Num dos poemas de Ararate,
Louise Glück escreve ‘De repente, depois de morreres aqueles amigos / que
nunca concordaram sobre nada / concordam sobre o teu carácter’. A morte não
é apenas o poder de a todos igualar, mesmo aqueles que pensam fugir ao horror
da igualdade através de recurso a um jazigo, mas ainda a capacidade de criar consensos.
É possível que essa concórdia nasça de cada um temer a sua própria morte, do
sentimento obscuro de que poderá ser o seguinte na lista da incansável
ceifeira, caso crie dissensão sobre aquele que morreu. O acordo perante a morte
é uma negociação com a rainha da noite, um pedido de prolongamento do tempo de
jogo. Saí há pouco. O dia fez-me lembrar o de Todos-os-Santos, pela luz
esbranquiçada que pairava como uma gaivota sobre os prédios. Enquanto pensava
isso, lembrei-lhe que nessa altura, os dias serão mais frios, a não ser que o
S. Martinho esteja já a preparar o seu Verão. Não notei em ninguém com quem me
cruzei um fervor republicano, mas, valha a verdade, não havia ninguém com cara
de monárquico. Estava tudo mais preocupado em fazer compras ou ir ao café para
encontrar alguém com quem dê dois dedos de conversa. Há muito que deixei de frequentar
cafés, mas os cafés que em tempos frequentei morreram todos. Agora, podemos dizer
que eram excelentes cafés e contar as peripécias que neles se deram. Nada os
salvará, nem aos cafés, nem aos proprietários, nem aos empregados, nem mesmo
aos clientes. No monte Ararat teria repousado, após o dilúvio, a arca de Noé.
Um mar de sirenes fende a tranquilidade do dia. Talvez sejam os bombeiros
locais a comemorar o seu aniversário.
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