quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Repetição

No friso das orquídeas, algumas estão quase a florir. Veremos se este lhes é um ano propício. O anterior não foi grande coisa e o espectáculo que elas proporcionaram foi curto e sofrível. Que palavra extraordinárias esta. Entrei em contacto com ela num colégio que frequentei durante três anos. Os professores, ao classificarem os pontos, era assim que se chamavam as provas de avaliação, tinham à disposição, entre o medíocre e o suficiente, o sofrível. Alguns, tanto quanto me recordo, conseguiam intercalar essa classificação entre o medíocre mais e o suficiente menos. Com essa nota, eles pretenderiam enviar uma mensagem: aquilo que escreveste ainda é suportável, ainda se consegue sofrer a afronta de ler essa coisa. Talvez já tenha escrito aqui sobre isto, mas entrei naquela fase da existência em que me é permitido a iteração contínua. Podemos imaginar que o exercício da repetição resulta de uma ausência, no stock das narrativas, de novas mercadorias. É uma possibilidade, mas prefiro outra hipótese. As repetições formaram um hábito que se alimenta a si mesmo. Este hábito tem uma finalidade, tornar-se um ritual, um exercício litúrgico que confere sentido à existência, a expressão de uma camada mítica sobre a qual se edifica o edifício da razão. Uma pessoa repete-se com a esperança de que desse acto possa surgir qualquer coisa de novo. Toda a inovação nasce da repetição, é esta que produz a aparência de fluidez e harmonia naquilo que se faz e que permite descobrir caminhos até aí nunca vistos. Espero apenas que as orquídeas não repitam o espectáculo do ano anterior.

4 comentários:

  1. Arrisco-me a levar com um sofrível (ou mesmo um mau) antes de ler a Antígona, que jaz na antiguidade de uma das minhas prateleiras, há, pelo menos, três anos. Mas já li o sortudo do Rex Stout e sei que as orquídeas gostam, como todo o jardim interior, de iteração. Nero Wolfe e as suas orquídeas talvez gostassem de Julius Eastman. Quem sabe.

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    1. Julius Eastman não conhecia, apesar de, por vezes, fazer incursões no minimalismo. Glass, Adams, Reich, também e acima de todos Arvo Pärt... Nero Wolfe, porém, foi um dos meus heróis. Talvez tivessem sido esses heróis policiais que me conduziram à Antígona, que me impressionou muito mais do que o Édipo Rei.

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    2. Se Femenine de Julius Eastman não fizer florir as orquídeas, sugiro Shostakovich, The Preludes & Fugues (por Alexander Melnikov).

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