Por vezes interesso-me pelo estado do mundo, mas, em contrapartida, o estado do mundo nunca se interessou por mim. Ora, uma relação onde não há reciprocidade é um casamento condenado. Kant, na Filosofia do Direito, tanto quanto me lembro, emitia um juízo negativo aos casamentos interclassistas e também aos poligâmicos. A razão seria a mesma: a ausência de reciprocidade. Não consta que o venerado filósofo de Königsberg tivesse inclinação para a poligamia – mas, quem sou eu para saber das inclinações de outro? – por isso, a explicação mais plausível para se ter mantido solteiro toda a vida é não ter encontrado uma mulher com quem pudesse estabelecer uma relação de reciprocidade. Se ele pensava que num casamento entre alguém com mais dinheiro ou influência e alguém com menos, este último estaria em desvantagem e, de algum modo, perderia a sua autonomia, também é plausível pensar que essa assimetria entre cônjuges estaria presente entre um homem como ele e uma mulher que não se interessasse pelo magno problema de saber se a Metafísica era possível enquanto ciência. A minha tese, porém, é outra. Certamente haveria mulheres dispostas a discutir, no leito matrimonial, o espinhoso problema que assombrou a Crítica da Razão Pura. No vasto mundo, pode-se encontrar de tudo. O problema é que Kant nunca saiu da cidade onde nasceu e, devido ao seu amor ao torrão natal, não encontrou aquela que lhe abriria o espírito para a possibilidade de tornar a Metafísica uma ciência ao lado da Física e da Matemática. Talvez, enquanto estudante, tenha ouvido uma outra versão, um mito urbano recolhido por algum biógrafo tardio. Kant terá dito que, quando precisava de uma mulher, não tinha dinheiro para ela, e, quando chegou a uma situação económica desafogada, já não precisava de uma mulher. Se esta historieta é verdadeira, dever-se-ia perguntar ao eminente pensador como é que tal afirmação se coadunava com a fórmula da humanidade do imperativo categórico, que ordena respeitar a dignidade do outro, tratando-o sempre como um fim e nunca apenas como um meio. Este texto é um exemplo do estado corrompido da minha mente: começo a falar de uma relação pessoal com o estado do mundo e acabo a lançar a suspeita de uma incoerência na mais alta personagem que a cidade de Königsberg alguma vez deu ao mundo.
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