segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Apocalipse

Imagino que em vez de narrar as patetices que narro deveria escrever textos apocalípticos. O mais difícil, porém, está em escolher por qual apocalipse deveria começar. São tantos que fico perplexo pelo embaraço da escolha. A perplexidade leva-me à hesitação e, hesitante, caio na inacção, isto é, na não escrita de textos desse género. Resta a vulgaridade da vida quotidiana, o calor que por aqui está, a tortura a que os castanheiros da avenida marginal parecem estar a ser submetidos, o sono que me arrasta para sestas indesejadas, a compra de umas anilhas de borracha para tentar pôr uma máquina de lavar louça a fazer a sua obrigação sem que haja uma inundação. Também podia mobilizar a memória e escrever sobre a vitória da selecção de râguebi sobre a das Ilhas Fiji, um acontecimento, diga-se. Ou então contar o que os olhos vêem se se dirigem para uma das janelas deste escritório onde me sento. Escolas, bosques, hospitais e um símbolo de uma hamburgueria internacional que se ergue impante sobre a ramagem do arvoredo para chamar incautos esfomeados. A vida quotidiana é uma tristeza e talvez seja ela própria, na sua trivialidade, uma forma de apocalipse. É, pelo menos, o apocalipse que está ao alcance da minha escrita. Também é verdade que isto não é a ilha de Patmos, apesar da ilha de Patmos poder ser em qualquer lado, inclusive aqui.

10 comentários:

  1. Se Heráclito deixa a torneira a pingar, então devemos chamar Parmenides? Não, Kant, não. E Wittgenstein, embora tenha certezas, parece-me que não tem jeito de mãos. Será que Gombrowicz conseguiria resolver isso?

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    1. Inclino-me mais para Kundera, embora se deva ter cuidado com as aparências.

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    2. Gosto muito de Kundera. Será que foi ele que deixou a torneira a pingar de propósito? Voltei a ler a Elisabeth Costello por me ter ficado uma dúvida. Terá sido Kundera ou Coetzee?

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    3. Acho que foi mesmo o Kundera. Talvez por vingança por eu não gostar assim tanto, embora goste bastante de A Arte do Romance, da reflexão que faz sobre o romance europeu.

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    4. O romance europeu
      é um apocalipse

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    5. Exactamente. É o que faz dele algo interessante.

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    6. Também pode ser um ginger ale.

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  2. Rendo-me. Depois de três ginger ale, acho que vou precisar de ler A arte do Romance.

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    1. Quanto a ginger ale, sou completamente abstémio, embora saiba que dantes - não sei se agora - havia o da Schweppes e o da Canada Dry.

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    2. Seria interessante assistir a uma peleja entre editoras de ginger ale. Mas, ao que parece, pelo menos nas minhas prateleiras, a Dom Quixote é consensual entre Kundera e Coetzee. Não fossem eles amantes de energias renováveis.

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