Há livros de poesia cujos títulos são, por si só, autênticos poemas. Um dos poetas com mais talento para escolher títulos foi Eugénio de Andrade. Por exemplo, As mãos e os frutos¸ ou Obscuro domínio, ou Véspera de água, ou Limiar dos pássaros, ou O peso da sombra, ou Branco no branco, ou Rente ao dizer, ou O sal da língua, ou Lugares do lume. Cada um dos títulos basta para produzir um profundo efeito poético no leitor. Mais do que isso, cada um destes títulos tem o poder de arrastar o leitor para uma meditação que ultrapassa em muito o prazer poético que eles produzem. Essa meditação pode conduzir à descoberta de conexões inesperadas entre realidades que o hábito ritualizado mostra como completamente separadas. Há, por exemplo, uma clara incongruência na expressão véspera de água ou em o peso da sombra. No entanto, podemos ser conduzidos a pensar sobre o que antecede a água, o que será aquilo que vem antes dela, ou então a meditar por que razão aquilo que a véspera antecede é denominado água. Hoje é véspera de amanhã. Não será, neste momento, o amanhã ainda uma coisa líquida, sem os contornos da solidez? Também a sombra não tem peso, mas não haverá algo de pesado em tudo o que é sombrio? Estas incongruências são o produto da imaginação que oferece ao leitor uma chave para abrir aqueles obscuros domínios, onde a realidade se esconde. A mim, todavia, não me ocorre nada de poético, apenas que é domingo e o almoço será, como é habitual, tardio. Também os dias têm a sua gramática, morfologias e sintaxes muito próprias, que os classificam e organizam, que estruturam os seus rituais. Talvez a poesia, com as suas incongruências, seja uma luta contra o ritual dado na gramática de cada coisa.
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