Os meus planos, os meus pobres enganos. Isto cantava Chico Buarque de Holanda nos anos sessenta do século passado. Fazia-o por causa da Rita que lhe teria levado tudo, inclusive os vintes anos, e deixado mudo o violão. Ora, também eu faço planos e confronto-me com os meus pobres enganos. Não por causa da Rita, nem dos vinte anos, mas porque ontem fiz planos para hoje de manhã que não passavam pela ida à urgência do hospital aqui da terra. Pobre engano e lá fui eu temeroso das grandes esperas, preparado para rumar a outras paragens. Afinal não havia filas intermináveis, nem sequer filas. Fui triado por uma enfermeira, talvez com a idade dos meus filhos, que me admoestou com benevolência, perguntando, como quem afirma estar perante uma idiotice, como tinha deixado chegar as coisas ali. Fez-me perguntas sérias. Dei-lhe respostas sérias. Expus a causa do mal que me acometia. Um certo medicamento. Não conhecia. Disse-lhe que visava pôr em ordem um coração arrítmico. Há outros disse ela. Evitei responder que o especialista no assunto que me segue lá saberá o que anda a fazer. Depois, colocou-me uma pulseira no braço direito, onde constava o número do processo, o meu nome – melhor, o nome do autor destes textos, mas não o do narrador – a data de nascimento e, para o caso de alguém olhar para o braço e não saber subtrair de 2023 o ano do meu nascimento, estava escarrapachada a idade. Além disso uma bola, que não é bola nenhuma, mas um círculo, verde. Ao mesmo tempo ia dando-me conselhos sobre a alimentação a fazer para evitar estas coisas. Não contente, levou-me a outra sala e deu-me uma beberagem e mandou-me esperar que o médico me chamasse. Eu, confesso, estava por tudo. Bebi, agradeci e aguardei. Pouco. O médico, mal entrei, mandou-me tirar o casaco e deitar-me na marquesa. Obedeci. Fez palpação do ventre. Mandou-me levantar e ir fazer uma radiografia. O segurança que me indicasse o lugar. Lá fui seguindo uma linha azul e no fim desta toquei à campainha, como me fora recomendado. Vieram abrir. Um técnico mandou-me tirar o casaco. Uma técnica mandou-me pôr as calças para baixo e encostar a barriga a uma placa. É um pouco humilhante, achei. Fotografaram, mandaram-me arranjar e que esperasse pela chamada do doutor. Assim fiz, mas não esperei. Está tudo em ordem, é só uma obstipação. Só tem fezes. Tome isto e isto. A receita vai para o seu telemóvel. Muito obrigado e bom dia, disse eu, e escapuli-me. Paguei o que tinha a pagar e fui à farmácia, onde a farmacêutica, mais uma vez com a idade dos meus filhos, me tratou também ela com benevolência e não hesitou em dar-me conselhos alimentares. Evitar o arroz, as pêras e as bananas, fazer exercício. Fiquei-lhe grato. A grande conclusão que tiro desta aventura é que os cursos de farmácia e de enfermagem incluem cadeiras sobre a alimentação e dietas que devemos seguir, enquanto os de medicina evitam o assunto, pois o médico foi a única personagem que não me deu conselho sobre a alimentação. Com tudo isto, entre tantos conselhos, os meus planos para domingo esvaíram-se, embora o mal que me acometia tenha recuado para limiares suportáveis.
O admirável mundo novo vai, certamente, abolir algumas profissões, facilmente substituídas por computadores. Dentro de poucos anos o médico inumano vai dar lugar ao desumano que é médico. As suas melhoras.
ResponderEliminarMuito obrigado. As coisas têm evoluído muito bem. Eu não achei o médico que me viu inumano. Achei-o bastante objectivo e apreciei essa objectividade. Quando o médico for substituído pela Inteligência Artificial, a maior parte das profissões terão desaparecido. Talvez haja lugar para programadores, mas mesmo esses podem ter os dias contados. Cientistas? Talvez a IA seja mais capaz de fornecer conhecimentos objectivos. Tornar-nos-emos uma espécie solidamente ignorante.
EliminarUma espécie of *The importance of being Earnest*: Estamos a tentar encontrar novos significados para as palavras antigas, e muito bem. Temos de sobreviver aos tempos modernos. Permita-me discordar de si: o que é mesmo bom é o médico saber ser enfermeiro e auxiliar e farmacêutico (e meigo), sem tirar o emprego a ninguém. Apenas porque escolheu ser médico. É como ser Ernesto, num mundo em que já ninguém se chama Ernesto.
ResponderEliminarTalvez tenha razão. Contudo, não senti qualquer problema naquela objectividade, mas é possível que outras pessoas tenham necessidade de outro tipo de interacção.
ResponderEliminarComo já deve ter percebido, tenho grande respeito por este espaço (e pelo seu narrador). Nunca usufruí do SNS e poucas vezes do privado. Mas como médica (e sem querer especificar), acrescento apenas que, a falta de tempo em certos casos, nos pode dar em objectividade, o que nos tira em humanidade. [O que felizmente, no seu caso, foi compensado por outros profissionais].
EliminarCom excepção do problema dos atrasos, não tenho qualquer razão de queixa nem do SNS nem dos privados. Tenho encontrado pessoas afáveis. Tive um cardiologista (no privado, onde sou seguido nas maleitas do coração) que exagerava. As consultas chegavam a demorar uma hora, preenchidas com conversa. Os actos médicos eram poucos e de rotina. Era um consultório particular. Acabei por optar por outro cardiologista e outro consultório, mas devido a questões de horários. Agora, a conversa é mais curta.
ResponderEliminarFico apaziguada, por ler isso. Se agora fôssemos trocar experiências (e algumas, da minha parte, hilariantes), o Benfica iria, certamente, ganhar ao Sporting. Não sei de que clube é o narrador, ou se há uma cláusula que o impressa de revelar.
ResponderEliminarPois, nem política nem futebol. Apesar disso, narrador e autor são adeptos não praticantes de um clube. Isto é, se ele ganha, muito bem. Se perde, muito bem na mesma. Também não vêem os jogos.
ResponderEliminarParece que empatámos, seja lá qual for o clube, tirando o impressa, enfim, é o que dá ficar impressionado.
EliminarOnde está 'impressa' li 'impeça'.
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