O dr.
Johnson ficou para a posteridade com o dito, nunca suficientemente citado, o
patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Samuel Johnson viveu no século
XVIII, um tempo em que os nacionalismos ainda não tinham vindo perturbar a
velha Europa. O dito parece que é isso mesmo. Não aparecerá na sua obra
escrita, mas é uma citação de um biógrafo – imagino que James Boswell – que o
terá ouvido da boca do seu biografado, que era, segundo ele, um homem
de grande estatura e bem proporcionado; o seu semblante obedecia ao molde de uma
estátua antiga; a aparência, no entanto, tornava-se estranha e um tanto rústica
por causa dos tiques convulsivos, das cicatrizes dessa doença que se imaginou
ser curável por um toque real e de um desmazelo no vestir. Via só de um
olho, mas o espírito está de tal modo acima das deficiências dos órgãos,
chegando mesmo a supri-las, que as suas percepções visuais, até onde chegavam,
eram invulgarmente apuradas e precisas. Seria, a fazer fé em Boswell, um
homem extraordinário. Chegou-me hoje às mãos uma obra sua agora traduzida em
português, numa bela edição da e-primatur, Ensaios sobre a Virtude
& a Felicidade. Fascina-me a manutenção do & (e comercial)
no título. O livro é composto por um conjunto de pequenos ensaios, umas
dezenas, e, ao primeiro embate, pareceu-me ser uma apologia do bom-senso. Ora,
como sabemos desde Descartes, o bom-senso é a coisa mais bem distribuída do
mundo, no dizer do filósofo francês. E como justifica ele a sua afirmação?
Dizendo que ninguém quer ter mais bom-senso do que aquele que tem. Toda a gente
está satisfeita com a sua sensatez. Imagino que, um século depois, Samuel
Johnson não concordou e acabou por fazer uma apologia indirecta desse
bom-senso, mas posso estar enganado. Seja como for, seria um bem que Descartes
não tivesse razão e cada um de nós se sentisse pobre em bom-senso, desejando
ter mais e mais. Essa acumulação de sensatez, ao contrário da acumulação de
riquezas, teria uma enorme potencialidade de tornar o mundo, mesmo sob uma
temperatura de anunciação do inferno, num lugar mais recomendável para viver.
Talvez porque não temos um mundo alternativo, não sentimos necessidade de ter
mais bom-senso. Recomendável ou não, é o único mundo que temos. Por mim,
reconheço, que precisaria de um pouco mais de sensatez, mas não estou certo que
me esforce na sua aquisição.
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