Oiço Für Alina, de Arvo Pärt, e interrogo-me sobre a diferença do uso do silêncio nesta peça e em 4’33”, de John Cage. Talvez, pensei, que um caminho interpretativo fosse recorrer à distinção proposta por Agostinho de Hipona entre a Cidade de Deus e a Cidade do Homem. O silêncio de Für Alina é o espaço onde o sagrado se manifesta, envolvendo a expectativa do auditor e transportando-o para uma outra dimensão, a qual não existe noutro lugar, mas que mostra que o aqui é já um além. O ostensivo silêncio da peça de John Cage é uma abertura. Não ao sagrado, mas à sonoridade do mundo. É aqui que a Cidade do Homem, de Agostinho, terá menos pregnância. Não se trata de escutar os sons do amor sui, do amor de si dos homens, mas do mundo em geral, onde a sonoridade humana não necessita de ter um estatuto especial, mesmo que, quando a peça é interpretada num auditório, o silêncio que a compõe seja maioritariamente ferido pelo ruído humano. O que une as duas peças, na sua radical diversidade, é o desejo de escuta. A escuta do sagrado e a escuta do mundo. E nisso há um compromisso com algo que está a morrer: a disciplina da escuta. Talvez essa disciplina da escuta tivesse, na nossa tradição cultural, começado a morrer com Sócrates e a sua necessidade de se envolver no diálogo como caminho para a verdade. Isso subverte a tradição do pitagorismo. A comunidade pitagórica estava dividida entre acusmáticos e matemáticos. Os primeiros estariam numa espécie de período de aprendizagem, que poderia chegar aos cinco anos. A sua função era escutar a lição do mestre sem lhe ver a face. O essencial era, antes de ter o direito à palavra, exercitar o dever de escutar. O diálogo platónico, que surgia em contraponto com a retórica demagógica dos sofistas, mais do que uma condenação do ruído público, acabou por ser uma legitimação da ruína da disciplina da escuta. Talvez porque escutar se tenha tornado, nos tempos modernos, um pesadelo, a música, por vezes, tenta abrir clareiras para que os homens rememorem esse acto de humildade que é escutar o outro, seja este um homem, um deus, o rumor do vento ou a música das esferas celestes. Também eu preciso de aprender a escutar. Em vez de ficar em silêncio perante o desenrolar de Für Alina, fui escrevendo, escrevendo.
quarta-feira, 18 de junho de 2025
terça-feira, 17 de junho de 2025
Estranheza
Desconheço a razão, mas pus-me a ouvir um álbum de 1975, de um tempo que ainda não tinha chegado aos vinte anos. Um estilo de música que me recusei a cultivar – o rock progressivo –, mas que fui ouvindo, nessa época em que se ouviam essas coisas. Enquanto o álbum, proveniente de uma plataforma musical, vai correndo, tento imaginar-me nesses dias. Não encontro nada de extraordinário, a não ser a banalidade da existência. Na verdade, desconheço-me naqueles traços que recordo. Isto não é uma negação do que fui no passado, é apenas perplexidade. Caso a vida me desse mais cinquenta anos, uma impossibilidade biológica, e me oferecesse uma capacidade de pensar idêntica à que ainda me resta, por certo, aquele que sou hoje seria um estranho para esse eu impossível. Enquanto escrevo, as canções vão correndo. Em mim, porém, nada vibra. Aquilo parece-me uma xaropada, mas, disciplinado, obrigo-me a ouvir até ao fim, tentando descobrir o que, por vezes, me levava a ouvir estas canções, sem um particular desagrado. Aqueles foram uns estranhos anos, embora na altura me parecessem normais. Imagino que todas as décadas são tempos estranhos, o que tem uma consequência extraordinária: a vida mais vulgar é feita de coisas estranhas, feitas de uma familiaridade inquietante. Chego aqui e suspendo a tentação de cair – toda a tentação está ligada a uma queda – na exegese dos conceitos Unheimlich e Unheimlichkeit provenientes de Freud e de Heidegger. Deixemo-los a repousar lá no etéreo lugar que lhes cabe. Ponhamos de lado o familiar, o estranho, a inquietante estranheza. Embora, pensar-me em 1975 não deixe de ser uma inquietante estranheza.
segunda-feira, 16 de junho de 2025
Casamento
Hoje, estive quatro horas em videoconferência, uma modalidade branda de enlouquecer. Não, equivoquei-me. A modalidade não é branda, mas áspera. Sendo assim, a loucura que me calhar será também ela áspera, crespa, rugosa. Talvez acre e ácida ao mesmo tempo. Se enlouquecer desse modo, a culpa não será minha. Tão pouco, dos genes recebidos, pois são genes muito bons. Quero dizer: são os melhores que consegui, embora sem fazer nada para isso. A culpa do meu futuro enlouquecimento não poderá ficar solteira, mas temo que nessa altura não saiba qual o marido com que devo acasalá-la. Talvez nem consiga para ela uma simples união de facto. Agora, poderia casar esse hipotética culpa com o videoconferenciar. Contudo, como ainda não estou louco, não há culpa, embora haja marido – ou parceiro – para ela, que até lá terá de se entregar à abstinência. O casamento exige a mais pura virgindade. A culpa e o videoconferenciar descobrirão um com o outro os factos da vida. Também é possível que a vida não tenha factos e, por isso, não haja nada para descobrir. Pode-se argumentar que este texto anuncia que o videoconferenciar não ficará abstinente por muito tempo. Cada um que julgue, mas poupem-me os pormenores. Se estou a ficar louco, uma presunção sem fundamento, quero entrar nessa fase da existência sem saber. A ignorância é uma amante virtuosa, mais do que a inocência.
domingo, 15 de junho de 2025
Dobrar o cabo
Dobrámos o meio de Junho e preparamo-nos para lançar âncora no porto do Estio. Então, os dias começarão a diminuir. Cheguei tarde a casa, vindo de Lisboa, e antes de escrever fui fazer a minha caminhada. A noite tinha-se apossado da cidade e, apesar da iluminação pública, as pessoas eram apenas vultos, sombras sorrateiras. No percurso escolhido, há uma capela dedicada a Santo António, por certo o de Lisboa; aqui não haverá devotos do santo em versão paduana. No átrio, vivia-se ainda o rescaldo das festas em honra do santo. Havia farturas à venda numa roulotte à beira da estrada. Não se pense que caí na tentação. Passeio ao largo. Num palco, alguém cantava uma música que passa por popular, mas que é apenas um exercício de mau gosto, esse mau gosto que se apossou da cultura popular e que transbordou para todo lado. Passei rápido, não fosse contaminado por algum vírus. Entrei na avenida, e conforme ia andando chegava até mim o perfume doce e intenso das flores das tílias. As árvores estão belíssimas, mas o aroma é enjoativo. Haverá quem goste. Apesar dessa leve disfunção aromática, sentia-me bem, penetrando solitário na solidão da noite. Enquanto contemplava a pujança das tílias, lembrei-me dos jacarandás da 5 de Outubro, já sem o esplendor que devem ter tido há uns dias. Além de terrível, a beleza é efémera. Por vezes, não há nada melhor do que uma trivialidade para dizer o que as coisas são. Aliás, haverá coisa mais trivial do que o ser esse objecto último de toda a meditação filosófica?
sábado, 14 de junho de 2025
Sentido
Durante parte substancial da minha vida, este era um dia de festa. Hoje – na verdade, há mais de duas décadas – é data de rememoração. Festa, rememoração, nada. Uma sequência inevitável, por muito que nós, mortais dotados de consciência, queiramos resistir-lhe e subverter. Por que razão as coisas têm de ser assim, não o sei, ninguém o saberá. Podemos especular sobre a fragilidade dos materiais de que somos compostos, mas isso é apenas constatar factos. Ora, os factos nada nos dizem. Limitam-se a acontecer. E isso não lhes confere qualquer sentido. Mesmo que os saibamos explicar pela sua inserção numa legalidade da natureza, enquadrá-los num esquema de causa-efeito ou num outro do mesmo género, isso nada nos diz por que motivo as coisas são como são e não de outra maneira. As leis da natureza não explicam nada. Mais: são elas que necessitam de explicação. Por que estas e não outras? Anaximandro via, nesse processo de vir ao mundo e de dele ser expulso, um acto de justiça que repunha as coisas no seu lugar, devido à injustiça cometida pela entrada no mundo. Há, nesta resposta, por ingénua que pareça, mais sabedoria do que numa explicação científica. Dá-nos um sentido, oferece-nos um porquê para a sequência: festa, rememoração, nada. A ciência explica-nos como as coisas acontecem, mas em nós nunca deixa de vibrar a pergunta que, na infância, repetimos vezes sem conta, até exasperarmos os adultos: Porquê?
sexta-feira, 13 de junho de 2025
Pobres diabos
Releio Fome, o romance de Knut Hamsun publicado em 1890. Antecipa a revolução modernista. Conforme vou lendo, pressinto a incomodidade com que críticos e leitores fundados nas tradições rivais do romantismo e do naturalismo devem ter recebido a obra. Nem a subjectividade hiperbólica e exaltado do génio romântico, nem a subjectividade determinada pela hereditariedade ou pelo meio do tipo ideal ou clínico da personagem do naturalismo. O narrador protagonista, sem nome, é o retrato de uma subjectividade em colapso. Um leitor atento encontrará, por certo, tonalidades românticas e naturalistas, mas ambas superadas na implosão de um sujeito assombrado pela fome e tomado pelo desejo de escrever. Não é um tipo universal, mas também não é um herói singular. É apenas um pobre diabo que tem fome. Contudo, este pobre diabo esfaimado está mais próximo de cada um de nós do que as personagens romanescas anteriores. Não por causa da fome, mas porque é um pobre diabo. E é isso que somos, mesmo que a fome não nos atormente. A fome designa o desejo, a cujo império só poucos, muito poucos, conseguem furtar-se. É pelo desejo que se entra na confraria dos pobres diabos e é por causa dele que não saímos dali.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Equívocos
Uns dias fora e, quando chego a casa, as orquídeas estão todas doentes, moribundas. Foram atingidas por uma pandemia para a qual desconheço vacina. Talvez o número seja excessivo e a competição pelo título de a mais bela do ano as tenha enfraquecido, lançando-as num estado depressivo que se apodera das flores e das hastes onde brotam os botões. Em contrapartida, o jacarandá da praceta do outro lado da avenida está exuberante, de uma beleza inominável. O facto de ser inominável deve-se apenas a uma incapacidade minha para a nomear. Poderia encontrar metáforas, mas serão as metáforas um nome? Talvez todos os nomes não sejam mais do que metáforas. Dar nome não à beleza, mas às coisas belas, é um exercício difícil. As palavras estão gastas. O melhor seria inventar uma palavra para a beleza específica daquele jacarandá. Contudo, há um problema: a beleza que entrevi há pouco não será a mesma que ele terá ao crepúsculo, o que me obrigaria a inventar uma nova palavra, a qual também não seria adequada para a beleza que a árvore ostentará na aurora de amanhã. É aqui que nascem todos os equívocos linguísticos. A realidade está em constante metamorfose – em leitura hegeliana, dir-se-ia: está em devir –, mas a linguagem é muito mais lenta na sua adaptação a essa realidade. Eu mantenho o nome desde que nasci, mas eu não sou aquele que nasceu há tantas décadas. Sou outro, continuamente outro, o que implicaria que tivesse de mudar continuamente de nome. Em linguagem política – Honi soit qui mal y pense –, a língua é conservadora, a realidade é revolucionária. Isto tem implicações extraordinárias: os revolucionários odeiam a língua; os conservadores, a realidade. Por mim, não odeio nem a língua nem a realidade. Sofro-as como posso, com a paciência de um santo, a qual não é outra coisa senão um compromisso que compatibiliza os ardores revolucionários da realidade com a gélida solidez da língua. O pior é que a realidade está a destruir as orquídeas cá de casa e não tenho palavras para solidificar a sua beleza.
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Um súbito interesse
De súbito, sem razão aparente, interessei-me por um assunto que nunca me tinha interessado: o regicídio de 1908. Não se trata de um interesse político, da querela entre monárquicos e republicanos. Também não se trata de um interesse técnico — desde o planeamento e a execução dos homicídios até à completa inoperância de todas as estruturas que teriam, em todos os momentos, de defender a família real. O que, de modo inesperado e intempestivo, se acordou em mim foi tentar perceber como é que as pessoas sentiram o acontecimento. Como vibrou ele no espírito de monárquicos e de republicanos? Como repicou no coração popular? Este tipo de interesse não é diferente de um que tivesse por objecto compreender como ressoou, na consciência das pessoas, o terramoto de 1755. Aparentemente, são dois casos bastante diferentes — um de ordem natural, fruto das leis da natureza; outro, de ordem cultural, resultado da agência dos homens. Também os diferencia o grau de devastação humana. Contudo, estes acontecimentos atingem o espírito das pessoas e ficam por lá, enquanto elas o ruminam. E é esta ruminação acerca do regicídio que, de um dia para o outro, me interessou. Muitas vezes procura-se definir qual terá sido o acontecimento mais importante de um dado século. Talvez o acontecimento decisivo do século XX português tenha sido o assassinato dos dois Braganças. O que é que esse assassinato — não o facto, mas a sua repercussão nas consciências — diz de nós? Não sei se a resposta — por muito matizada que seja — será agradável.
terça-feira, 10 de junho de 2025
Metafísica criminal
Feriado. Dia de Portugal. Uma coisa estranha. Se há um dia de Portugal, esse é o 5 de Outubro. Foi nele que começou a monarquia portuguesa – a fundação da nacionalidade – e foi nele que começou a república. É uma data que contentaria monárquicos e republicanos. Se, um dia, Portugal se tornar numa teocracia, será também a 5 de Outubro. Estou a entrar num território perigoso, o qual me está vedado. Sou um narrador isento de paixões políticas. Também ainda não percebi que paixões o autor me permite. Provavelmente, nenhumas. Quer-me asceta. Um asceta do discurso, e este blogue é o meu ermitério. De resto, reconheço, confere-me alguma liberdade. Os disparates são-me permitidos, bem como as coisas mais singulares e destituídas de sentido. Acabei de chegar de uma festa de aniversário, um exercício social que me é cada vez mais penoso, isto é, sentido como uma pena, resultante de uma sentença proferida por um juiz anónimo, por um delito metafísica que, juro-o, não cometi. Ou talvez tenha cometido, mas não tenho consciência dele. Como se sabe, há dois tipos de crimes. Os físicos e os metafísicos. Os físicos são aqueles que todos conhecemos, os que enchem os tribunais de uma actividade inesgotável, onde juízes, procuradores, advogados e oficiais de justiça ganham vida, sabe-se lá por que crime cometido. Os crimes metafísicos são os piores, mas ninguém sabe quais são. Uma pessoa, a certa altura da vida, é acusada de um crime metafísico, todavia os autos são omissos na tipologia do crime. Isto não me sucedeu só a mim. Foi o que aconteceu a Joseph K. O crime que ele cometeu tinha uma natureza metafísica, mas o que ele fez, realmente, ninguém sabe. Só se sabe que é culpado porque sofre uma pena. Muitas das coisas que temos de fazer, ao contrário do que ingenuamente se pensa, não são deveres sociais. São condenações por crimes metafísicos. Aliás, deveríamos pôr fim a uma disciplina como a Sociologia. Substituí-la pelo estudo do código penal metafísico. Imagine-se um grande jogador de futebol, um daqueles que é idolatrado por milhões de adeptos. Em vez de lhe investigarmos o talento, deveríamos antes perguntar: que crime metafísico cometeu para fazer da vida uma correria atrás da bola? O que se diz de um jogador de futebol, pode dizer-se de um médico, de um engenheiro, de um poeta, de operário da construção civil. Em vez da sociologia das profissões, deveríamos instituir uma hermenêutica que conseguisse interpretar, a partir da profissão exercida, bem como da vida social, os crimes metafísicos de que a pessoa é culpada. As pessoas, por vezes, têm a veleidade de terem escolhido uma profissão. Pura fantasia para ocultar que são condenados metafísicos e a profissão é as grilhetas que manifestam a sua natureza de condenado. O que é válido para os indivíduos, é-o também para as nações. De que crimes metafísicos Portugal foi acusado e condenado para ter o seu dia a 10 de Junho. Se soubéssemos responder a esta questão teríamos uma informação mais preciosa sobre a nossa natureza do que se tivéssemos a mais completa e rigorosa história da nacionalidade, desde o 5 de Outubro de 1143 até ao dia de hoje.
segunda-feira, 9 de junho de 2025
Milagres
As segundas-feiras continuam tormentosas. Esta obrigou-me a um ir e vir que me fez atravessar grandes distâncias, apesar de curtas, pois são medidas em graus centígrados. Saí daquele sítio onde me acolho durante o ano com 38 graus e cheguei, aqui, passada uma hora, e estavam 23. Um milagre, dir-se-á. Um milagre confirmo. Por norma, as pessoas vêem como milagres coisas extraordinárias, alterações radicais da ordem do mundo. Ora, é na banalidade quotidiana que se escondem os milagres mais autênticos. Por exemplo, a possibilidade de transitar, com rapidez, de uma zona que parece a antecâmara do inferno, para uma colónia do paraíso. Não é na suspensão das leis da natureza que estão os milagres, mas nas próprias leis naturais que permitem coisas tão extraordinárias. Contemplar a ordem do mundo é assistir a uma sucessão de milagres. Eu sei que isto contraria a ideia de que milagre e ordem natural do mundo são coisas opostas. Isso, porém, é uma visão superficial. A ordem natural é o milagre por excelência. Já se imaginou o que seria o mundo se tudo fosse caos? Percebe-se de imediato que a transição do caos para a ordem é a coisa mais milagrosa que pode haver. Tudo isto, independente da causa eficiente dessa transição. Contudo, se esse milagre não tivesse ocorrido, haveria uma vantagem. Estes textos não seriam escritos. No caos não há escrita possível, pois os abecedários colapsam, as regras gramaticais e lógicas ficam à deriva e não se consegue encontrar um computador – o mesmo um simples lápis – que permita o frívolo exercício de escrever por escrever. Sim é um exercício frívolo, mas fruto de um milagre. Ou de vários.
domingo, 8 de junho de 2025
Tornar-se inocente
Passei a manhã de domingo a trabalhar e ainda tenho umas coisas para ultimar. Não sei o que me deu para tal heresia. Os domingos são dias em que se deve – segundo um imperativo categórico – praticar o ócio. Contrariamente ao que proclama certo espírito mundano, o ócio não é a fonte de todos os vícios, mas a origem de muitas virtudes. Era o que os gregos pensavam. E não estavam errados. Aliás, os velhos gregos estavam certos em muitas coisas, apesar de haver quem os considerasse como eternas crianças, sem sabedoria das coisas antigas, das velhas tradições. Nesse aspecto, a tradição grega encontra-se com a judaico-cristã e o imperativo crístico Deixai vir a Mim as criancinhas, porque delas é o Reino dos Céus. Em ambos os casos, a sabedoria não deriva da autoridade dada pelo tempo, mas reside numa espécie de inocência, a qual seria a garantia de uma visão não enviesada, de um olhar directo para as coisas mesmas. Essa inocência originária, como todos sabemos, perde-se rápida e facilmente. A grande tarefa que fica para a vida será a de se tornar inocente. Isso não significa recuperar a inocência que se perdeu, mas instalar-se numa outra que, ao contrário da primeira, conhece a culpa e fez o caminho através dela. A tarefa existencial não é permanecer inocente, mas conquistar a inocência, esse olhar não enviesado para as coisas, esse contacto directo com aquilo que é. Os gregos, com a sua arte, religião e filosofia, representavam as criancinhas do texto evangélico. Aquilo que se abre aos descentes dos gregos, agora que transportam vinte e cinco séculos de culpa aos ombros, é tornarem-se crianças, não porque seja essa a sua situação, mas porque esse é o desígnio que elegeram.
sábado, 7 de junho de 2025
Mentir
Gosto de ver o mar, mas tenho um conflito insanável com idas à praia. Nem sempre foi assim, mas deu-se em mim uma lenta metamorfose que me conduziu do amor – na verdade, uma amizade moderada – a uma indiferença e sensação de desconforto. Não odeio idas à praia, pois para isso teria de ter tido uma paixão avassaladora. Nada disso. A conjugação entre sol e areia não é a coisa que mais me agrada. Passo semanas junto ao mar, mas não ponho um pé na areia. Já a frequência de um bar de praia me é agradável. Posso ficar sentado a ver a ondulação, a espreitar o horizonte, a tentar decifrar o que se esconde para lá da linha. As pessoas, confesso, não me interessam particularmente. Prefiro, perscrutar o movimentos dos barcos ou o voo das gaivotas. Só o meu neto terá poder para me arrastar para a praia. As netas já passaram essa idade e dispensam a minha companhia. Na verdade, bastam-se a si mesmas, como qualquer adolescente. Uma está já a abandonar a fase da adolescência. Contudo, gosto de fazer longas caminhadas perto do mar. A terra é o meu elemento, é nela que sinto o meu fundamento existencial, mas a água não deixa de exercer sobre mim um grande fascínio. Tudo isto poderia ser interessante, caso não fosse uma ficção. Quando alguém – talvez já com pouco controlo da sua saúde psíquica – se propõe escrever todos os dias, o mais natural é que venda a alma ao diabo. Não, não, não se trata de um pacto digno de Fausto, mas apenas o exercício de uma pequena venalidade: a mentira. Escrever ficções – grandes ou pequenas – é dispor-se a mentir. A partir de certa altura, mentir torna-se um imperativo, pois quanto mais falso for o discurso, mais verdadeiro será percebido. É esta a glória da ficção: mostrar como verdade aquilo que é falso. Foi por isso que Platão, ébrio pelo desejo de verdade, propôs a expulsão dos poetas da cidade. Não sou poeta, mas, no meu anonimato, sou dado à falsificação da realidade. Será que gosto de ver o mar? Será que não gosto de à praia? Seja qual for a resposta que dê a estas perguntas, ela será falsa.
sexta-feira, 6 de junho de 2025
Visitações
Uma moldura em forma de estrela de oito pontas. Nela, o retrato de alguém que não sei quem é. Na parte de trás, uma imagem com motivos coloniais. Pelo que veste, percebe-se que a mulher ali representada pertence a uma classe desafogada. O que está a fazer o conjunto diante de mim? Ignoro. Sei apenas que deve ter mais de um século, mas que se subtraiu aos efeitos da passagem do tempo, ou quase. Cada ponta da estrela termina com uma imitação de pérola ovalada, mas uma delas está caída. Olho demoradamente para aquela mensagem vinda de um tempo que não é o meu, mas não consigo decifrar o texto que ali se resguarda. Lá fora, uma máquina começou a trabalhar. Um ruído contínuo, irritante, também portador de uma comunicação. Recuso-me a escutá-la. Há coisas que é melhor não saber. Com o passar dos anos, estreitam-se as coisas que consideramos merecedoras de atenção. Até que chega o momento em que descobrimos que nada merece já atenção. É a prova de que chegou o fim da hospedagem nesta pequena casa a que se dá o nome de Terra. Intriga-me a fotografia, o formato da moldura, os motivos coloniais. O que tudo isso quererá dizer, agora que repousa na secretária onde escrevo? Daqui a pouco irei caminhar junto ao mar. Espero saber ler o ritmo das ondas e o voo das gaivotas, não como um áugure; apenas como um exegeta que se entrega, com paixão, à interpretação de um texto difícil, uma tarefa sem fim, pois qualquer texto contém em si uma aspiração ao infinito, que exige uma infinidade de interpretações.
quinta-feira, 5 de junho de 2025
Decepção
Há causas nobre – nobilíssimas, para ser mais exacto – cujas consequências são muito pouco nobres. Imaginou-se um dia que a alfabetização generalizada representaria uma elevação espiritual. Não se pouparam – não se poupam – esforços para alfabetizar as pessoas e, mesmo, para as dotar de índices de literacia assinaláveis. Os leitores de Homero seriam legião, Shakespeare e Pessoa estariam continuamente a ser impressos. Haveria clubes poderosos de leitores de Sófocles, de Kafka, de Mann, de Musil ou de Proust. Os resultados são decepcionantes. O mundo de leitores aumentou, mas os grandes autores continuam a ser – talvez deva ser assim – parte de um mundo restrito, de uma elite descabelada e sem préstimo. Contudo, o efeito mais espectacular dessa ideia nobre de colocar à disposição do grande número aquilo que sempre foi de poucos não está na decepção pela falência do propósito. O resultado desta nobre aventura é que o critério de separação da alta cultura se perdeu e Homero ou Hermann Broch valem tanto – na verdade valem menos – como um qualquer produtor de best-sellers. Um dia – não virá longe – perguntar-se-á por que motivo se há-de submeter os adolescentes à leitura de Camões, se não há quem lhe compre os versos. Repito-me, imagino que já aqui o terei escrito: como a má moeda expulsa a boa, também a má literatura expulsa a boa. Não apenas nos escaparates das livrarias, mas do horizonte cultural onde ela sempre existiu. Deixou de ser o padrão, para se tornar uma coisa tão trivial como as trivialidades que são despejadas torrencialmente nas livrarias. Devo estar cansado para vir com esta conversa. O cansaço tem sempre efeito surpreendentes, inclina-nos a fazer e a dizer coisas que nos interditaríamos. A coisa explica-se facilmente: aquilo que se pensa está – no estado de normalidade – cercado por um dique poderoso. O cansaço é como as grandes chuvas torrenciais, em que os cursos de água se assanham e levam tudo pela frente, mesmo os mais poderosos diques. É isto que me está a suceder. Ou talvez seja outra coisa que desconheço. Ou talvez não passe de uma necessidade biliar. As verdadeiras razões são sempre estranhas e dificilmente compreensíveis.
quarta-feira, 4 de junho de 2025
Anamnese
Fui jantar à baixa. Sim, aqui também há uma baixa, que se opõe à alta. O conflito não é social. Tão pouco é um conflito, apenas designações de uma geografia comum, uma maneira de dizer. Minha, note-se. Ninguém aqui chama baixa à baixa. Chamam-lhe centro, como se fosse o centro do mundo, o Omphalos, embora ninguém faça ideia do significado desta palavra aterrada aqui vinda directamente da antiga Grécia. Estou a desviar-me do assunto. Também é verdade que não tenho assunto. Sono é a única coisa que possuo, mas sem vontade de dormir. Depois de jantar, dei uma pequena volta por essa baixa. Observei com atenção casas antigas, de um tempo em que a vila – isto era uma vila, antes de cair sobre o país a tragédia das elevações a cidade – um tempo em que a vila, repito-me, tinha alguma influência, ou gente com influência. Dois governadores da chamada Índia portuguesa nasceram aqui. Tudo isso passou. No entanto, recordei-o hoje, há recantos belíssimos, de um romantismo antigo, daquele que ainda sonhava com a Idade Média. Isso recordou-me a época em que eu, pobre de mim, me achava deslocado no mundo moderno e sentia que a minha pátria era a Idade Média. Tudo isto, porém, era uma encenação privada que não partilhava com ninguém. Uma fantasia inocente, que não levava a sério, pois não passo de um ser conformado às comodidades dos nossos dias. No entanto, pensando bem, aquele tempo em que me sentia um homem da Idade Média era, na verdade, uma Idade Média. Os computadores eram seres que pertenciam a seitas esotéricas. Ter um telefone implicava anos de espera e a televisão era a preto e branco. Também é verdade que não melhorou quando foi colorida. Pelo contrário. Tudo era mais lento, havia poucos carros e as pessoas iam, aos domingos, ao futebol ou ao cinema, depois de terem ido à missa, as que iam. Foi disso que me lembrei, ao olhar o rio, as casas, as ruas, onde não vi ninguém conhecido. Depois, peguei no carro e tudo se apagou.
terça-feira, 3 de junho de 2025
Arquétipos
Ontem revi Casablanca, a velha e famosa obra de Michael Curtiz, com Humphey Bogart e Ingrid Bergman. A certa altura dou comigo a pensar que o filme está construído num pressuposto utilitarista. O utilitarismo é um corrente filosófica que defende que o valor moral de uma acção reside nas suas consequências. Elas devem promover a felicidade não do agente, mas do maior número possível de implicados pela acção. Rick (Humphrey Bogart) sacrifica o seu amor por Ilse (Ingrid Bergman) em nome de um bem maior, em favor da felicidade do maior número. Não é de admirar, pois a sociedade americana não era indiferente a uma certa tonalidade utilitarista. Todavia esta inscrição do filme de Curtiz na filosofia de Bentham, de Mill e de Sidgwick é secundária. Há, na cultura ocidental, um arquétipo de onde emana o acto de Rick: o Cristo que morre na cruz pela salvação dos homens. Aparentemente nada liga a figura do fundador do cristianismo e a do cínico proprietário de um café em Casablanca. A força dos arquétipos reside nisso mesmo: manifestam-se onde menos se espera. Aliás, muito facilmente se descobrem outras figuras arquetípicas provenientes da cultura judaico-cristã por detrás das principais personagens do filme. São estes arquétipos que dão profundidade às culturas humanas, enquanto as separam umas das outras e estabelecem entre elas um grau de incompreensibilidade muito mais rígido do que a incompreensão linguística. Traduzir palavras e frases é fácil. Difícil, se não impossível, é a tradução de arquétipos, pois estes persistem silenciosos e operam a níveis muito fundos do nosso psiquismo. Não seria possível a um realizador japonês, chinês, indiano ou muçulmano realizar Casablanca, tal como o filme foi concebido dentro da cultura ocidental.
segunda-feira, 2 de junho de 2025
Desconstrução
As segundas-feiras são sempre dias de queda. Queda? Sim, na realidade. Os fins-de-semana são um mergulho num mundo de ficção, a entrada na fantasia de que superámos a fase existencial da humanidade governada pela estrita necessidade. É uma doce e calorosa quimera, que entra em nós, se aninha e que, quando a velha necessidade, com o seu ar de bruxa imperativa, bate à porta, ela recusa-se a abri-la. Contudo, a porta abre-se e a matrona inexorável toma conta da cena, arrastando-se, e aos mortais com ela, pelo palco. Os homens habituam-se e, por vezes, tornam-se colaboracionistas, vendendo a sua liberdade ao império inimigo. Contudo, mesmo os mais contumazes agentes da utilidade sentem uma inquietante estranheza às segundas-feiras. O que se dirá de mim, eu que faço parte da resistência? É um choque traumático. Só não sou levado ao divã do psicanalista porque não tenho inclinação nem para a confissão nem para ficar traumatizado por mais do que umas horas. Como se sabe, todos nós somos habitados por outros seres, aos quais, à falta de melhor, dei o nome de homúnculos. Sócrates tinha um daimon, um génio; eu, por um homúnculo. Ao contrário do que morava no filósofo ateniense, o meu não é benfazejo. Está sempre a desmontar o meu discurso. Desconfio, que foi discípulo de Derrida, ou que anda a ler aqueles tratados soporíferos saídos da imaginação de um francês dispensado de pagar tributo à necessidade. Estava eu a dizer que não sou dado a confissões nem inclinado a traumas, logo ele começou a gargalhar, perguntando-me se estes escritos não são confissões. Por uma vez, cheguei para ele. Respondi-lhe: claro, são confissões, mas sem confessado. Ele calou-se, foi ler o De la grammatologie e deixou-me em paz. Por uma vez, saí vitorioso. O pior é que isso não me devolve a doce quimera que estava no meu coração e que a megera expulsou. Por uns dias, espero.
domingo, 1 de junho de 2025
Arte total
Uma das discussões com algum peso no âmbito da filosofia da arte, na sua vertente anglo-saxónica, é a da possibilidade de dar um definição de arte. Há propostas essencialistas – que pretendem encontrar uma essência comum a todas as obras de arte, independentemente da natureza e origem destas. Há leituras cépticas que negam a possibilidade de encontrar uma definição global de arte. Há teorias que deslocam a definição da arte das obras para os contextos em que estas se inserem. Isto é um problema filosófico e não artístico. Os artistas estão mais preocupados com a produção do que com a definição. Todavia, a ideia de uma totalização – toda a definição implica uma totalização – não deixa de ser atraente, mesmo pensada fora da questão filosófica. Há um espírito humano único, mas que se fragmenta nas modalidades de expressão: música, poesia, narrativa, pintura, fotografia, dança, arquitectura, escultura, drama, cinema, etc., etc. Esse espírito único para se manifestar – talvez devido à finitude e aos limites humanos – tem de se fragmentar. E essa fragmentação em especialidades artísticas não pode deixar de ser sentida como a perda de qualquer coisa fundamental. Não de uma essência única comum a todas as obras de arte, mas de uma unidade poética do espírito. Ora, o caminho da arte tem sido o da contínua especialização ao longo dos milénios, mas a obra de arte total, aquela que satisfaria os anseios mais fundos do espírito humano, seria uma englobasse todas as especialidades, uma que fundisse aquilo que estilhaçou. Esta utopia artística seria possível apenas a um Deus, tal como o define o teísmo, mas o facto de ela assombrar os homens pode ser um sintoma de serem – ou de desejarem ser – tido à ou como imagem e semelhança da divindade.