Foi num livro de George Steiner que encontrei a informação. Uma parábola hassídica diz-nos que Deus criou o homem para que contasse histórias. O ‘para que’ indica uma finalidade, melhor uma causa final. A causa final da nossa existência é a de sermos narradores, contadores de histórias. O antropólogo Lévi-Strauss acrescenta que essa narração é a própria condição do nosso ser. Somos seres eminentemente literários, não porque amemos a literatura, mas porque ela é a nossa maneira de ser no mundo. Existimos narrativamente. Poder-se-ia ser tentado a opor a arte literária a discursos de outra índole, aparentemente, não narrativos. Por exemplo, a ciência ou a filosofia. Duvido que elas não sejam formas de narrativa e não façam parte desse imenso império que é a literatura. Da filosofia, não valerá a pena falar, pois os diálogos platónicos estão aí para o atestar, e como alguém dizia, talvez com exagero, o resto da filosofia não passa de um conjunto de notas de rodapé a esses diálogos. As teorias científicas não deixam de contar histórias e, mais do que isso, empregam grandes esforços para garantir senão a sua verdade absoluta, a sua máxima verosimilhança. A formalização matemática ou o recurso à experimentação podem parecer colocar essas áreas do discurso fora da narrativa, mas talvez as devamos interpretar como estratégias retóricas visando alcançar o consenso sobre a história que uma teoria científica nos conta acerca do mundo. Se se aceitar o que dizem Steiner e Strauss, então não poderia ser de outra maneira. Tudo em nós é o exercício dessa narratividade que nos constitui e nos institui. Imagino que não deveria escrever sobre estas coisas numa sexta-feira, mas a minha natureza impeliu-me para elas. Note-se, todavia, que se a causa final do homem e a sua própria condição é contar histórias, isso não assegura que cada um seja um bom narrador e conte boas histórias. E isto absolver-me-á.
Eis uma tradução (algo esforçada), de uma opinião de Christopher Hitchens: *Toda a gente tem um livro dentro de si, que é exactamente onde, penso eu, na maior parte dos casos, deveria ficar.*
ResponderEliminarEntretanto procurei, na Errata, uma certa caneta de tinta permanente que o pai de Steiner lhe teria oferecido. Li uma sua entrevista ao Expresso, em 2017, republicada no ano da sua morte, e nada da caneta. Cheguei a ler partes do Diário Volúvel, de Vila-Matas, na esperança de aí encontrar alguma pista. Quase rezei o responso de Santo António. A caneta de Steiner nunca apareceu, mas a sua escrita continua permanente.
Há várias formas de tornar público um livro. Se for em papel, ou mesmo em formato digital, Hitchens terá toda a razão. Contudo, se cada um for dizendo o seu livro nas interacções diárias, não me parece que venha mal ao mundo. Será sempre uma narrativa fragmentária. E quando não houver interlocutor, a pessoa publica para si mesma, em silêncio ou falando alto. Uma outra hipótese será ver nos actos de uma existência a publicação do livro que cada um traz em em si. Aqui, porém, Hitchens terá razão. Pelo menos em parte. O mundo seria melhor se muita gente não publicasse o livro que traz no fundo de si.
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