e o abre ao acaso e lê uma página. Eu agiria de um modo bem diferente, mas há razões para isso. Sou mulher, sou mãe de Eduína, nunca se deixa de ser mãe, e sou mais velha. A escassez do tempo que me resta e a minha condição precipitar-me-iam para devorar essas folhas que lhe foram confiadas. Estive estas semanas sem lhe escrever, para evitar criar um hábito, que me levaria a ficar à espera de uma resposta sua para lhe tornar a escrever. Enquanto namorei o meu marido, trocar correspondência fazia parte do jogo amoroso, mesmo quando não era necessário, e raramente era necessário, pois vivíamos ambos na mesma cidade, havia o telefone e encontrávamo-nos sempre que queríamos. Enviar e receber cartas era uma certificação de um amor único, singular, como todos. Era o que pensávamos na altura. Hoje não tenho essa certeza. Havia uma inclinação literária, a necessidade de ficcionar os sentimentos, os desejos, os projectos. Sentia uma volúpia quando me sentava para escrever ou rasgava o sobrescrito e me dispunha a ler a carta recebida. Os da sua geração, encharcados em psicanálise, diriam não volúpia, mas um prazer erótico. Talvez fosse. Perdi-me. Isto não o interessará e tem mais coisas para escrever do que cartas, emails, devia dizer, a uma velha louca. Diga-me alguma coisa da minha filha, como a conheceu, ou qualquer outra coisa.

 

Lívia

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Um conflito

Como se constata neste blogue, e não poucas vezes, a realidade é uma coisa tendencialmente insuportável. Tem um pendor inexorável para destruir todas as excelentes ideias que a mente humana produz. Veja-se a vexata quaestio da máquina de movimento perpétuo. Uma óptima ideia. Por exemplo, um carro que ao andar gerasse a sua própria energia, sem necessitar de recorrer a combustível externo. Um carro desses poria fim à dependência do petróleo ou das baterias de lítio. Seria amigo do ambiente e padrinho do proprietário. Tudo vantagens inultrapassáveis. O pior é o tribunal constitucional, isto é, a realidade. Esta, enquanto tribunal superior de protecção da legislação constituinte da natureza, não permite que se fabriquem carros de movimento perpétuo. Argumenta que essa máquina infringe a primeira e a segunda leis da termodinâmica e por isso não é permitido produzi-los. Quem é que quer saber dos humores da termodinâmica? Quem se interessa por uma energia que não pode ser criada nem destruída ou pela estucha da entropia? Ninguém de bom senso, mas a realidade, fincada nos poderes de vigilante da constituição da natureza, não quer saber daquilo que nós, seres humanos, queremos saber. Eis o drama em que mergulha a existência humana, o conflito entre os seus desejos e a realidade. É aqui que um racionalista se inquieta e interroga a teoria de Darwin. Qual foi a vantagem competitiva do homem ter desenvolvido faculdades que imaginam coisas extraordinárias que a realidade proíbe? Note-se que esta objecção ao darwinismo não é um argumento a favor do criacionismo, pois a pergunta que se colocaria a Deus seria idêntica. Por que razão foi criado um ser capaz de imaginar coisas extraordinárias que a realidade criada pela divindade se recusa a aceitar? Chega-se, assim, ao ponto central: foi o homem mal concebido ou a realidade mal arquitectada? Vou beber água, para me hidratar, já que não me é permitido criar uma máquina de movimento perpétuo.

terça-feira, 16 de abril de 2024

A injustiça

Fui consultar-me com a nutricionista. Um sucesso. Perdi setecentos gramas, transformei massa gorda em massa muscular, diminuí o perímetro da barriga, perdi gordura no fígado e atingi uma idade metabólica dez anos abaixo da idade real. Não fora o caso de ter uma costela racionalista, diria que aquela balança que mede o peso e mais não sei quantos parâmetros está enfeitiçada, pois o justo seria eu pesar mais, ter piorado nos outros parâmetros aferidos e a minha idade metabólica estar acima da real. Nestes últimos tempos, tenho-me portado mal, com excepção das caminhadas, às quais dedico algum desvelo. Com este exemplo, não pretendo falar da minha condição física, nem da minha idade metabólica, mas do problema da justiça. A balança que a nutricionista usa não é justa. Recompensa quem se porta mal e, apostaria, castiga quem se porta bem e segue as indicações ao milímetro, neste caso, ao grama. Um exemplo de que a ordem moral do mundo está fora dos eixos e um feroz contra-exemplo às teorias meritocráticas que enxameiam as cabeças daqueles que têm sucesso e estão convencidos de que isso se deve a si, ao seu esforço, às suas superiores qualidades e não a uma ordem metafísica que decidiu galardoar, neste mundo, os que não o merecem, e punir quem deveria ser apontado como exemplo de virtude. Não admira que um cavaleiro andante tenha de andar por aí a endireitar tortos, pois tudo o que parece direito neste mundo está torto.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Um ulisses em forma de livro

Podia contar aqui a odisseia de um certo livro que comprei em Agosto, mas que demorou tanto tempo a chegar que o vendedor – uma das maiores multinacionais que vende livros e mais mil coisas – decidiu, sem eu lhe pedir, devolver-me o dinheiro, muitos meses antes do livro chegar. Pois ele acabou por chegar, lá por volta do Natal e vinha de perto, de França. Contudo, às minhas mãos só chegou ontem. O que me interessa não é a aventura deste Ulisses em forma de livro, até porque não sou nenhuma Penélope e comprei outro, noutro lado, mas a profissão do seu autor. Traduzindo para português, ele é engenheiro de pesquisas em ciências políticas. Talvez exista uma explicação básica para este título, mas a minha ignorância não a consegue descortinar. Podia ser engenheiro de minas, concebendo pesquisa de metais nobres para enriquecer o mundo, mas não. O nosso engenheiro engenheira em ciência política. Será que pesquisa aí metais nobres? Não me pronuncio sobre isso, pois essas considerações estão-me vedadas. Em Portugal, por certo, não passaria de um cientista político, com um pouco de sorte seria um politólogo, mas nunca um engenheiro. Isto mostra a desgraçado mundo em que vivemos. Vê-se como a política está submetida à técnica e deixou de ser uma arte. Não era disto que queria falar, mas quando ia começar esqueci-me do tema que tinha escolhido e até agora ainda não emergiu do abismo do meu inconsciente, onde se encontra recalcado, talvez por um trauma infantil.

domingo, 14 de abril de 2024

Uma queda

A nossa cultura, aquela que se denomina, com certa imprecisão, ocidental, é muito sensível ao tema da queda. A queda do império romano e a queda da monarquia absoluta em França são dois exemplos recorrentes do tema da queda. Todas as quedas do Ocidente se fundam em duas outras quedas mais originárias. A queda de Tróia, na vertente helénica, e a queda de Adão e Eva, na dimensão judaica. Qual destas quedas será o protótipo da queda que dei hoje ao caminhar? Ia muito meditativo na caminhada diária, com vista a acumulação de pontos cardio, até que me sinto a perder o equilíbrio, o corpo a desarmonizar-se, numa fuga para a frente, a descompassar-se, eu a ter, por instantes, a ilusão de que me iria reequilibrar, e logo a triste realidade a manifestar-se nas mãos e joelhos pregados na terra. Uma sensação de humilhação, a certeza de que o corpo nem sempre é um animal obediente. Como estava num sítio sem ninguém, deixei-me ficar sentado à espera que de recuperar do estupor que me tinha atingido. O que me preocupa, agora, não é o efeito do evento num dos joelhos, mas o enquadramento conceptual da minha queda. Ela fundar-se-á em que queda originária, na de Tróia ou na de Adão e Eva? Como foi uma queda física, parece sensato dizer que esta é uma queda herdeira da queda de Tróia. Contudo, há argumentos poderosos para recusar essa tese. A queda de Tróia foi, para nós, um acontecimento positivo. Foi o nosso lado que fez cair uma força ameaçadora. Ora, nada me fez cair a não ser eu próprio e não consigo descortinar nada de positivo no acontecimento. Isto inscreve a minha queda na linhagem da queda de Adão e Eva. Caíram pelas suas próprias mãos. No meu caso, caí pelos meus próprios pés. Com isto consigo provar que existem quedas físicas que são emanação de quedas espirituais, o que para um domingo de Verão, apesar de estarmos na Primavera, não é nada mau.

sábado, 13 de abril de 2024

Sugestões climáticas

Por aqui, o Verão já chegou. Veio impiedoso a coruscar como um relâmpago na noite. Pobre S. Pedro, perdeu a capacidade de gerir o clima. O que me admira é não existir uma assembleia de accionistas do clima para deliberar sobre a mudança de CEO da empresa. Talvez estivesse na altura de se introduzirem algumas alterações no topo e deixar o santo gozar de umas merecidas e eternas férias. Por certo, não faltarão santos com competência e aptidão para gerir o clima nestes tempos de incerteza. Caso não existam, o que me parece improvável, sempre se pode canonizar alguém que conheço bem o assunto. O mais indicado seria santificar um meteorologista. Isto sou eu, um narrador infeliz com os calores, que digo, mas não quero intrometer-me num assunto que só me diz respeito enquanto consumidor e não enquanto accionista. É verdade que tentei comprar acções na empresa que gere o clima, mas já elas tinham sido todas vendidas, o que mostra que é um bom negócio. Sempre podia organizar uma associação de consumidores, mas falece-me a disposição para a militância e mesmo para a milícia. Também me tem ocorrido a possibilidade de o governo acabar com o monopólio actual da gestão climática. Poder-se-ia abrir o mercado a meia-dúzia de empresas, cada uma com um santo por CEO, e as pessoas optavam por aquela que melhor proposta lhes fizesses. Seria uma efectiva liberalização do clima, a não ser que elas, as empresas climáticas, se mancomunassem e combinassem os preços, formando um cartel. Logo, se haveria de nomear uma comissão reguladora para repor a concorrência e multar as empresas. Esta é uma ideia que pode resolver o assunto ou então fazer com que S. Pedro volte a pôr uma mão de ferro sobre o que pertence a cada estação e regular as coisas como deve ser.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Poeticidade do mundo

Em tempos mais recuados, havia uma física – talvez o mais certo seja falar de uma química – mais interessante do que a actual. Tinha na base quatro elementos, a partir dos quais se compunha a realidade. A terra, a água, o ar e o fogo. Em algumas versões, acrescentava-se um quinto elemento, o éter, elemento do mundo supralunar. Havia, também, uma versão mais interessante, a de Anaximandro de Mileto. No fundamento de tudo, há uma matéria-prima a que dá o nome de ἄπειρον (ápeiron) que se traduz por ilimitado, aquilo que não tem limites. De lá são segregados os contrários que compõem o mundo, o qual retornará para essa matéria indiferenciada. Estas físicas – ou químicas – tinham uma natureza poética e se não são verdadeiras, não deixam de ter o seu encanto. Faziam parte de um mundo encantado que, muitas vezes, parece perdido devido à racionalidade que atingiu os campos da ciência, da filosofia, da moral, da economia e da política. Isto se nos deixarmos cegar pelas as aparências. A poeticidade do mundo emerge continuamente, mesmo nas áreas onde a razão exerce o seu império. Os modelos nas ciências têm uma natureza análoga às metáforas, na política, mal se raspa um pouco na crosta, logo emergem mitos, o mesmo se passa nas outras áreas. Muitas vezes, essa poeticidade é uma luminosa forma de encantamento. Contudo, também assume formas tenebrosas, como acontece na História, a qual tem por motor um conflito de mitologias (e não de ideologias, como se supõe) que se opõem e digladiam. O mundo encantado não é um mundo apenas luminoso. Ele é composto por luz e trevas. Trevas essas que estes últimos séculos, apesar do esforço encarniçado, nunca conseguiram iluminar e eliminar, como se pode ver pelo estado actual do mundo. Hoje é sexta-feira e devia ter pensado noutra coisa, como uma estadia junto ao mar, mas não me ocorreu que aí haveria a água do mar, a areia da terra, o ar soprado pelo vento oceânico e o fogo do sol. É o que faz andar distraído.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Boudin : black pudding

É muito triste uma pessoa receber uma mensagem e não conseguir decifrá-la. Foi o que aconteceu comigo. Num livro comprado online num alfarrabista inglês, vinha um pedaço de papel branco, com forma quadrangular. Nele estavam escritas cinco palavras numa certa língua. Cada uma delas era seguida por dois pontos e depois uma eventual tradução numa outra língua. O pior é que quase tudo está escrito com uma letra indecifrável. Apenas consegui perceber que as palavras da esquerda eram em francês, pois a única legível é boudin à qual corresponde, em ingês, black pudding. A mensagem secreta por que esperava, se ela lá está, é indecifrável. Não tenho nada contra, pelo contrário, as morcelas, mas não consigo, nem metaforicamente, ligá-las a uma mensagem secreta ou mesmo manifesta. Pensei em enviar o papelinho para a criptografia do exército, mas imaginei que isso poderia gerar uma crise internacional, não se vá dar o caso de o livro, onde vinha o papel, ter sido propriedade de um espião. Se nunca sabemos por onde andaram os livros novos, quanto fará os usados, embora este, o portador da mensagem, não tenha sinais de uso, dando a ideia de que o papel foi lá metido para que eu o encontrasse. O que justifica esta última afirmação? Várias coisas. Em primeiro lugar, o facto de eu ter comprado online o livro. Depois, o livreiro ter-me enviado precisamente este exemplar e não outro, no qual poderia não existir qualquer mensagem. Haverá quem argumente que tudo isso não passa de um acaso, que ninguém anda por aí a enviar mensagens cifradas para o desconhecido e que um vocabulário traduzido de francês para inglês não é mensagem criptografada, mas a tentativa de um inglês aprender francês. Uma opinião respeitável, como todas as outras. O facto de ser digna de respeito, porém, não a torna verdadeira. Basta colocarmo-nos numa perspectiva teleológica para perceber que a verdade está do meu lado. A causa final de todo este imbróglio sou eu, melhor a minha leitura. Tudo foi organizado para que eu lesse aquela lista e para me humilhar, pois não consigo decifrá-la. Há dias que ainda temos menos coisas para dizer do que habitualmente. Hoje é um deles, por certo.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Família tradicional

Há por aí um charivari por causa de um livro que tem por título Identidade e Família. Como narrador, ainda não consegui perceber se a algazarra se deve ao livro ou ao que alguns dos seus autores não se cansam de proclamar. Talvez se deva às duas coisas e a outras que não descortino. Parece que o problema principal é o papel das mulheres. É um problema pertinente, fundamentalmente, para os homens. Estão cada vez mais sem saber o que fazer perante mulheres que não se sentem inclinadas para que sejam eles a determinar o que deve ser a sua, delas, vida. Ainda não consegui perceber o que atormenta a parte masculina deste nobre povo. A emancipação das mulheres é, também, a emancipação dos homens. Liberta-os de terem de pensar como controlar a vida delas, o que lhes dará tempo para concentrarem-se na gestão da sua, o que não é tarefa fácil. São dignos de dó os homens da Arábia Saudita. Têm de controlar a sua vida e a das mulheres, e alguns, não muitos, podem ter até quatro mulheres. Percebo que sejam poucos, pois controlar a vida de uma mulher já é o que é, quanto mais de quatro, o limite permitido por lei. Não estamos na Arábia Saudita, dir-se-á, e eu estou de acordo. Contudo, quando falamos de herança islâmica estamos a falar de quê? Uma parte dos homens portugueses, mesmo daqueles que andam de cruz ao peito e pelam-se por ceias com cardeais, têm um gene mouro, que nem a cruz nem os cardeais conseguem tornar recessivo. Por vezes, juntam-se, põem-se a pensar no bom que era a família tradicional. Por mim, acho que fazem muito bem e até lhes faço uma sugestão. No fim de cada sessão, podem cantar em coro e como hino o seguinte: Que família tão unida /tão discreta e ordenada. / Eram oito fora o gato, / eram oito fora o gato / para não falar da criada. / Da criada e do patrão / e da vizinha do lado. / É a crise da habitação, /é a crise da habitação. / É preciso ter cuidado. Nem sei por que razão aceitei narrar este episódio social, eu que não tenho interesses sociais e sofro de acentuada misantropia, a qual não cai do nada, como ontem salientei.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Misantropo por amor à razão

A Primavera parece estar a consolidar-se, depois de uns tempos de hesitação. As estações são como as pessoas. Precisam de tempo para chegar ao que são, embora existam muitas pessoas que nunca chegam ao que são e nem sequer alcançam o que não são. Não há ente mais estranho sobre este planeta, bola rochosa habitada por múltiplos entes estranho, do que o homem. Por vezes, se o olho com demora e suficientemente de longe, parece-me apenas um esboço, um protótipo mal concebido, a tentativa sem sucesso de criar um ser inteligente e digno de consideração. A inteligência é intermitente e em vez de ser digno de consideração é apenas digno de comiseração ou, em linguagem popular, digno de dó. Talvez a nossa dignidade resida no dó que suscitamos uns aos outros ou num qualquer espectador imparcial que nos observe como nós observamos formigas, borboletas ou moscas-do-vinagre. Comecei a tecer loas à Primavera e logo caí na mais insonsa – como detesto a palavra insossa – misantropia, num arremedo ou simulacro de ódio à humanidade. De súbito, assaltou-me uma saudade dos tempos em que me dedicava a considerar não a misantropia, mas a misologia, o ódio à razão. Talvez a minha misantropia tenha nascido de os homens, espécie da qual faço parte na categoria de narrador, cultivarem com afinco e de modo contumaz a misologia, de serem uns acabados misólogos.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Calorias

Imagino que Carl Schmitt não será personagem cuja companhia se recomende, pois ele, em vida, não hesitou em escolher as piores. Não foi o único. Contudo, teria o seu humor. Negro, dirão alguns. Numa das suas anotações, a de 2 de Julho de 1949, escreve: Que quereis vós? A massa: viver bem e ter as nossas distracções; to live and have a fun. Ser-vos-á servido isso mesmo; alimentos e ócio, com calorias e filmes.  Não sabia ele que as calorias iriam ganhar péssima fama e que, depois de entesourar essas mesmas calorias, os homens da massa – e aqui que ninguém nos ouve, ou lê, para ser mais preciso, quem são os homens que não pertencem à massa? – começaram a querer libertar-se delas. Por espirituosa que seja, uma visão é sempre parcial. Aqui, parcial nem significa inclinada a tomar partido, mas apenas que só pode ver uma parte da realidade. Schmitt não compreendeu que a acumulação feérica de calorias conduziria a um movimento de emancipação delas. A anotação de Schmitt é, na verdade, um lamento sobre o destino do mundo. A vida em vez de se dirigir para as coisas elevadas, dirigia-se para o gosto ancestral dessa massa. Contudo, é uma lamentação sem sentido. O facto de muitos se contentarem com calorias e filmes não impede que outros persigam outros desideratos. Schmitt lamenta, no fundo, não poder impedir esses muito de terem as suas calorias e as suas distracções. O mundo é um lugar suficientemente amplo para que o contentamento de uns não impeça o contentamento de outros. Estas anotações, escritas entre 1947 e 1958, foram publicadas com o título Glossarium.

domingo, 7 de abril de 2024

Pegada ecológica

Pergunto-me, por vezes, qual será a pegada ecológica de cada texto que publico aqui. Não faço a mínima ideia, embora devesse fazer. Imaginemos que era enorme essa pegada. O melhor seria pôr fim a estes escritos. Que razão haverá para poluir o planeta, só porque se se acha no direito de publicitar as coisas sem nexo que chegam à alma de um narrador desprovido dela? Nenhuma. Ocorreu-me uma coisa. Suspensão do texto. Peço desculpa por esta interrupção. O programa segue dentro de momento. Interlúdio musical. Em fundo, as Quatro Estações, de Vivaldi. Já volto. Retorno ao serviço. Ocorreu-me que este problema já terá ocorrido a muitos outros e que deve haver alguma forma disponível para medir essa pegada. Procurei e descobri uma. Graça à simpatia da Inteligência Artificial. Submeti o blogue a um exame num site sugerido. Obteve um A, a segunda nota mais elevada, logo a seguir ao A+, e ainda teve direito ao seguinte comentário: Tomado globalmente, é mais limpo do que 86% das páginas web. Com tanta limpeza, não será razão para pôr fim à publicação destes tristes textos. Talvez tenha de encontrar outra razão, caso me apeteça eutanasiar o blogue. Seja como for, agora não me apetece. Voltaram as poeiras africanas, está uma luz túrbida, mas não túrgida. Repare-se nestas duas palavras, túrbida e túrgida. Basta trocar um b por um g para que se vá do turvo ao inchado. Está uma luz turva, sombria, inquietante, mas será que estará inchada? Não me parece, pelo contrário. A luz do dia está túrbida, mas não túrgida. E isso faz toda a diferença. Um pássaro meu vizinho repete ao infinito uma sequência de sons sempre igual. Música minimal repetitiva. Esforço-me para a compreender, mas falta-me uma pedra roseta para conseguir decifrar o mistério da fala dos pássaros.

sábado, 6 de abril de 2024

Sábado sem sol

Está uma chuva de cães, mas o alcatrão parece seco. Cobre-o a poeira vinda das Áfricas, pois são muitas e plurais as Áfricas. Também as poeiras são de diversa índole e deixam-se dedilhar por mãos de todas as texturas. Uma investigação botânica mostrou-me que são seis as orquídeas floridas. O friso compõe-se. Ainda vejo um pouco de uma das ameias do castelo, mas mais uma ou duas Primaveras e ela ficará escondida dos meus olhos. E quando estes a procurarem só encontrarão as agulhas verdes do pinheiro, ali posto para crescer e conspirar contra a minha visão. Dormi muito pouco e, nos dias que se seguem às noites em que durmo muito pouco, sinto a tentação de adormecer sentado, mesmo se faço alguma coisa, como neste momento, em que escrevo, quase sonâmbulo, esta narrativa de uma gesta destituída do calor da aventura. Sábado sem sol. A luz esbranquiçada paira sobre a copa das árvores, toca ao de leve a parede das casas, repousa como se fosse um grande lago de águas paradas. Deveria fazer um inventário dos sons que oiço, talvez uma descrição fenomenológica com esperança de encontrar, por exemplo, a essência do canto dos pássaros meus vizinhos. Nos prédios da frente, há anjos sentados nos telhados. Fumam e bebem cerveja, mas não consigo ouvir o que dizem. Sem pulmões e sem fígado, é indiferente o que fumam e o que bebem, e isso expressa-se nos seus gestos, no desdém com deixam o fumo evolar-se das narinas ou na displicência com levam as garrafas à boca e deixam deslizar a cerveja pela a ausência dos seus corpos. Um retirou-se. Voou para longe, alguma alma o chamou, como nós chamamos um táxi. Com pressa de chegar ao destino.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Meditações

Chegou sexta-feira e nem dei por ela, ocupado com a trama do dia, a fluência das horas, o deslizar do cardume insensato dos minutos, esses peixes devoradores de carne, aliados eternos do tempo, inimigos jurados da eternidade. De súbito, oiço dentro de mim uma voz. Chega de disparates. O que se quer é uma prosa enxuta, clara e distinta, pronta a servir evidências aos esfomeados de certezas. Então, dedico-me a enxugar as palavras, torço-as e retorço-as, até que percam a humidade e secas constituam a tal prosa incomparável, sem ceder à tentação dos tropos, ao vestígio retórico que anima qualquer narrador. Retomando a sexta-feira, constato que a dilapidei sem vantagem, mas não o pude evitar, pois a realidade tem peso sobre qualquer um e ainda mais sobre mim. Deveria ir caminhar, entregar o corpo à azáfama de andarilho, mas finou-se-me o apetite atlético. Fico por casa a cogitar sobre os dias perdidos, sabendo que não há dia nenhum que não seja perdido. Alguém, alguma vez, recuperou do passado um dia que passou? Que eu saiba, ninguém. Agora poderia escrever uma longa meditação sobre a irrecuperabilidade dos dias, pensar sobre o seu mecanismo, pois cada dia é uma máquina que se deteriora irreparavelmente no decurso da sua existência. Como todas as outras. Prefiro, antes, investigar se há ainda amêndoas de chocolate e canela cá por casa.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Sabedoria suprema

Talvez tudo se tenha estragado quando Milton se lembrou de afirmar que Conhecer o que está diante de nós na vida quotidiana é a sabedoria suprema. Não é claro aquilo que o poeta quer dizer com o que está diante de nós. A interpretação feita é que o que está diante de nós na vida quotidiana é essa vida quotidiana, com os seus afazeres, os nossos desejos e os nossos interesses, os nossos temores, em resumo a nossa quotidianidade. Nada de metafísica, mas a física de cada dia é o objecto da sabedoria suprema. Essa quotidianidade cresceu monstruosamente e tomou conta da vida de toda a gente. Podemos imaginar, porém, que Milton queria dizer uma outra coisa. Por exemplo, a vida quotidiana é um símbolo diante de nós daquilo que está para além dessa quotidianidade, saber interpretar o símbolo é a sabedoria suprema. O problema é que a interpretação do símbolo não será transmissível, é sempre uma interpretação existencial e privada, o que tornaria a sabedoria suprema coisa privada, não socializável e não partilhável. Por certo, não será esta a interpretação dos puritanos aos quais Milton pertencia. Querem devolver o homem à sua realidade, transformá-lo num consertador das coisas que saíram fora dos eixos e nisso estaria a sabedoria suprema. Estamos longe da douta ignorância de um Nicolau de Cusa ou do só sei que nada sei, de Sócrates. A visão de Milton vai desembocar no activismo e na mobilização geral e contínua do homem e dos materiais do mundo. Vivemos num mundo configurado pela quotidianidade miltoniana, dirigidos pela virtude puritana do calvinismo. A isto não será estranho, porém, a percepção de se viver numa crise irreparável e de se desconfiar que a sabedoria suprema se encontra em qualquer outro lugar, para o qual desconhecemos o caminho, pois não sabemos de mapa ou de bússola que nos oriente.