Esta é uma época em que desejamos que a lâmina afiada do sol
penetre na nossa pele e se apodere do sangue, aquecendo-o para que o corpo,
assim animado, posso calcorrear os dias que o calendário, esse deus inexorável,
coloca diante de nós. É nisto que penso quando saio de uma livraria com as Histórias do Bom Deus, de Rainer Maria
Rilke, na mão. O que me terá levado a comprar o livro, pergunto-me. O nome do
autor? A curiosidade pelos contos de um grande poeta? A edição com um design retro? Enquanto desfio para mim
mesmo as causas possíveis, entrego-me ao sol e sinto um calor agradável a
invadir-me o corpo. As pessoas passam atarefadas. Algumas cumprimentam-me.
Retribuo, e dirijo-me para casa. Na verdade, há uma razão suplementar para
comprar o livro. Quando o tirei da prateleira e o desfolhei dei com o título de
um dos contos que me inclinou definitivamente para a aquisição: “De que Modo o
Dedal de Coser se Transformou no Bom Deus”. Pode-se pensar que há em mim um
intuito blasfemo. Por exemplo, afirmar coisas como se o Bom Deus é, além de
bom, omnipotente, nada o impediria de ter sido, em certas circunstâncias, um
Dedal de Coser. A blasfémia, porém, é um estilo literário que não pratico. Dou
longos passeios a pé, falo de coisas inúteis, desperdiço o meu tempo nisto ou
naquilo, mas a blasfémia não consta da rapsódia de inclinações do meu carácter.
O que me interessa é a metamorfose. Paro num dos passeios da avenida Sá Carneiro
e olho as árvores, as pessoas que entram e saem dos bancos, os carros que se
apressam para chegar a horas a lado nenhum. E, penso para mim, se Gregor Samsa,
o infeliz caixeiro-viajante, se pôde transformar numa barata gigante, não é
inverosímil que um Dedal de Coser possa metamorfosear-se no Bom Deus. O sol de
inverno, reflicto, não faz muito bem. E o pior é se ele incide na cabeça.