quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Kitsch

Existe uma escala de degradação das aptidões escriturárias. Há dois dias vi que me faltava talento para escrever apocalipses. Ontem baixei a fasquia, mas também não tenho capacidade para ser um escritor de teorias da conspiração. Hoje analiso se tenho poder para escrever piadas, daquelas que são idiotas, mas que fazem rir as pessoas. Ora, escrever uma coisa idiota não me é difícil, mas não faz rir ninguém. Nunca inventei uma anedota e não uso o chiste, a ironia está-me vedada por natureza, natureza minha. É deprimente, mas esta é a verdade. Se escrever tragédias nunca me ocorreu por razões óbvios, podia ser que escrevesse comédias, não comédias a sério, mas uns pequenos gags para animar a conversa em grupo. Nada, porém, me ocorre, falta-me a finesse d’esprit orientada para a ironia. Isto transportou-me para uma experiência cinematográfica dos últimos dias. Vi diversos filmes de Nanni Moretti. Estes podem dividir-se em dois géneros. O drama, onde Moretti actor e os filmes que faz são tensos, e o filme político. E é este o mais interessante para o assunto de hoje. São comédias, onde somos levados a rir da personagem, das suas convicções, do modo como ela se relaciona com as ideias que tem sobre o mundo. Não se está perante um clown, mas diante de um exercício de relativização das crenças que talvez tenha a sua raiz em Cervantes, descobrindo-se uma personagem quixotesca no lugar de um militante cego pelo sol das suas convicções. Esta última frase era dispensável, mas não resisti a um bocadinho de kitsch. Voltando ao meu caso, incapacitado para o gag, estou confrontado com a realidade. Restam-me as frases kitsch, como a que diz o crepúsculo enovela-se sobre si mesmo, abrindo o caminho por onde passarão os cavalos da noite.

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