Ao atravessar a cidade, já a tarde tinha declinado na
escuridão da noite, lembrei-me de que amanhã será feriado. E fiquei grato ao
Papa Pio IX e à sua Bula Ineffabilis Deus, onde declara, pronuncia e define a doutrina da Imaculada
Concepção de Maria. Contrariamente ao que ensino aos meus alunos, a quem louvo
os méritos da razão crítica e da submissão do dogma ao colírio da dúvida, há em
mim um certo culto pela dogmática, uma espécie de licença sabática para os devaneios
da razão. E ainda mais maravilhado fico se um dogma tem tanto poder que consegue
roubar os homens aos afazeres que a corveia da necessidade lhes impõe. Meditando
assim no mérito da bula papal, deixo o carro deslizar, enquanto olho para as
iluminações de Natal, onde alguns dos adereços quase fazem lembrar um
crescente. Não chego a ficar perplexo, pois tenho de entrar numa rotunda,
acautelar-me de algum condutor imprevidente, e logo o pensamento me foge em
direcção à bênção, ou à graça, que, no longínquo ano de 1854, Pio IX decidiu
derramar sobre todos nós. Amanhã suspendo a razão e deixo deslizar, com demora,
o dogma pelo meu dia. Assim o espero.