Em dias sombrios como o de hoje, penso nas verdades eternas. Não nelas mesmas, mas numa suspeita que há em mim. Essa suspeita diz: como podes tu, ser efémero, finito e limitado, pensar naquilo que é eterno. Uma verdade eterna seria qualquer coisa que se manteria verdadeira por toda a eternidade. O problema está na expressão qualquer coisa. Qualquer coisa significa aqui uma proposição, uma afirmação. Tudo isto supõe que, em primeiro lugar, que o pensamento humano, na sua finitude, consegue captar aquilo que é eterno e, depois, que a linguagem o consiga expressar com uma exactidão tal que assim se manteria por toda a eternidade. Uma fantasia. O melhor que consigo arranjar, num dia como o de hoje, é uma ideia mais plausível: a consciência que temos da nossa mortalidade abre em nós um desejo de continuidade. E como todo o desejo, o de persistir é infinito. Daí a ideia de eternidade. Isto não significa que não existam coisas eternas e, entre elas, verdades eternas. Significa apenas que para nós, na melhor das hipóteses, se apresentam sob a forma de uma objecto do nosso desejo. Este é o sinalizador de algo que está fora da nossa experiência possível. Não pensamos no eterno. Desejamo-lo. Mesmo quando julgamos estar a pensar na eternidade ou em verdades eternas, apenas estamos na esfera obscura do desejo, da pulsão, na cabana de eros e não no palácio do logos. Agora, porém, vou ver se chove. A vida é feita de coisas prosaicas.
Peregrinatio
ad loca infecta
sábado, 25 de outubro de 2025
sexta-feira, 24 de outubro de 2025
Emmanuel e Immanuel
Terá nascido em 1688 e morrido em 1772 e foi, durante parte substancial da sua vida adulta, um respeitável cientista. Emmanuel Swedenborg, um sueco, interessou-se por matemática, geologia, anatomia, fisiologia, astronomia. Esta amplitude de interesses não era rara naqueles dias. Por volta dos 56 anos, porém, teve uma série de sonhos, visões, experiências místicas. Estas aventuras culminaram com uma visão de Jesus Cristo, que, segundo Swedenborg, o terá instruído a escrever sobre assuntos espirituais. A partir de então, substituiu as múltiplas ciências pela sua muito particular teologia. Argumentou que se lhe tinham aberto os sentidos espirituais, o que lhe permitia comunicar com anjos, espíritos e visitar o mundo espiritual. A sua teoria mais conhecida é a doutrina das correspondências. Defende que o mundo físico é um reflexo do mundo espiritual, cada objecto material corresponde a uma verdade espiritual, o que não difere muito do platonismo. Um outro Emanuel – precisamente, Immanuel – agora alemão, e de apelido Kant, chegou a interessar-se pelo homónimo sueco. Contudo ao ler a obra principal, Arcana Coelestia ficou em estado de choque. Em 1766, escreveu Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik, o que significa em português: Sonhos de um Vidente, Esclarecidos por Sonhos da Metafísica. Kant nunca achou que Swedenborg fosse um charlatão, mas uma mente sonhadora fruto de uma doença mental ou de uma imaginação sem controlo. O problema das crenças do sueco residia, segundo o alemão, em que o primeiro ultrapassava os inflexíveis limites da experiência possível. Talvez seja neste momento que Kant descobre o caminho para se tornar o Kant que conhecemos. Não acreditava em sentidos espirituais, mas apenas naqueles que nos dão informação sobre o mundo, os prosaico cinco sentidos. O conhecimento do mundo espiritual, segundo o filósofo alemão, está-nos interdito. A metafísica, enquanto ciência, é uma impossibilidade. Ora, até aos 56 anos, Swedenborg não parece ter tido grande interesse por esse mundo metafísicos. O enigma, porém, não reside no sueco, mas no alemão. O que seria Kant se, aos 56 anos, tivesse o conjunto de experiências que teve Swedenborg? Tornar-se-ia um vidente sonhador ou procuraria um médico para se tratar?
quinta-feira, 23 de outubro de 2025
Outonados
Apesar de ameaçar chuva, o calor resiste e não se dobra a um Outono que consumou já o primeiro terço do seu percurso. Ontem, em conversa com um amigo reforçámos a consciência daquilo que é uma certeza. Este já não é o nosso tempo. Não nos estávamos a referir ao clima, ao desconcerto – ou ao desconserto – das estações, mas à época em que vivemos. O nosso tempo passou e não mais voltará. Isto, porém, será sentido por todos aqueles que chegam à idade a que já chegámos. É evidente – presunção e água benta cada um toma a que quer – que concordámos que, no mundo, se move qualquer coisa de tenebrosa que se prepara para enterrar os nossos luminosos dias, que na verdade, concordámos, também nisso, nunca foram muito luminosos. Estamos outonados, não tarda invernosos, e nem dos dias primaveris nos haveremos de recordar. Contamos os amigos mortos. São assim os dias de Outono.
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
Despovoamento
Numa entrevista, de 1999, dada à revista Arte Ibérica, citada pelo Público, João Queiroz dizia: Há gestos que tinham que ser e outros que podiam não ser… Por isso estou atento a como o meu corpo aprende os gestos. Agora, o pintor deixou de atentar ao modo como o seu corpo aprende os gestos. Morreu hoje, aos 68 anos. Deixa uma das obras fundamentais da pintura portuguesa da transição do século XX para o XXI. Fomos colegas de curso, depois ele abandonou os conceitos e escolheu a pintura. Trocou a lógica pelo gesto, mas, basta ver as suas obras, nunca abandonou a metafísica, uma forma muito própria de se relacionar com ela. É assim que o mundo se despovoa.
terça-feira, 21 de outubro de 2025
Avós
Lembrei-me das minhas avós, como elas eram no tempo em que descobri que existiam avós. Não foi, na verdade, uma descoberta. Elas estavam lá, quando nasci, no lugar que era o delas, com as suas especificidades, as suas diferenças, os seus olhares sobre o mundo. Lembrei-me delas ao ler um poema do poeta polaco Zbignew Herbert, com o título Avó. Herbert escreve sobre o que ela lhe contava e, fundamentalmente, o que lhe ocultou, o massacre dos arménios pelos turcos, para o poupar na sua infância, para lhe conceder vários anos de ilusão, sabendo que ele um dia o descobriria. Pergunto-me o que me terão ocultado as minhas avós, na esperança de que eu o haveria de descobrir. Talvez não existisse nada a ocultar. Ou talvez houvesse, mas o meu talento para a descoberta fosse e seja diminuto.
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Falar, falar, falar
Nas suas reflexões sobre a obra de arte, o escrito austríaco Arthur Schnitzler, escreve, no aforismo 78, de “Obra e Repercussão” (in Livros dos Provérbios e das Reflexões): A primeira pergunta do crítico deveria ser: Tu, obra, o que tens para me dizer? Mas, regra geral, isso pouco lhe importa. O seu primeiro impulso é antes: Agora, obra, presta atenção ao que tenho para te dizer! Uma experiência quotidiana mostra que esta atitude do crítico de arte se enraíza numa inclinação mais geral que há nos seres humanos. Raramente numa conversa, os interlocutores se prestam a escutar o que os outros têm para dizer. Seguem a divisa: Presta atenção ao que tenho para dizer. Se supusermos um observador não humano, mas dotado de razão, facilmente podemos imaginar a sua perplexidade perante a utilidade da conversação entre os seres da nossa espécie. Se esse ser for suficientemente perspicaz, porém, descobrirá que esses monólogos conjuntos dão um prazer aos interlocutores. Não o da intercomunicação e da partilha, mas o de cada um se ouvir a si mesmo, perante testemunhas. O testemunho dos outros é a prova de que falei para mim mesmo, claro, mas que consegui articular palavras e frases. Uma conversa em grupo é fecunda, não pela partilha de ideias, mas pela expansão do universo de testemunhas que podem provar, caso um tribunal as convoque, que cada eu fui capaz de falar comigo mesmo. A dura disciplina da escuta, se alguma vez foi praticada pela humanidade, há muito caiu em desuso, afectada pela má imprensa e por uma pedagogia social fundada no inexorável direito à palavra.
domingo, 19 de outubro de 2025
Destinos
É bem anterior aos gregos a ideia de que o destino dos heróis é decidido em concílio dos deuses. A grandeza de um herói não está na sua capacidade de moldar um destino, de dobrar o mundo às suas decisões, mas em cumprir e suportar um destino – por norma, adverso – que lhe é imposto. Isto para nós, homens modernos, é estranho, pois concebemos a grandeza fundada no livre-arbítrio e no poder de realizar aquilo que decidimos. Talvez por isso, um herói moderno, como D. Quixote, seja, na verdade, ridículo, ou destituído de qualidades, como Ulrich, do romance de Musil. A grandeza humana é, para o homem pré-moderno, não humana. O que os homens são, não são ou deixam de ser é-lhes dado pela decisão dos deuses. Resta saber, todavia, se essa decisão é livre ou fruto de um acaso que acaba por determinar os humores dos deuses quando se sentam para deliberar destinos humanos e, por certo, entregarem-se à bebida.
sábado, 18 de outubro de 2025
Manhã de sábado
Hoje não fui caminhar de manhã. Dormi mais do que é hábito. Quando a manhã já se inclinava para o meio-dia, saí, sentei-me na esplanada do café aqui ao lado e fiquei a saborear a frescura que ainda se fazia sentir. As acácias deixam amarelecer as primeiras folhas, mas ainda são um mar de verdura a caminho do céu. Havia gente em trânsito, mas ninguém com pressa. Pais com filhos pequenos, casais reconciliados, um ou outro solitário. Numa mesa ou noutra, havia quem lesse o jornal, mas agora esses leitores são raros. As pessoas preferem os telemóveis. Entram neles e perdem-se num labirinto, sem que um fio de Ariadne os conduza para a liberdade. Ali ficam à espera de que o Minotauro as encontre e devore. Os tributos são para pagar. Depois, levantei-me e dei um pequeno passeio pelas redondezas, e em todo o lado o espírito do dia era o mesmo. As manhãs de sábado, na província, são assim. Ou talvez de outra maneira, sei lá como elas são naqueles lugares onde não me encontro. Tenho de domesticar a tendência para a generalização, embora saiba que quanto mais particular é a experiência, mais universal é.
sexta-feira, 17 de outubro de 2025
Autenticidade
O hábito inclina-nos a pensar a autenticidade como sinónimo de sinceridade ou de veracidade. Contudo, essa qualidade está ligada, em primeira instância, à de autoridade. Não de uma autoridade proveniente de um desígnio legal, mas da autoridade de quem é autor. Assim, a autenticidade é a qualidade – ou a virtude – daquele que realiza alguma coisa, que a faz vir à existência. Quando tomamos a autenticidade no sentido de veracidade já estamos a perder um elemento essencial. O verdadeiro resulta do acordo entre um pensamento e a realidade que ele pensa. Por seu turno, a sinceridade é acordo entre aquilo que um sujeito expressa e aquilo que sente ou pensa. Em ambos os casos, perdemos a dimensão de realização e, com ela, a de autoria. A pessoa que ostenta a virtude da autenticidade é virtuosa não porque pensa verdadeiramente ou se expressa com sinceridade, mas porque faz acontecer algo no mundo. A autenticidade – para usar o jargão filosófico – pertence ao domínio da ontologia e não da epistemologia ou da ética.
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Acessórios
Num livro de 1932, A Arte do Cinema (Film als Kunst), Rudolf Arnheim salienta uma característica decisiva do cinema: o mais recente progresso do cinema consiste em tratar o actor como um acessório que se escolhe pelas suas características e… se monta no sítio certo. A constatação de Arnheim, porém, sofre de uma desatenção essencial. Não ao cinema, mas ao próprio homem. Não é o actor que, com o advento do cinema, passou a acessório a encaixar no sítio adequado. Isso acontece num mundo em que os próprios indivíduos são acessórios, sofrendo, não poucas vezes, a dor de não encontrarem o sítio certo que lhes deveria corresponder. Nas sociedades de castas ou estamentos, todos tinham o sítio certo, dado a priori. Quando essas estruturas se começam a dissolver e o indivíduo emerge no panorama social, ele torna-se um acessório, no duplo sentido da palavra. É acessório no sentido substantivo porque é uma peça de uma engrenagem, de um maquinismo. É acessório no sentido adjectivo porque não é, na verdade, fundamental para o movimento da máquina, podendo ser substituído a qualquer momento. O actor de cinema – uma arte mecânica – é a emanação desse indivíduo acessório de um mundo que, desde o século XVII, se tornou mecânico, num processo em contínuo aprofundamento. Somos todos acessórios na grande máquina social, substituíveis, a qualquer momento, por obsolescência ou por razão nenhuma, a não ser o arbítrio de um qualquer outro ser acessório, mas com uma posição mais elevada no mecanismo. Somos todos substantiva e adjectivamente acessórios.
quarta-feira, 15 de outubro de 2025
Pensamento
Há pouco passei os olhos pelos títulos de uma revista a sair em breve. Um deles reteve-me: Recuperar a hegemonia do pensamento progressista. Há aqui um equívoco doloroso. O uso da palavra pensamento. Onde há pensamento autêntico não há progressismo nem regressismo, não há revolução nem reacção. Muito menos um desejo de hegemonia. Tudo isto faz parte do não pensamento a que se dá, não sem correcção, o nome de ideologia. Pensar é abrir-se ao inesperado e comprometer-se com a verdade, seja do que for. Ora, a ideologia – qualquer que seja – usa os mecanismos do pensamento, as estruturas lógicas e as técnicas retóricas não para descobrir o que ainda não foi pensado e a verdade que aí reside, mas para impor um conjunto de simplificações sobre a ordem social e moral. Se há uma coisa incapaz de hegemonia é o pensamento, a acção mais frágil que um homem pode empreender em busca da verdade, a flor mais rara presente no jardim botânico da mente humana. Onde há hegemonia, ou busca de hegemonia, o que está em jogo não é pensar, mas alcançar ou manter o poder sobre os outros. Há palavras cujo uso deveria ser muito parco. Pensamento é uma delas, pois são raras as vezes que um ser humano, de facto, pensa.
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Sombras
Continuo a caminhar ao crepúsculo. Em vez de pessoas, cruzo-me com sombras, e também eu me transformo numa para quem comigo se cruza. A essa hora ainda está algum calor, mas ignoro-o tentando descortinar se existe alguém por detrás de cada sombra. O resultado é incerto. Por vezes, está lá um conhecido, outras um desconhecido. O mais das vezes, é apenas a sombra de coisa nenhuma. Às 19:15, confirmei pelo relógio, acende-se a iluminação pública e as sombras transformam-se. Umas ganham auréola, outras extinguem-se, como se lhes tivesse acabado o prazo de validade. Uma cola-se a mim, persegue-me, ultrapassa-me, retrocede e vigia-me. Reconheço-a: é a minha sombra. Isto é, sou eu.
segunda-feira, 13 de outubro de 2025
Um email
Hoje fui caminhar ao cair da noite. Esperava encontrar, ao crepúsculo, alguns anjos ou velhos deuses pagãos. Nada. Não sei onde se meteram. Que saiba não está a decorrer nenhum congresso de anjos ou concílio de deuses. Faltaram, uns e outros, ao encontro aprazado. Imagino que cada um dos bandos decidiu não vir por causa do outro. Fiquei sem companhia nas minhas andanças. Tinha-lhes dito que podíamos parar num bar de vinhos, sempre se conversava e se bebia um copo. Pareceram interessados, mas esqueceram-se. Talvez tenham algum conflito com compromissos ou a memória já não seja o que era. Entretive-me a observar os transeuntes, mas em nenhum encontrei um traço angélico ou um porte divino. Uma jovem mulher ainda me pareceu, ao longe, angelical, mas ao aproximar-me, o rosto foi-se transformando, de tal modo que, caso tivesse idade e condição para isso, nunca a pediria em casamento. Isto, porém, é uma presunção, pois nem tenho idade nem a lei autoriza a poligamia. Estes pensamento tranquilizaram-me e fizeram-me esquecer a desdita de um encontro falhado com agentes de outros mundos. Ficará para a próxima. Pelo menos é o que diz um email recebido mesmo agora. Não sei se enviado por algum anjo ou por uma divindade grega. Ah… parece que é de Afrodite. Pelo menos, sinto-me lisonjeado, apesar de posto ao longe.
domingo, 12 de outubro de 2025
Má-fé
No périplo que me levou do meu escritório, onde estava acantonado e em meditação transcendental para obter uma iluminação, à cabine de voto, onde exerci o meu direito de eleger, embora sem que a iluminação me chegasse, ouve-se dos transeuntes – vêm ou vão fazer o que eu fiz; também eles, pela cara que ostentavam, sem iluminação alguma – pedaços de conversas, mensagens truncadas vindas de mundos desconhecidos. Numa dessas conversas, alguém diz que fulano agiu de má-fé, tentou prejudicar beltrano. Uma coisa tenebrosa, pensei, sem saber quem eram fulano e beltrano, em que consistia a intenção dolosa e a deslealdade catalogadas como má-fé. Depois, ocorreu-me que a mais autêntica má-fé é a mentira a si mesmo, a negação da sua liberdade. Isto aprende-se lendo O Ser e o Nada, de Jean-Paul Sartre. Quando alguém tem de tomar uma decisão e decide não decidir, está de má-fé, está a negar a sua liberdade, embora nunca se possa fugir a ela. Decidir não decidir é ainda uma tomada de decisão, um acto de liberdade. Pensei que não era desta má-fé que sofria o fulano. Pelo contrário, agira mesmo de modo determinado e perfeitamente consciente da sua liberdade quando prejudicou beltrano. Uma maldade, talvez uma canalhice, mas ainda um acto livre em plena consciência, o que lhe retira o estatuto de má-fé. Pode-se ser mau de boa-fé, isto é, com plena consciência de que se está a ser malvado.
sábado, 11 de outubro de 2025
Canto de sereia
O Verão parece ter voltado. Talvez tenha sido contaminado pelo espírito do tempo, em que potências políticas de diversos tamanhos e graus de importância sonham tornar-se grandes. Não dou exemplos, pois eles abundam, e mesmo uma pessoa distraída acabará por tropeçar num desses casos patológicos. Esta é uma assunção política, que deveria ter evitado, segundo a orientação da casa. Decidi não me conter, mesmo que o autor fique furioso e me venha lembrar que ainda não foi decretada a autonomia do narrador. Voltando ao Verão. Também ele sonhará com um Grande Verão que irá de meados da Primavera até ao Verão de S. Martinho, antiga colónia do Estio, anexada há milénios pelo Outono. Se o Inverno, porém, se lembrar de declarar que também ele pretende reconstituir o Grande Inverno, acabaremos por ficar sem as duas estações mais apaziguadoras e cuja beleza suscita ora os encantos do amor nascente, ora a pacificação dos desejos ardentes. Também as estações do ano estão a sofrer da doença da polarização, embaladas pelo canto de sereia da radicalização.
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
Está a acabar
Está a acabar. As comitivas partidárias fazem, por hábito antigo e falta de imaginação, os últimos circuitos pela cidade. Buzinando como se fossem adeptos de um clube de futebol acabado de se sagrar campeão. Estou a mentir. Falta-lhes a convicção dos adeptos. Esperam que chegue a hora de jantar, para regressarem a casa, comer uma boa refeição e sair à noite, pois hoje é sexta-feira. O dia de amanhã é de desintoxicação, mas os candidatos que vejo pela rua não me parecem intoxicados. Cumprem o seu papel de modo administrativo e aguardam o resultado das urnas. Os que ganharem hão-de improvisar uma caravana com cachecóis e bandeiras, gastarão uns litros de gasolina, ferirão alguns tímpanos sensíveis, mas depois voltarão sossegados para casa como se nada se tivesse passado. Haverá um ou outro crente que estará convicto que o mundo mudou, mas este recusa-se cooperar. Não se pense que sou um adepto da não ida às urnas. Vou sempre, não porque espere uma redenção, mas porque tenho o dever de ir. E os deveres são por cumprir por amor ao dever.
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Absurdo
Por vezes, lêem-se coisas que se transformam, de imediato, em candeias. Como se sabe, ou talvez já não se saiba, uma candeia é um dispositivo tradicional de iluminação. O lido é iluminante. Foi o caso de um pequeníssimo texto, um aforismo, de Arthur Schnitzler, um escritor austríaco: Por mais absurdo que o mundo te possa parecer, nunca te esqueças de que, quer ao agires, quer ao não agires, estás a contribuir em boa parte para esse absurdo. Eu já tinha a sensação de que o mundo era absurdo. Também estava convicto de que a minha acção, muitas das vezes, se não sempre, era absurda. Agora, sei mais. Sei que tanto a minha acção como a minha inacção contribuem para o absurdo do mundo. E como corolário adquiri a sabedoria que também eu sou culpado desse absurdo. Sou culpado por actos e por omissões. O mais adequado será dizer, declinando todas as ferramentas culposas, que contribuo para o absurdo do mundo por palavras, pensamentos actos e omissões, como estes textos provam.
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Exílio
Aproxima-se a hora do crepúsculo. Depois virá a noite, mas a noite há muito que deixou de ser noite. É apenas um crepúsculo artificial e diferido. Tudo tem um preço. A vida cómoda tem como contrapartida o acantonamento da velha natureza numa ilha que ninguém sabe onde fica. Eu também não e não tenho disposição para me aventurar no mar tenebroso à sua procura. Fico com o artifício. Ao pescoço, trago um dispositivo que me vigia o ritmo cardíaco, registando com fidelidade – assim o espero – a sua marcha. Na ilha onde a natureza se escondeu, não o podia usar, nem escrever o que estou a escrever, nem sequer pensar o que estou a pensar, pois a natureza não pensa. Pensar é o artifício do homem para enviar a natureza para o exílio.
terça-feira, 7 de outubro de 2025
Palha
Jacques Maritain, referindo-se a Tomás de Aquino, diz que este leu todos os Santos Padres, e todos os livros então conhecidos, e que também sabia a Bíblia de cor. Podemos imaginar que Tomás era um ávido leitor, com tempo disponível para a leitura, mas também podemos especular que o acervo de livros existentes no seu tempo era reduzido, o que terá permitido não apenas ler tudo o que havia para ler, mas também escrever o que escreveu, com idêntica avidez. Ora, o mais notável é que a sua dupla avidez não foi obstáculo a que se tornasse santo. É certo que, a dada altura, após uma visão mística, durante a celebração de uma Missa, absteve-se de escrever, de tal modo que deixou incompleta a monumental Summa Theologica. Deu, ao seu secretário, uma razão plausível: Não posso, porque tudo quanto escrevi me parece palha. Ele não teria a certeza, mas confiou na aparência, na sensação subjectiva de um me parece. Terá sido essa confiança numa aparência que o libertou da avidez da escrita e, talvez, da leitura. Se se podemos imaginar que a porta para glória dos altares foi a tal visão, o deixar de escrever foi os passos que o levaram a transpor a porta. O seu exemplo, porém, não frutificou. Pelo contrário, desde o seu tempo que o volume das coisas escritas não deixa de se multiplicar exponencialmente. De tal modo, que não há na Terra, nem na soma de todos os planetas rochosos dos sistema solar, espaço suficiente para construir armazéns para guardar a palha produzida, a qual, na sua generalidade, nunca protegeu qualquer grão.
segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Queda no caldeirão
Tenho de me preparar. Não tarda e é hora de sair. Espera-me o cinema, embora nada nem ninguém me espere. Há dias assim, em que ninguém nos espera, nem sequer uma instituição, um animal, um objecto. Em contrapartida, também não espero ninguém. Uma espécie de empata técnico, como se diz nas sondagens eleitorais. Agora, que caminhamos para um acto eleitoral, pergunto-me se votaria em mim. A resposta parece-me óbvia. Nunca votaria em mim. Aliás, neste caso, sou um platónico. Uma pessoa sensata não quer governar. Isto não quer dizer que eu me considero sensato, mas que tenho um módico de imaginação que me permite criar a fantasia de ser sensato. Entrando na fantasia, comporto-me como uma pessoa sensata e recuso, de imediato, a possibilidade de me ver à frente dos destinos seja do que for. Aliás, acho extraordinária a desfaçatez dos candidatos, de todos eles. Apelar ao voto na sua pessoa revela um estado patológico profundo. Se fossem sensatos, se não estivessem doentes, diriam: por favor, não vote em mim, com tantos candidatos, por que infeliz razão me escolhe a mim? Vote noutro, por favor. Em vez de dizer mal dos adversários, elogiava-os. Eles responderiam na mesma modalidade. Que não, eles não eram merecedores do voto, e assim sucessivamente. Se isto deixasse o eleitor confuso, este teria sempre uma solução: sortear o candidato em que votará. De certa maneira, é já isso o que se passa. Por mais convicto que o eleitor esteja do seu voto, este não passa de um acaso. É um acidente, que não é reconhecido como tal. Tudo se tornava mais urbano e, fundamentalmente, mais educado. Que presunção alguém achar que é o melhor. Também é verdade que presunção e água benta, cada um toma a que quer. E parece não haver candidato que não tenha caído na pia da água benta, tal como o Obélix caiu no caldeirão da poção mágica. Melhor: não há candidato que não imagine ter caído no caldeirão do druida Panoramix.
domingo, 5 de outubro de 2025
Tempo humano
Um domingo feriado. Que diferença faz isso, se agora todos os dias são, ao mesmo tempo, domingos e feriados? Faz mais do que se possa imaginar. Imagine-se uma batalha entre o tempo cósmico e o tempo social. Um marcado pela indiferença absoluta, o outro pela diferenciação exaustiva trazida por convenções que servem como bússola. Entre ambos, existe outro tempo, o tempo humano, aquele que navega entre o cósmico, produto da natureza, e o social, produto da sociedade humana, um tempo que está sempre à beira de ser esmagado por eles. O tempo humano não é a mesma coisa que o tempo social, apesar deste ser criação humana. É antes um exercício de acomodação entre um e o outro, uma negociação sempre difícil com dois negociadores intransigentes. É preciso um grande talento para conseguir umas migalhas de tempo humano, um tempo em que a liberdade de cada um lhe permite moldar a experiência da duração em conformidade com aquilo que lhe está a acontecer, ora dilatando o seu tempo, ora diminuindo-o. Talvez tenha sido isso que sentiram os republicanos que há 115 anos proclamaram a República, ou Afonso Henriques que há 882 viu reconhecida a Monarquia e a sua pessoa como Rei. Pois esses acontecimentos não são nem cósmicos, nem sociais. Inscrevem-se no mundo cósmico e fundam o mundo social, dependem de um outro tempo, aquele que os gregos designavam por kairós (καιρός), que, sendo divino, é também a emergência do tempo humano.
sábado, 4 de outubro de 2025
Demasiado humano
Mais uma vez deparo-me com uma experiência absurda. Abro um livro que jazia numa estante e que juraria nunca o ter lido. Porém, sou confrontado com a minha letra nele, para além de sublinhados. O que me terá ficado desta obra, pergunto-me. A certa altura, encontro, grafada pela minha mão, a transcrição de uma frase do texto: A piedade ultrapassa o desejo. A frase vem de uma análise do romance Adolphe, de Benjamin Constant. Não sei como será em França, mas em Portugal o autor, nos círculos onde será conhecido, é-o menos pela sua dimensão de romancista e mais pela sua obra política. Fundamentalmente, um discurso pronunciado em 1819, em defesa do liberalismo: A Liberdades dos Antigos Comparada à dos Modernos. Contudo, o pequeno romance Adolphe, além de ter merecido referência na Poética, de Tzvetan Todorov, o tal livro que supunha nunca ter lido, terá desencadeado, no seu tempo, alguma controvérsia. No prefácio à segunda edição, o autor escreve: Mas todas essas supostas ligações são, felizmente, demasiado vagas e desprovidas de verdade para terem produzido qualquer impressão. Também não haviam nascido na sociedade. Eram obra desses homens que, não sendo admitidos no mundo, o observam de fora, com uma curiosidade desajeitada e uma vaidade ferida, e procuram descobrir ou provocar escândalo numa esfera acima da sua. Referia-se à acusação de que as personagens romanescas seriam a capa de pessoas reais. A resposta combina vanglória e crueldade. Vanglória porque se louva como fazendo parte de um mundo onde poucos seriam admitidos. Fez parte do círculo de madame de Staël, de quem foi amante. Crueldade, porque sublinha nos críticos a exclusão desse mundo a que não teriam acesso. Tudo muito humano, demasiado humano, apesar da piedade de Adolphe ultrapassar o desejo por Ellénore.
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
Galateia
Sexta-feira. Perdido o amante, Galateia demora-se nas ondas, faz delas uma casa para a eternidade, pois a eternidade é o horizonte de todos os seres que vivem, sejam animais, deuses, ou homens. Quando um homem se senta numa esplanada perto do mar e contempla com demora a linha onde céu e oceano se fundem, o que ele vê é uma manifestação não apenas daquilo que não tem limites, mas também do que não pertence ao casulo do tempo. Ao demorar o olhar, sai dos limites terrestre e, por momentos, perde-se no que está fora do mundo. Então, Galateia passa diante dos seus olhos, brincando nas ondas. Como Méris, ele chama-a. Vem até aqui; deixa que loucas, as ondas firam as praias! Mas a nereida não o escuta, perdida no seu jogo eterno, e ele levanta-se, vira as costas ao mar e reentra na casa do tempo, no lugar onde tudo tem um princípio e um fim.
quinta-feira, 2 de outubro de 2025
Poderes da palavra
Em 1580, no Livro do Cortesão, Baldassare Castiglione assevera que aquele que muito ama pouco fala. E Lourenço o Magnífico, citado pelo mesmo Castiglione, garante que os verdadeiros apaixonados têm a língua tão fria quanto o coração ardente. O decisivo é o olhar e não a palavra. Há aqui uma crença implícita. A verdade reside noutro lugar que não na palavra. Aquilo que os olhos dizem e aquilo que vêem é mais adequado do que aquilo que se pensa e se transmite através da linguagem. No encontro entre o olhar de um homem e de uma mulher, o amor torna-se presente. Nas palavras, apenas está representado. E é nessa representação que ele se mostra como falsificação. Contudo, uma língua fria, ao contrário do que pensa Lourenço, não é, necessariamente, o correlato de um coração ardente, pois a palavra tem poderes a que Eros, não sem prazer, se submete e que reclama, quando estes não estão presentes.
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Rei-Sol
Outubro entrou vestido de Verão. Calor, um sol sem piedade, um desejo de fugir daqui, para outras lados menos dados a abraços calorosos. Saí, ainda vagueei um pouco, mas logo me refugiei. Tenho um contencioso inultrapassável com o excessos do astro-rei, cujo império deveria, em muitas ocasiões, ser mais moderado. Se se meditar um pouco, percebe-se que o Sol está longe de ser um governante sensato e previsível. Atiça os fogos quando lhe apetece. Irrita-se sem que se saiba a razão e deixa que um frio vindo dos confins do universo atormente as almas, que se perdem no desvairo do rei, ora opulento nas vestes com que se cobre, ora mísero esfarrapado que se de esconde dos mortais atrás da nuvens densas, que amontoa nos céus para cobrir a sua vergonha. Tenho as persianas corridas para que ele não entre. Seria um hóspede não convidado e nunca se sabe lidar com hóspedes que não foram convidados. Só um equívoco fundado na ignorância, terá levado um certo rei francês a alcunhar-se como Rei-Sol.
terça-feira, 30 de setembro de 2025
Filhos de ficções
Setembro acaba hoje, embora não exista na natureza nada que seja Setembro ou Outubro. E aquilo que não existe não pode acabar, pois nem sequer chegou a ser. As convenções humanas são expedientes para lidar com o insólito de estarmos vivos, num mundo estranho, cheio de ameaças, mas também de oportunidades. Contudo, estas coisas que não existem na natureza, mas que são fruto de acordos, tornam-se obsidiantes, ocupando o espírito. Tudo isto terá nascido do medo de nos perdermos. Perdermo-nos no tempo e no espaço, as duas grandes condições de possibilidade da vida, mas também a razão de muitos conflitos. Por isso, submetemo-los à pesada geometria das convenções, que vão do calendário ao mapa, onde podemos desenhar o espaço que nos cabe, o que nos é favorável e aquele que devemos evitar. Toda essa geometria é uma ficção, mas é com ela que tecemos a nossa existência. Numa linguagem sem propósito, podemos dizer: do nada tirámos a possibilidade de sermos. Somos filhos de puras ficções.
segunda-feira, 29 de setembro de 2025
Experiências
Ontem não saí de casa para caminhar. Chovia. Hoje saí, mas o sol era quente, esquecido já da tristeza de ontem. Estes traços de volubilidade do tempo – melhor, do clima – deixam-me sempre perplexo. Não é por falta de experiência. São décadas e décadas perante estas alterações súbitas com que sou acolhido. Perturba-me a mudança e a inconstância não porque eu seja imutável e constante, mas porque sonho com um quadro onde a vida se desenrole com a suavidade das coisas que não mudam. Sim, eu sei. É um sintoma de velhice, mas o que posso fazer, se essa é a minha condição. Voltando a ontem, um acontecimento inesperado trouxe-me uma experiência a que me desabituara. Ia já o crepúsculo avançado, quando a electricidade faltou nesta zona da cidade. Demorou algum tempo o retorno da energia, o tempo suficiente para ver o adensar das trevas sobre a cidade. Essa, porém, não é a experiência fundamental. O que vi de mais decisivo foi a impossibilidade de ficar a sós com a escuridão, não porque me rodeasse a turbamulta, mas porque a escuridão foi proscrita na nossa cultura. Um clarão vindo de longe, de outras zonas onde a iluminação eléctrica se mantinha viva, invadia o meu espaço. Uma luz irreal, como se viesse de uma procissão de fantasmas de olhos ateados de uma brancura fosca. Depois, tudo voltou ao normal, embora o que cultivamos como a norma – estarmos sempre rodeados de luz – seja uma anormalidade, cujas consequências ainda não percebemos. O Outono finca-se nos pés e progride à procura da fortuna ou do encontro com o Inverno.
quinta-feira, 25 de setembro de 2025
Questão de enquadramento
Acabei de lanchar. Frugal, apenas uma dúzia, nem tanto, de avelãs. É preciso anotar estas trivialidades, não porque serão esquecidas, mas porque são a própria vida. Esta é o somatório de gestos sem importância, mas, no seu conjunto, têm a importância de uma vida. O que marca os tempos modernos é a ascensão do trivial. A alegria e a tristeza, a coragem e a cobardia, a beleza e a fealdade, tudo isso faz parte da banalidade, pois deixou de existir o enquadramento onde um gesto se revelava extraordinário. Aquilo que distingue as eras da existência humana é, antes de mais, o enquadramento. É neste que tudo se organiza e é ele que confere sentido. Coube-nos o da trivialidade e, contra isso, nada há a fazer. O nosso enquadramento é também o do excesso. Qualquer gesto que se faça, haverá milhões a repeti-lo. Por isso, é indiferente narrar o lanche ou uma aventura onde se combata contra moinhos de vento ou se mate um dragão. Se eu sair de casa e, numa esquina, matar um dragão, haverá milhões de “eus” a matar dragões, numa esquina, ao saírem de casa. Talvez tudo isto seja falso e a verdade seja mais crua: falta-me o talento para o não trivial e, assim, como avelãs para contar como a aventura a que tive direito, enquanto oiço o Canto Ostinato XXL, de Simeon ten Holt. A peça tem apenas quatro horas e oito minutos, por isso não pode ser considerada XXXL. Já a estou a ouvir há bastante tempo, mas devo ir a meio da aventura. Talvez não estejam, neste momento, milhões a ouvir o Canto Ostinato XXL. Talvez.
quarta-feira, 24 de setembro de 2025
Anotações
O Outono chegou – já na segunda-feira –, mas veio tão tranquilo que nem dei pela sua presença. Tenho com ele um tratado de amizade: declarei-o como a estação do ano preferida, e ele gostou da distinção. Também as estações do ano se deixam lisonjear e retribuem como podem. Olho pela janela para ver se as árvores já estão adaptadas ao tempo, mas as que vejo aqui ou são de folha perene ou amarelecem as folhas mais tarde. Imagino que as tílias da avenida já estarão outoniças, mas não me apetece confirmar. Oiço o ruído de uma sirene, a luz da tarde reverbera anémica na brancura do telhado do pavilhão desportivo da escola ao lado. Não está ninguém na praceta nem no parque infantil; talvez na esplanada do café haja por lá alguma alma cansada, mas também não vou verificar. Faço um esforço para identificar o dia da semana; depois, não sei o que fazer com a identificação. Não tenho nada agendado. Um cartão de um restaurante dorme em cima da secretária: vejo o número de telefone, mas apenas por curiosidade; serviu-me para marcar um livro. Talvez o restaurante já não exista. Não quero saber. Olho para as horas no telemóvel e penso que já é tarde. Para quê? Não sei o que responder à pergunta.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
Novidade
As minhas netas ofereceram-me os dois grossos volumes com que a Quetzal empacotou os vários tomos – para usar uma expressão de ressonância grega – da Conta-Corrente, de Vergílio Ferreira. Claro que elas não sabem quem foi o Vergílio Ferreira, mas a avó sabe e eu também. No dia 8 de Setembro de 1984, o escritor registou nessa conta-corrente o seguinte: E todavia uma ideia faz-me falta. Mas que é que hei de ainda pensar? Arrumei a vida e assim, quando percorro o caminho que vai dar a uma ideia, vou ter sempre a um lugar conhecido. Tinha ele 68 anos. Fiquei a meditar na experiência, mas a meditação foi interrompida várias vezes com uma experiência recente. Ontem, mas hoje também, sempre que me olhava a um espelho – e, meu Deus, há espelhos por todo o lado – não reconhecia aquela cara que via. Havia ali – o que me desconcertava, e ainda desconcerta – uma novidade. Perguntei se estava diferente, olharam para mim como se estivesse a enlouquecer. Não estou a ficar doido, mas essa é a convicção de todos os que endoidecem. Esta novidade – reputo-a de real – dá-me esperança de que não me aconteça o mesmo que ao Vergílio Ferreira. Se procurar uma ideia, espero que descubra uma desconhecida. Se o meu rosto se pode transformar em qualquer coisa que não conheço, talvez o meu pensamento me possa oferecer uma ideia que também desconheço, mesmo que isso represente um risco, pois essa ideia pode negar todas as que tive até hoje.