Há dias em que se têm de tomar decisões que gostaríamos muito de nunca ter de as tomar. O melhor, mesmo se por dentro tudo se dilacera, é enfrentar o inevitável, como se fosse a coisa mais banal do mundo. Sempre achei que a realidade tem uma face abominável, mas à qual não podemos voltar as costas, pois ela devora-nos. Terá outras alegres e benfazejas, dir-se-á. Não o creio. A alegria e a benevolência, aquilo que traz contentamento e prazer, tudo isso não faz arte da realidade. São pequenos sonhos e fantasias com que edulcoramos a vida, para a tornar suportável. Sempre abominei aqueles programas sobre a vida selvagem. Os animais são seres magníficos, mas tudo na sua vida gira em torno de matar e morrer, com interlúdio para o sexo, para que o triste espectáculo da sua existência possa continuar, num mundo onde só há devoradores e devorados. Essa é a realidade, mesmo entre nós, seres humanos. Talvez a diferença específica que nos separa, um pouco, muito pouco, desse mundo sangrento, não seja o facto de termos sido dotados com a razão, mas de haver em nós uma faculdade produtora de fantasia. Uma frágil faculdade, diga-se, mas que mesmo assim nos faz pensar que a vida vale a pena, que é possível fugir dessa orgia de morte com que a vida se alimenta. Talvez não seja por acaso que a tradição cristã elegeu a sexta-feira para a morte de Cristo.
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