terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Aliteração

Comecemos imersos na aliteração. O retorno à realidade revela-se repetitivo, que raio. As festividades que vão do Natal ao Ano Novo são uma suspensão da realidade, uma visita a um outro mundo que logo se dissolverá. Vivemos numa sociedade que ainda valoriza o trabalho, esquecendo dois dados fundamentais da nossa cultura. Em primeiro lugar, a palavra trabalho tem origem no vocábulo latino tripalĭu, que designa um instrumento de tortura composto por três paus. O trabalho é uma tortura. Do mito judaico da expulsão de Adão e Eva do paraíso faz parte do castigo infligido à espécie humana o trabalho. A linguagem e os mitos têm um fundo poder descritivo da realidade. Basta prestar-lhes um pouco de atenção para compreendermos muito do que se passa. Em certo momento do século XX, a escuta da linguagem e dos mitos era uma metodologia pertinente para interrogar e tentar compreender aquilo que nos envolve e quem somos. Seria uma espécie de arqueologia dos sentidos que o tempo foi depositando em diversas camadas. Talvez tenha caído em desuso porque, na verdade, estava assente na ideia de que aquilo que é mais antigo estará mais próximo da verdade. Isto desmentiria uma concepção da história humana como aproximação progressiva à verdade, fazendo dela um processo de afastamento desse momento auroral em que a verdade se revelou aos homens, para que estes a fossem esquecendo, num processo involutivo que contraria a crença no progresso e na evolução da humanidade. O entardecer está belíssimo, uma luz solar ainda viva a reverberar na copa das árvores que o Inverno não despiu. Na rua, as pessoas, contaminadas pelos raios luminosos, parecem felizes e de ânimo elevado, resistindo, apesar de reféns, ao repetitivo retorno à realidade.

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