quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

O estado a que se chega

Cheguei há pouco a casa, comi meia dúzia de líchias, sentei-me na secretária e adormeci. Isto diz tudo do estado a que uma pessoa chega. Se sonhei, não faço ideia, pois raramente tenho consciência de sonhar e consta que sonhamos todas as noites. Seria um caso espinhoso para qualquer discípulo do velho Sigmund. Como poderia haver sessões de interpretação dos sonhos? Talvez exista uma interpretação psicanalítica para o facto de não ter consciência de sonhar. Aquilo que se oculta no meu inconsciente está de tal modo recalcado que nem no sono se revela, ainda que de forma simbólica. Por motivos que não vêm ao caso, passou-me sob os olhos uma citação do Abade de Sieyès. Talvez o mundo fosse um lugar melhor se esta personagem não tivesse existido, mas não há garantia. É possível que aquilo que ele escreveu andasse no ar do seu tempo e que um outro o tivesse escrito. Nunca sabemos se é o espírito do tempo que conduz a que se digam certas coisas ou se é o facto de certas coisas serem ditas que configura o espírito do tempo. Seja como for, não me é permitido, pelo autor destas linhas, escrever sobre o que escreveu o tal abade. Nestes textos, a política está rigorosamente banida e, como narrador, tenho de conformar-me às volições do autor, apesar de discordar dele em quase tudo. Isto não significa que exista um código narrativo que regula, com a força da lei, as actividades deste narrador. Não se chegou a tanto, mas há uma etiqueta, como um conjunto de regras de boa educação, que orienta o que se pode ou não narrar. Ainda a semana vai a meio e já estou com falta de assunto. Pela janela chega-me a luz crepuscular que há-de conduzir o dia ao sepulcro onde se unirá, em amoroso amplexo, à noite. Um verdeiro noivado do sepulcro. Se não arrepio caminho, ainda dou em ultra-romântico.

2 comentários:

  1. Um adagio não é um concerto, tal como Carpe Diem não são as Odes de Horácio.

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