Também hoje é um dia sombrio, chuvoso. Um dia plangente, flébil. No sítio onde oficio um ritual inútil para fazer frente à dura necessidade, fui a grande estrela da manhã. Estaciono o carro, saio, fecho a porta e estatelo-me. Grandes preocupações. Estava bem? Não me tinha magoado? Não, não me magoara, nem rasgara as calças, nem ferira a mão que amparou a queda, e agradecia. Depois, enquanto as horas passavam, continuavam a perguntar-me se estava bem. Respondia que sim, estava óptimo e tornava a agradecer. Não há coisa mais natural na humanidade do que cair. Não por acaso, a autêntica vida humana começa com uma queda. O meu trambolhão foi apenas um reflexo dessa queda originária que nos expulsou a todos do paraíso. Estas explicações, porém, omiti-as, dizendo apenas que não se tratara de um AVC, apenas de um tropeção numa corrente sobre a qual decidira alçar uma perna e depois outra. Ora, com o entusiasmo de ter passado com a primeira, esqueci, ao usar a segunda, que esta terminava no pé, e o esquecimento paga-se. Sobre a minha secretária tenho o livro As Fronteiras do Conhecimento – o que sabemos hoje sobre ciência, história e a mente, de A. C. Grayling. Este, de facto, é um livro que me deverá ser útil, pois poder-me-á ajudar a estabelecer as fronteiras do conhecimento do meu corpo, evitando aventuras infelizes. A infelicidade, porém, não nasce da dor física, mas do ridículo que é uma pessoa estatelar-se perante qualquer auditório. Nem vale a pena dizer que não é ridículo, pois todos temos a tentação de rir perante quedas alheias e até das nossas, mas apenas mais tarde. A noite assentou há muito arraiais e cobre a cidade com a sarapilheira da escuridão. Continua a chover.
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