O ano começou sem poesia, mas com fogo-de-artifício, que é uma espécie de poesia para quem não gosta de poesia. Isto não significa que gostar daquilo que os poetas – ou alguns poetas em alguns poemas – escrevem e gostar de fogo-de-artifício sejam incompatíveis. Não são, mas quem espera algum contentamento encontrá-lo-á mais facilmente na pirotecnia no que na arte. Como se vê, começo mal o ano com uma meditação que não lembraria ao diabo, a quem, como se sabe, lembra muita coisa. Ainda não fui à rua este ano. Está um dia sombrio, o vento abana os ramos do arvoredo. Começou agora a chover. Uma chuva forte, enviesada pela ventania, como se trouxesse um desejo de fustigar os incautos que se passeiam na avenida, arrastados por cães minúsculos, a cumprir a sua função de dedicados cuidadores dos bichos que adoptaram. Como é domingo, ainda por cima primeiro dia do ano, o almoço será tarde. Um poema, Fragilidade, de Jorge Gomes Miranda começa assim: Aceito a fragilidade da noite, / o corpo que se vai dissolvendo / no tempo, / mas à mente destroçada / digo não. Parece-me uma presunção destituída de sentido esse digo não. Também eu gostaria de dizer não, mas a mente, como o corpo, está envolta numa fragilidade que não controlo. Poderá o meu corpo ceder antes da mente virar um destroço, mas caso isso não aconteça, é possível que o naufrágio mental se dê sem que eu disso tenha consciência. A chuva intensificou-se, e como sobre meu corpo e a minha mente, também sobre ela não tenho qualquer poder. É uma espécie de água-de-artifício, uma pirotecnia – deveria escrever hidrotecnia – que lava as ruas e as mentes, os corpos se alguém se esquece do seu à beira da estrada.
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