terça-feira, 24 de junho de 2025

Química

Acordei sorumbático, uma visão cinzenta sobre o estado das coisas, embora nem o estado nem as coisas estivessem definidos na minha consciência. Também algumas dores, sem importância, induzidas pela incerteza do tempo, me obsidiavam. Quando me cansei, decidi-me a tomar um comprimido receitado por uma médica. Quando a acção do químico começou a fazer efeito, não apenas as dores deixaram de me importunar, como o cinzento com que via o mundo da manhã, deu lugar a uma visão mais solar pela tarde. Agora que penso em tudo isso, vejo nascer em mim dois núcleos de perplexidades. O primeiro grupo é de natureza epistémica: será que a minha visão sorumbática e cinzenta do estado das coisas era mesmo minha ou induzida pela manhã sombria? Ou será que a manhã estava sombria porque, estando eu com visões em cinzento, a via assim? O segundo núcleo toca a ontologia. Será que a natureza das minhas visões é o fruto de combinações químicas? Basta uma leve alteração química no organismo, e logo a minha visão se torna outra? E, para tornar as coisas piores, se a visão é apenas uma metonímia, onde se toma a parte pelo todo? E se não é apenas a natureza da minha visão das coisas que é fruto de meras combinações químicas, mas todo o meu ser? Preocupamo-nos com a nossa identidade, elaboramos teorias sobre o eu e o self, mas não deveríamos antes preocuparmo-nos com a química? Talvez vivamos sob uma despótica tirania química, onde somos, ao mesmo tempo, tiranos e tiranizados, enquanto construímos narrativas onde nunca deixamos de ser os heróis – mesmo quando fazemos de anti-heróis – num mundo ora malévolo, ora benevolente, conforme a disposição e o humor da química. O pior é que as próprias ilusões são ainda fruto da química.

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