terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Liberdade

Num ensaio sobre um romance de Mauriac, Sartre defende que o essencial de uma obra romanesca está na liberdade. Não se refere, claro, nem à liberdade do autor, nem a um panfleto em defesa das liberdades políticas e sociais. Trata-se antes da liberdade das personagens. Que o seu devir na acção romanesca não esteja determinado por condições como a hereditariedade, a psicologia do indivíduo ou a sociedade. Seja, pelo contrário, a manifestação da capacidade humana de iniciar alguma coisa no mundo que a cadeia de nexos causais não seria capaz de prever. Isto assemelhará os seres humanos a Deus. Não porque sejam criadores do universo, mas porque são criadores da sua existência. Imagino que o problema sartriano não será literário, mas filosófico. Uma polémica com os deterministas, que negam que os homens façam escolhas genuínas, estando todas as suas acções determinadas por causas que eles não controlam e que, na verdade, desconhecem. Resta saber se a ideia de se ser senhor das suas próprias acções não será uma manifestação de um orgulho desmedido, uma pretensão que a realidade, se observada com cuidado, desmente. Se se pensar na tragédia grega, descobre-se que os heróis acabam sempre por ser punidos por essa pretensão de se libertarem de uma causalidade estrita. Ora, esta punição infligida pelo destino será uma prova, e não das menores, dessa mesma liberdade. Foi esta ideia de liberdade que me salvou nos verdes anos de uma submissão a certos cantos da sereia que anunciavam um futuro risonho pelo mero desenvolvimento das leis da História, como se esta fosse uma Física newtoniana aplicada ao devir dos homens. Imagino que aquela história de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus se refira a isto, ao facto de podermos ser livres e conformarmos a nossa existência pelas escolhas que fazemos.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A realidade

Passei o dia tão mergulhado na realidade que nem dei pela noite chegar. A realidade, ao contrário do que muitos pensam, tem um poder absorvente que pode ser letal. Por norma, as pessoas criticam o devaneio, a fuga da realidade. Contudo, as artes do devaneio e da fuga são apenas respostas ao peso obsessivo da realidade. Quando nos submetemos de corpo e alma a ela, submetemo-nos ao império das coisas. Das coisas? Sim, das coisas. Realidade deriva de real. Este significa o que existe de verdade, o que não é imaginário. Curvarmo-nos à realidade seria então uma forma de submissão ao verdadeiro. A este opor-se-ia aquilo que é imaginário, isto é, o que está no fundamento das artes do devaneio e da fuga. O que esconde, porém, a palavra real? A sua raiz está no latim res, que significa coisa. Submetermo-nos à realidade é uma forma de submissão às coisas. Devanear e fugir da realidade é então um modo de preservarmos a dignidade de seres que não são meras coisas. Uma emancipação, embora exista quem esteja convencido que é uma forma de alienação. Não vou arguir a causa. Quem gostar do peso da realidade que a ela se submeta. Quem não gostar, ensaie a arte da fuga ou a técnica do devaneio. Agora, retorno para a realidade.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Pobres enganos

Os meus planos, os meus pobres enganos. Isto cantava Chico Buarque de Holanda nos anos sessenta do século passado. Fazia-o por causa da Rita que lhe teria levado tudo, inclusive os vintes anos, e deixado mudo o violão. Ora, também eu faço planos e confronto-me com os meus pobres enganos. Não por causa da Rita, nem dos vinte anos, mas porque ontem fiz planos para hoje de manhã que não passavam pela ida à urgência do hospital aqui da terra. Pobre engano e lá fui eu temeroso das grandes esperas, preparado para rumar a outras paragens. Afinal não havia filas intermináveis, nem sequer filas. Fui triado por uma enfermeira, talvez com a idade dos meus filhos, que me admoestou com benevolência, perguntando, como quem afirma estar perante uma idiotice, como tinha deixado chegar as coisas ali. Fez-me perguntas sérias. Dei-lhe respostas sérias. Expus a causa do mal que me acometia. Um certo medicamento. Não conhecia. Disse-lhe que visava pôr em ordem um coração arrítmico. Há outros disse ela. Evitei responder que o especialista no assunto que me segue lá saberá o que anda a fazer. Depois, colocou-me uma pulseira no braço direito, onde constava o número do processo, o meu nome – melhor, o nome do autor destes textos, mas não o do narrador – a data de nascimento e, para o caso de alguém olhar para o braço e não saber subtrair de 2023 o ano do meu nascimento, estava escarrapachada a idade. Além disso uma bola, que não é bola nenhuma, mas um círculo, verde. Ao mesmo tempo ia dando-me conselhos sobre a alimentação a fazer para evitar estas coisas. Não contente, levou-me a outra sala e deu-me uma beberagem e mandou-me esperar que o médico me chamasse. Eu, confesso, estava por tudo. Bebi, agradeci e aguardei. Pouco. O médico, mal entrei, mandou-me tirar o casaco e deitar-me na marquesa. Obedeci. Fez palpação do ventre. Mandou-me levantar e ir fazer uma radiografia. O segurança que me indicasse o lugar. Lá fui seguindo uma linha azul e no fim desta toquei à campainha, como me fora recomendado. Vieram abrir. Um técnico mandou-me tirar o casaco. Uma técnica mandou-me pôr as calças para baixo e encostar a barriga a uma placa. É um pouco humilhante, achei. Fotografaram, mandaram-me arranjar e que esperasse pela chamada do doutor. Assim fiz, mas não esperei. Está tudo em ordem, é só uma obstipação. Só tem fezes. Tome isto e isto. A receita vai para o seu telemóvel. Muito obrigado e bom dia, disse eu, e escapuli-me. Paguei o que tinha a pagar e fui à farmácia, onde a farmacêutica, mais uma vez com a idade dos meus filhos, me tratou também ela com benevolência e não hesitou em dar-me conselhos alimentares. Evitar o arroz, as pêras e as bananas, fazer exercício. Fiquei-lhe grato. A grande conclusão que tiro desta aventura é que os cursos de farmácia e de enfermagem incluem cadeiras sobre a alimentação e dietas que devemos seguir, enquanto os de medicina evitam o assunto, pois o médico foi a única personagem que não me deu conselho sobre a alimentação. Com tudo isto, entre tantos conselhos, os meus planos para domingo esvaíram-se, embora o mal que me acometia tenha recuado para limiares suportáveis.

sábado, 14 de janeiro de 2023

Preguiça e outros pecados

Está um sábado cinzento e preguiçoso. Acabei por me solidarizar com ele. Também estou acinzentado e entrego-me ao culto dessa deusa menor que é a preguiça. Não sou como o genro do senhor Marx que lhe fez um elogio em forma de ensaio. Prefiro entregar-me a ela do que encomiá-la. Faço-o com moderação, como se fosse um discípulo de Aristóteles. Um pensador católico alemão, Josef Pieper, parece discordar da transformação da pobre preguiça em pecado capital. Argumenta que a preguiça está longe de ser a mesma coisa do que a velha acédia ou acídia. Haveria no facto uma subversão teológica e o dobrar do joelho à ordem da moral capitalista. Para os gregos da Antiguidade Clássica, o ócio não é pai de todos os vícios, mas a possibilidade da virtude, isto é, da especulação filosófica, que também era científica, e tinha uma dimensão prática. Se se pensar nos sete pecados capitais, talvez seja possível ver na sua interpretação um percurso que não será desinteressante. Em primeiro lugar, seriam revoltas contra a ordem divina das coisas, uma negação dessa ordem consumada nas virtudes e uma queda na desordem do próprio ser, uma queda fruto de uma decisão subjectiva. Num segundo tempo, estas condutas viciosas seriam defeitos do carácter. Uma falha educativa, digamos assim. E hoje? Porventura, serão patologias, muito provavelmente de ordem fisiológica ou psicofisiológica. O que é curioso neste percurso, caso ele não seja meramente imaginário, é a diluição da liberdade do indivíduo. De início, a responsabilidade estava na sua liberdade, nas escolhas que fazia. Depois, na dos educadores que não lhe souberam formar o carácter. Por fim, numa desordem orgânica de que ninguém é responsável e da qual todos são vítimas. Originalmente, o objectivo seria devolver a liberdade que se tinha corrompido. Agora, trata-se de restaurar a saúde de um organismo deficiente que empurra o indivíduo para gula, a inveja, a avareza, a ira, a luxúria, a soberba e para a suave e doce preguiça dos sábados cinzentos.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Contadores de histórias

Foi num livro de George Steiner que encontrei a informação. Uma parábola hassídica diz-nos que Deus criou o homem para que contasse histórias. O ‘para que’ indica uma finalidade, melhor uma causa final. A causa final da nossa existência é a de sermos narradores, contadores de histórias. O antropólogo Lévi-Strauss acrescenta que essa narração é a própria condição do nosso ser. Somos seres eminentemente literários, não porque amemos a literatura, mas porque ela é a nossa maneira de ser no mundo. Existimos narrativamente. Poder-se-ia ser tentado a opor a arte literária a discursos de outra índole, aparentemente, não narrativos. Por exemplo, a ciência ou a filosofia. Duvido que elas não sejam formas de narrativa e não façam parte desse imenso império que é a literatura. Da filosofia, não valerá a pena falar, pois os diálogos platónicos estão aí para o atestar, e como alguém dizia, talvez com exagero, o resto da filosofia não passa de um conjunto de notas de rodapé a esses diálogos. As teorias científicas não deixam de contar histórias e, mais do que isso, empregam grandes esforços para garantir senão a sua verdade absoluta, a sua máxima verosimilhança. A formalização matemática ou o recurso à experimentação podem parecer colocar essas áreas do discurso fora da narrativa, mas talvez as devamos interpretar como estratégias retóricas visando alcançar o consenso sobre a história que uma teoria científica nos conta acerca do mundo. Se se aceitar o que dizem Steiner e Strauss, então não poderia ser de outra maneira. Tudo em nós é o exercício dessa narratividade que nos constitui e nos institui. Imagino que não deveria escrever sobre estas coisas numa sexta-feira, mas a minha natureza impeliu-me para elas. Note-se, todavia, que se a causa final do homem e a sua própria condição é contar histórias, isso não assegura que cada um seja um bom narrador e conte boas histórias. E isto absolver-me-á.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Repetição

No friso das orquídeas, algumas estão quase a florir. Veremos se este lhes é um ano propício. O anterior não foi grande coisa e o espectáculo que elas proporcionaram foi curto e sofrível. Que palavra extraordinárias esta. Entrei em contacto com ela num colégio que frequentei durante três anos. Os professores, ao classificarem os pontos, era assim que se chamavam as provas de avaliação, tinham à disposição, entre o medíocre e o suficiente, o sofrível. Alguns, tanto quanto me recordo, conseguiam intercalar essa classificação entre o medíocre mais e o suficiente menos. Com essa nota, eles pretenderiam enviar uma mensagem: aquilo que escreveste ainda é suportável, ainda se consegue sofrer a afronta de ler essa coisa. Talvez já tenha escrito aqui sobre isto, mas entrei naquela fase da existência em que me é permitido a iteração contínua. Podemos imaginar que o exercício da repetição resulta de uma ausência, no stock das narrativas, de novas mercadorias. É uma possibilidade, mas prefiro outra hipótese. As repetições formaram um hábito que se alimenta a si mesmo. Este hábito tem uma finalidade, tornar-se um ritual, um exercício litúrgico que confere sentido à existência, a expressão de uma camada mítica sobre a qual se edifica o edifício da razão. Uma pessoa repete-se com a esperança de que desse acto possa surgir qualquer coisa de novo. Toda a inovação nasce da repetição, é esta que produz a aparência de fluidez e harmonia naquilo que se faz e que permite descobrir caminhos até aí nunca vistos. Espero apenas que as orquídeas não repitam o espectáculo do ano anterior.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Acaso

Não sei bem a razão, o que também se tem tornado um hábito, mas dei comigo a pensar nas obras literárias que tiveram em mim um peso decisivo, de tal modo que influenciaram – e presumo que continuam a influenciar – o modo como vejo as coisas. Não foi difícil chegar a um top três. Nele estão, por ordem cronológica de criação, Antígona, de Sófocles, O Processo, de Franz Kafka, e A Peste, de Albert Camus. No primeiro caso, o conflito entre a razão política e a razão moral abanou a minha crença ingénua – os verdes anos são isso mesmo – numa continuidade entre moral e política, abrindo-se dentro de mim, mas ainda não tinha linguagem conceptual para o dizer, uma ruptura no campo da razão prática. O texto de Kafka foi entendido como uma metáfora do absurdo da existência, de como ela pode não ter qualquer sentido e aquilo que nela ocorre resultar de motivos puramente aleatórios. É muito curiosa a forma como Joseph K. reage à irracionalidade do processo que lhe é movido. Por um lado, fica desorientado, mas procura dar respostas razoáveis àquilo que é, na sua essência, irrazoável. O que me ficou, assim, foi o choque entre razão e desrazão, como esta é, muitas vezes, mais forte e decisiva na vida dos seres humanos. Se Antígona tinha representado, ainda que de forma inconsciente, uma ruptura no campo da razão prática, O Processo representou uma cesura, mais uma vez inconsciente, no campo da razão teórica. O romance de Camus, por seu turno, trouxe-me a consciência do espaço concentracionário e tornou-me patente que todo o lugar de onde a liberdade humana é evacuada está assolado por uma patologia. A doença aniquila a liberdade. Ninguém escolhe aquilo que o marca. Não escolhi estas obras para que fossem decisivas para mim. Também não vou ter a presunção de achar que elas me escolheram, como quando se diz que as obras escolhem os seus leitores. Haveria já em mim um terreno preparado para elas, um terreno que eu desconhecia em absoluto e que só o soube depois, muito depois, de as ler. Podemos ter duas interpretações destes encontros. Uma interpretação fatalista. As obras estavam-me destinadas. Outra interpretação, agora indeterminista. O acaso conduziu-me a elas. As duas interpretações negam que esse encontro tivesse resultado de um acto livre da minha parte. Entre determinação fatalista e acaso, escolho este.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Da nudez

Se os antigos não se afrontavam com a representação da nudez humana, a expansão do cristianismo fez cair uma censura feroz sobre o corpo nu. A primeira pintura moderna que representa corpos despidos é um Adão e Eva de Jan van Eyck, datado de 1432. Existe, porém, um desenho sobre pergaminho, de 1425, da autoria de Antonio Pisanello, onde se vêem várias representações de um modelo feminino despido. Estamos, com estes pintores, na aurora de um novo mundo. Um mundo onde os indivíduos afirmam a sua subjectividade, ao mesmo tempo que, nas telas, se vão despindo. É no seu livro sobre pintura, de 1435, que Leon Battista Alberti dá um sagaz conselho. Os pintores devem desenhar pessoas despidas, pois só compreendendo o corpo nu é possível pintar correctamente um corpo com roupas. Em Alberti, a nudez ainda é meramente instrumental, mas ela vai conquistando espaço na representação humana. Nos dias que correm, a nudez tornou-se uma trivialidade. Resta saber se não se perdeu alguma coisa com isso. Não me refiro ao pudor, embora este nunca seja desprezível, mas ao espanto que um corpo nu poderia provocar num ambiente onde a representação da nudez estivesse ausente. Estas palavras constam de um dos cadernos de Eduína, dos quais sou involuntário herdeiro. A seguir ao texto existem diversos desenhos de um corpo humano que se vai vestindo. São esboços a lápis, que começam, de forma muito diluída, a nudez implicaria, segundo a autora, uma existência difusa, e terminam em traços vigorosos, como se um corpo só o fosse plenamente se estivesse vestido.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Videovigilância

Hoje pareço um bombista suicida com um aparelho preso ao pescoço. A finalidade é espiar-me o coração para detectar anomalias. Por vezes, ele decide dançar fora do ritmo programado. Não que entre em grandes delírios, mas o médico acha por bem submeter-me a este tipo de big brother. Aliás, a coisa começou hoje com um ecocardiograma, onde um operador de uma máquina anda com uma espécie de câmara e, enquanto observa, o filme no monitor, faz cortes e medições. Isto entrou-me pela manhã dentro e, de alguma forma, interferiu na trivialidade do meu dia. Apesar de já se notar o crescimento das horas de luz, chegámos ao momento do crepúsculo. Uma luz de cinza cai sobre a cidade. Anuncia a noite. São ainda muitas as coisas que me esperam. Talvez fiquem registadas no aparelho de videovigilância cardíaca. Nunca se sabe.

domingo, 8 de janeiro de 2023

Escuridões

Tem estado um dia tão cinzento e chuvoso que ainda não pus um pé fora de casa. Os domingos invernosos são um convite à introspecção, ao exame da vida. Consta que o velho Sócrates – ou Platão por ele – terá dito que só a vida examinada vale a pena ser vivida. Resta saber qual a intencionalidade desta máxima. A mais óbvia é a que nos diz que a vida só ganha valor ao ser examinada. Podemos, porém, pensar que só no exame descobrimos o valor da vida, o que implicaria que esta, por si, seria sempre um valor, mas que só se tinha consciência dele caso ela fosse submetida a avaliação. Um animal não-humano limita-se a viver, mas as pessoas precisam de submeter a sua existência a um escrutínio minucioso. Talvez seja por causa disto que existem domingos de Inverno como o de hoje, para que possamos, no recôndito do lar, projectar o crivo da razão sobre a nossa existência. Não foi o meu caso, pois tinha mais que fazer do que olhar para o fundo negro da existência, pois qualquer existência, quando se torna pretérita, não é outra coisa senão um poço escuro. E para escuridão basta o do dia. Tenho de ir arrumar umas coisas, antes que chegue a noite.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Propriedade

As festividades renderam-me um acréscimo de novecentos gramas, segundo informação fidedigna da balança, que só a deu depois de pisada. Não sei por que se submete ela a tal humilhação. Imagino que a balança seja já um dispositivo obsoleto ou a caminho da obsolescência. Deveria bastar uma câmara para calcular o peso. Passava-se sob ela e num monitor aparecia à informação. Recordo-me bem dos tempos que não havia balanças em casa. As pesagens eram feitas na farmácia. Depois, as balanças democratizaram-se para desassossego dos pesados, pois neste tema vale mais ser ligeiro do que pesado. Tem estado um verdadeiro dia de Inverno. Chuva, frio, embora não haja vento. Nas ruas, as pessoas caminham com caras invernais, onde resplandece o incómodo climático. Não me queixo, pois antes assim do que a ominosa canícula que, por aqui, vai, muitas vezes, de Maio a Outubro. Ao arrumar uns livros, encontrei um de Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado. Tem a uma assinatura de posse, a minha, o local de compra e a data, precisamente 2 de Fevereiro de 1987. Em tempos, fazia este tipo de declaração de posse, mas passou-me. Talvez tenha compreendido que, na verdade, nada possuímos. Somos apenas fiéis depositários de certos bens, que depois irão encontrar, caso encontrem, outros fiéis depositários. A ideia de propriedade contém em si uma certa hübrys. Como é que seres transitórios se arrogam a dizer que algo lhes é próprio, se nem a sua vida é propriedade sua. Isto não significa que os bens devem ser comunais. Significa apenas que aquilo que designamos como nosso é apenas uma coisa que está sob o nosso cuidado e, como compensação, podemos usufruí-la. Por exemplo, as balanças que teimamos em pisar para que elas nos insultem com o peso que devolvem.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Considerações intempestivas

Dia de Reis e ainda não comi uma fatia do bolo inventado em honra dos Magos. Confesso que, por aqui, foi substituído pelo bolo-rainha, mas não consta que existissem rainhas-magas. Seria, por certo, uma época em que a magia estaria nas mãos dos machos da espécie, o que pode explicar o carácter ilusória da coisa. Os homens são dados a ilusões, inclinados à idealização, enquanto as mulheres estarão, desde há muito, mais próximas da terra e mais inclinadas a dar atenção à realidade. É provável que estas considerações vão contra o espírito da nossa época, no qual todas as palavras têm de ser não só medidas, como ainda pesadas. Isto assemelha os vocábulos aos recém-nascidos. Nasceu, às quinze horas e três minutos, um menino com quatro quilos e cinquenta centímetros de altura. A linguagem, numa língua com centenas de anos, encontra-se em regressão, aproximando-se da sua existência intra-uterina, que é aquela que antecede o momento em algo vem à luz, para ser medido e pesado. O dia já teve melhor aspecto. Já teve sol. Agora, porém, acinzentou-se e exibe um rosto soturno, uma cara de poucos amigos. Espera-me uma visita, sempre dolorosa. Há que pôr os pés ao caminho, isto é, fazer deslizar as rodas no alcatrão.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Um dia que se ensarilhou

Há dias em que tudo se ensarilha. Foi o caso de hoje. Os meus planos, meus pobres enganos, para citar um certa canção brasileira, perderam o norte e cheguei a esta hora adiantada da noite sem vir aqui registar mais um dia. Talvez estes textos sejam um calendário que se vai construindo. Tem duas características dignas de nota. Por um lado, tem buracos, como se o tempo tivesse hiatos, se suspendesse, para voltar a correr. Por outro, é um calendário que não traz os dias futuros. Só os presentes e os passados. Será um calendário bem mais adequado do que os normais. Imagine-se que se comprou em Janeiro um calendário de 2023. Está ali, naquela construção dividida em meses e semanas, a ideia de que existe um futuro, que ele é uma realidade. Ora, isso é manifestamente falso. Não existe, neste momento, nenhum dia 14 de Maio de 2023. Caso estes textos sejam um calendário, eles são bem mais fiéis à natureza do tempo. Não há textos futuros, mas apenas o texto presente e os pretéritos. O futuro nunca existe, pois, cada momento vivido é sempre presente, e o próprio passado só existe nos textos, como memória. Não sei bem o que Agostinho de Hipona veio fazer para esta conversa, mas que lá veio, ele veio. Talvez seja o cansaço. Ora, o tempo não é uma coisa que neste momento me ocupe. Tenho estado mais interessado no que um certo poeta e teórico literário português escreveu sobre a arte, a arte moderna, no caso a arte literária. A arte seria uma forma de expressão do artista, como modo de se libertar do peso da comunidade, manifestar a sua individualidade, salvando-a da pressão do grupo.  Assenta  a sua posição na dicotomia arte como expressão (a arte estética) e a arte como comunicação (a arte didáctico-recreativa). A primeira não considera o público e centra-se na expressão da singularidade do artista. A segunda visa contentar o público ou, de algum modo, educá-lo. É possível que esta descrição se aplique, de modo muito ajustado, ao século XX e, mesmo, ao XXI. Contudo, se a arte não se deve sujeitar à pressão do rebanho, com as suas normas, incluindo as estético-artísticas, terá de ficar cativa das idiossincrasias do artista? Este dilema tem toda a aparência de ser falso. É plausível que se possa pensar e praticar a arte, sem que esteja sujeita à relatividade do grupo ou à subjectividade do artista. Isto, porém, seria conversa para outra hora, que não esta.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

O estado a que se chega

Cheguei há pouco a casa, comi meia dúzia de líchias, sentei-me na secretária e adormeci. Isto diz tudo do estado a que uma pessoa chega. Se sonhei, não faço ideia, pois raramente tenho consciência de sonhar e consta que sonhamos todas as noites. Seria um caso espinhoso para qualquer discípulo do velho Sigmund. Como poderia haver sessões de interpretação dos sonhos? Talvez exista uma interpretação psicanalítica para o facto de não ter consciência de sonhar. Aquilo que se oculta no meu inconsciente está de tal modo recalcado que nem no sono se revela, ainda que de forma simbólica. Por motivos que não vêm ao caso, passou-me sob os olhos uma citação do Abade de Sieyès. Talvez o mundo fosse um lugar melhor se esta personagem não tivesse existido, mas não há garantia. É possível que aquilo que ele escreveu andasse no ar do seu tempo e que um outro o tivesse escrito. Nunca sabemos se é o espírito do tempo que conduz a que se digam certas coisas ou se é o facto de certas coisas serem ditas que configura o espírito do tempo. Seja como for, não me é permitido, pelo autor destas linhas, escrever sobre o que escreveu o tal abade. Nestes textos, a política está rigorosamente banida e, como narrador, tenho de conformar-me às volições do autor, apesar de discordar dele em quase tudo. Isto não significa que exista um código narrativo que regula, com a força da lei, as actividades deste narrador. Não se chegou a tanto, mas há uma etiqueta, como um conjunto de regras de boa educação, que orienta o que se pode ou não narrar. Ainda a semana vai a meio e já estou com falta de assunto. Pela janela chega-me a luz crepuscular que há-de conduzir o dia ao sepulcro onde se unirá, em amoroso amplexo, à noite. Um verdeiro noivado do sepulcro. Se não arrepio caminho, ainda dou em ultra-romântico.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Aliteração

Comecemos imersos na aliteração. O retorno à realidade revela-se repetitivo, que raio. As festividades que vão do Natal ao Ano Novo são uma suspensão da realidade, uma visita a um outro mundo que logo se dissolverá. Vivemos numa sociedade que ainda valoriza o trabalho, esquecendo dois dados fundamentais da nossa cultura. Em primeiro lugar, a palavra trabalho tem origem no vocábulo latino tripalĭu, que designa um instrumento de tortura composto por três paus. O trabalho é uma tortura. Do mito judaico da expulsão de Adão e Eva do paraíso faz parte do castigo infligido à espécie humana o trabalho. A linguagem e os mitos têm um fundo poder descritivo da realidade. Basta prestar-lhes um pouco de atenção para compreendermos muito do que se passa. Em certo momento do século XX, a escuta da linguagem e dos mitos era uma metodologia pertinente para interrogar e tentar compreender aquilo que nos envolve e quem somos. Seria uma espécie de arqueologia dos sentidos que o tempo foi depositando em diversas camadas. Talvez tenha caído em desuso porque, na verdade, estava assente na ideia de que aquilo que é mais antigo estará mais próximo da verdade. Isto desmentiria uma concepção da história humana como aproximação progressiva à verdade, fazendo dela um processo de afastamento desse momento auroral em que a verdade se revelou aos homens, para que estes a fossem esquecendo, num processo involutivo que contraria a crença no progresso e na evolução da humanidade. O entardecer está belíssimo, uma luz solar ainda viva a reverberar na copa das árvores que o Inverno não despiu. Na rua, as pessoas, contaminadas pelos raios luminosos, parecem felizes e de ânimo elevado, resistindo, apesar de reféns, ao repetitivo retorno à realidade.

domingo, 1 de janeiro de 2023

Hidrotecnia

O ano começou sem poesia, mas com fogo-de-artifício, que é uma espécie de poesia para quem não gosta de poesia. Isto não significa que gostar daquilo que os poetas – ou alguns poetas em alguns poemas – escrevem e gostar de fogo-de-artifício sejam incompatíveis. Não são, mas quem espera algum contentamento encontrá-lo-á mais facilmente na pirotecnia no que na arte. Como se vê, começo mal o ano com uma meditação que não lembraria ao diabo, a quem, como se sabe, lembra muita coisa. Ainda não fui à rua este ano. Está um dia sombrio, o vento abana os ramos do arvoredo. Começou agora a chover. Uma chuva forte, enviesada pela ventania, como se trouxesse um desejo de fustigar os incautos que se passeiam na avenida, arrastados por cães minúsculos, a cumprir a sua função de dedicados cuidadores dos bichos que adoptaram. Como é domingo, ainda por cima primeiro dia do ano, o almoço será tarde. Um poema, Fragilidade, de Jorge Gomes Miranda começa assim: Aceito a fragilidade da noite, / o corpo que se vai dissolvendo / no tempo, / mas à mente destroçada / digo não. Parece-me uma presunção destituída de sentido esse digo não. Também eu gostaria de dizer não, mas a mente, como o corpo, está envolta numa fragilidade que não controlo. Poderá o meu corpo ceder antes da mente virar um destroço, mas caso isso não aconteça, é possível que o naufrágio mental se dê sem que eu disso tenha consciência. A chuva intensificou-se, e como sobre meu corpo e a minha mente, também sobre ela não tenho qualquer poder. É uma espécie de água-de-artifício, uma pirotecnia – deveria escrever hidrotecnia – que lava as ruas e as mentes, os corpos se alguém se esquece do seu à beira da estrada.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Rituais

Isto parece estar mau para os profetas. As profecias meteorológicas anunciavam quase um dilúvio, mas as nuvens têm-se mostrado renitentes em conceder a sua graça a quem se entrega a este tipo de augúrios. Pelo menos, por aqui. Pude ir à rua sem guarda-chuva. Constatei que o mundo mudou. Durante muito tempo vi fecharem as padarias, as velhas padarias que alimentaram a população durante décadas. Ora, hoje fui a uma padaria nova com o nome de uma encarnação da divindade hindu. Gente na casa dos quarenta anos, talvez um casal, que nunca vira por aqui, abriu um negócio, como aqueles que existem nas grandes cidades, trazendo uma nova forma de conceber o pão e de o vender. Depois, desta visita à inovação, fui a uma mais antiga pastelaria comprar um bolo-rainha. Encontrei pessoas conhecidas, algumas que envelheceram de forma desmedida. Há muito que não as via. Tomei café com um casal amigo e, no fim, desejámo-nos, mutuamente, um bom ano de 2023, embora toda a gente, conhecida ou não, o faça, se, por algum motivo, entra em contacto com qualquer outra pessoa. Estes rituais, muito deles meramente linguísticos, são importantes, pois é o ritual que salva a existência da usura do quotidiano. As sociedades modernas são máquinas de destruição de mitos e ritos, mas estes lá vão resistindo, reinventando-se para balizar a vida de cada um. Amanhã será dia de Ano Novo e este terá também os seus rituais e a sua própria mitologia.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Melancolia e inutilidades

As pequenas cidades de província são um poço de melancolia, mais ainda se se junta a pequenez e a interioridade. E para se estar no interior bastam uns meros vinte ou trinta quilómetros de afastamento do litoral, senão menos. Um inexorável despovoamento, aliado ao défice demográfico e à morte dos centros antigos, conduz a essa sensação de que algo se retirou e não mais voltará. Onde existe atracção turística, as coisas ainda são disfarçadas pela presença de mirones à procura de coisas nunca vistas, mas nos lugares que não atraem esses viajantes sem destino nem causa não se pode evitar a constatação de que a morte urbana progride silenciosa. Foi tudo isto que experimentei ao passar pelo centro da cidade onde me acolho, cidade bem mais desconsolada do que a antiga vila, plena de vida. Também é possível que esteja completamente errado e que sejam os meus olhos que, motivados pela idade e cansados do que já viram, vêem as coisas desta maneira. Não seria a melancolia da cidade que se desdobra diante de mim, mas a minha melancolia que ali se projecta. Ora, determinar o que numa certa imagem ou percepção das coisas pertence ao percebido e o que pertence ao sujeito que percebe dava uma bela, apesar de inútil, discussão. Não é que as coisas inúteis não exerçam grande fascínio sobre mim. Exercem, e toda a minha vida me interessei mais por aquilo que é inútil do que por aquilo que pertence à utilidade. Contudo, não me apetece chegar à hora do crepúsculo preso às cadeias da inutilidade. Amanhã será o último dia do ano. Eis uma informação que pode ter mil préstimos.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Tristezas

O poema Neve, do livro Ararate, de Louise Glück começa assim: Final de dezembro: eu e o meu pai / vamos a Nova Iorque, ao circo. Ao ler estes versos, tive uma reminiscência de uma ida ao circo com o meu. Não era Dezembro, nem foi em Nova Iorque, nem nevava, mas em Lisboa, no Coliseu, e estava calor, pois lembro-me de comer um gelado e de sujar o casaco da senhora que estava à frente. Isso foi há mais de sessenta anos. Não sei que impressão me ficou dessa experiência, mas o circo sempre foi um espectáculo que me deprimiu. Basta pensar nele para sentir tristeza, mesmo naqueles circos ricos que apareciam na televisão no dia de Ano Novo, ou talvez num outro dia qualquer, que me aparece na memória como sendo o primeiro do ano que começava. Trapezistas, palhaços, ricos ou pobres, equilibristas, engolidores de espadas e de fogo, domadores de feras, por todos eles sinto uma estranha compaixão, como se as suas profissões fossem piores do que todas as outras que por aí há. A origem dos nossos sentimentos é obscura e, por certo, desprovida de racionalidade, pois não há quem pondere aquilo que há-de sentir. Talvez todas as profissões sejam fonte de tristeza, mesmo para aqueles que dizem trabalhar por prazer. Uma outra hipótese é ter compreendido, de forma subliminar, que o circo é uma representação do mundo e que a tristeza que perante ele sinto se refira a uma desolação com o próprio mundo. Isto, porém, infringe a alegria que me assalta perante múltiplos acontecimentos que esse mundo transporta consigo. Acabei de ler um romance de Maria Isabel Barreno, autora de que nunca tinha lido nada. Também o mundo que ela narra me deixou um vestígio de tristeza, daquela tristeza que nos toca perante a consciência de que as nossas ilusões não passam disso mesmo.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Complacência

O ano está a chegar ao fim. Não faltarão retrospectivas do que passou e profecias para o que há-de vir. Há muito que imagino ser mais acertado fazer profecias sobre o que se passou e retrospectivas do que ainda não aconteceu. É possível que o resultado fosse o mesmo. A Terra prossegue a sua vida, rodando sobre si e girando em torno do Sol, com olímpica indiferença. Que os homens montem, a partir da sua actividade, calendários, será um problema que não a afecta. Durante algum tempo tirei fotografias. Evitava nelas a presença humana. Talvez fossem, penso-o agora, uma forma de reverência ao planeta que nos acolhe e dá vida. Se alguém achar que isso se deve à misantropia terei de considerar o assunto. Duvido, contudo, que a espécie humana gere em mim um sentimento tão forte. Complacência, sim, mas não ódio. A complacência começa comigo e estende-se ao próximo, mesmo que este esteja muito afastado. Na literatura, a complacência tem má fama. A condescendência é vista como uma falta de carácter, tornando o herói vicioso. Ora, no acto de ser complacente existe benevolência e esta, caso fosse universal, não tornaria a vida pior. Ontem levei as minhas netas ao mosteiro de Alcobaça. Enquanto deambulava por ali, ia pensando que o mosteiro está morto. Existe conservação e restauro, mas aquilo para o qual foi erguido desapareceu. Tornou-se um cadáver que não se corrompe, mas não deixa de ser um cadáver, como o são os corpos de Pedro e Inês, ali sepultados. A ânsia que sentimos de preservação do passado em forma de património é uma negação da realidade, uma recusa em perceber que é o espírito que vivifica e, quando este se retira, o monumento, por belo que seja, é apenas um despojo sem vida preso à terra.