segunda-feira, 24 de junho de 2024

Bom-senso

O dr. Johnson ficou para a posteridade com o dito, nunca suficientemente citado, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Samuel Johnson viveu no século XVIII, um tempo em que os nacionalismos ainda não tinham vindo perturbar a velha Europa. O dito parece que é isso mesmo. Não aparecerá na sua obra escrita, mas é uma citação de um biógrafo – imagino que James Boswell – que o terá ouvido da boca do seu biografado, que era, segundo ele, um homem de grande estatura e bem proporcionado; o seu semblante obedecia ao molde de uma estátua antiga; a aparência, no entanto, tornava-se estranha e um tanto rústica por causa dos tiques convulsivos, das cicatrizes dessa doença que se imaginou ser curável por um toque real e de um desmazelo no vestir. Via só de um olho, mas o espírito está de tal modo acima das deficiências dos órgãos, chegando mesmo a supri-las, que as suas percepções visuais, até onde chegavam, eram invulgarmente apuradas e precisas. Seria, a fazer fé em Boswell, um homem extraordinário. Chegou-me hoje às mãos uma obra sua agora traduzida em português, numa bela edição da e-primatur, Ensaios sobre a Virtude & a Felicidade. Fascina-me a manutenção do & (e comercial) no título. O livro é composto por um conjunto de pequenos ensaios, umas dezenas, e, ao primeiro embate, pareceu-me ser uma apologia do bom-senso. Ora, como sabemos desde Descartes, o bom-senso é a coisa mais bem distribuída do mundo, no dizer do filósofo francês. E como justifica ele a sua afirmação? Dizendo que ninguém quer ter mais bom-senso do que aquele que tem. Toda a gente está satisfeita com a sua sensatez. Imagino que, um século depois, Samuel Johnson não concordou e acabou por fazer uma apologia indirecta desse bom-senso, mas posso estar enganado. Seja como for, seria um bem que Descartes não tivesse razão e cada um de nós se sentisse pobre em bom-senso, desejando ter mais e mais. Essa acumulação de sensatez, ao contrário da acumulação de riquezas, teria uma enorme potencialidade de tornar o mundo, mesmo sob uma temperatura de anunciação do inferno, num lugar mais recomendável para viver. Talvez porque não temos um mundo alternativo, não sentimos necessidade de ter mais bom-senso. Recomendável ou não, é o único mundo que temos. Por mim, reconheço, que precisaria de um pouco mais de sensatez, mas não estou certo que me esforce na sua aquisição.

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