Durante um ano, ainda por cima bissexto, dia após dia e sem uma única falha, escrevi um, e apenas um, texto destes. Nunca me imaginei tão fiel à regularidade e tão capaz de tal feito. Uma epopeia, digo para mim mesmo. Mais fácil teria sido ir a Tróia combater para devolver a Menelau, o lacedemónio, a mulher. Agora chove, mas quando saí de manhã, pareceu-me que o dia estava propício para o retorno de D. Sebastião. A chuva, porém, estragou tudo e ele já não volta. Há dias que sinto pena do pobre rei. Há tantos anos à espera de uma oportunidade para voltar, e sempre que se apresenta um nevoeiro dos antigos ele perde o avião e fica no seu exílio de ferrugem e latão, sabe-se lá por onde. Isto hoje está muito dado à monarquia. Um rei que perdeu a mulher e outro que se perdeu a ele. A cidade sob a névoa parecia outra, quase digna de um postal ilustrado, daqueles com decoração invernosa a preto, branco e cinza. Está na hora dos balanços e das expectativas, mas não estou com disposição para contabilidades ou projectos. O ano que termina foi o que foi, o que vai entrar será o que for. Nisto se resume a minha sabedoria, um conjunto de banalidades entrecortadas por lugares comuns. Por mim, abolia o calendário, mas como não me foi conferido poder para tanto, vou à varanda ver a chuva e fumar um cigarro.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2020
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
Em busca do adjectivo perdido
Estou há duas hora à procura de uma palavra. Tive necessidade dela para compor uma qualificação, mas esquivou-se sempre, perdida no labirinto da minha memória. Há vestígios de pegadas e não me canso de seguir pistas, mas não consigo apanhar o maldito adjectivo com que haveria de qualificar um pobre substantivo. Consta que os substantivos partiram para exílio, condenados pelos óstracos preenchidos pelo punho de ferro dos gramáticos inovadores. Ainda na gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra lhes era dedicado todo um capítulo. É verdade que a comprei há muito, num tempo em que ainda existia o jornal que se chamava O Jornal e havia livrarias que lhe pertenciam, num tempo em que um número de telefone da rede de Lisboa era composto apenas por seis algarismos, e os da província, onde a vida era mais simples e autêntica, por cinco. Se abrir uma gramática actual, não há substantivos, apenas nomes. Em contrapartida, O Jornal morreu há muito e os números de telefone chegaram aos nove dígitos. Um progresso. Um dia talvez partilhe uma meditação sobre o que se perdeu ao passar de substantivo para nome, mas hoje por hoje poupo o eventual leitor às coisas sem nexo que em mim são enxurrada. Além do mais, não me foi dada a vocação de gramático. Com esta conversa, a palavra continua em fuga e o substantivo parece impaciente, pergunta-me se demora muito a atribuição da qualificação, está com muita pressa. Respondo que há qualificações que podem demorar uma eternidade. A culpa é da burocracia do Estado, emperra tudo, sempre a levantar obstáculos às ideias maravilhosas e inovadoras dos cidadãos. Quando estes não as têm, como é o meu caso, a burocracia ataca a memória, esconde as palavras apropriadas, não hesita mesmo em fazer cair na ruína uma qualificação que haveria de determinar a felicidade senão de todos, pelo menos a do maior número, tudo de acordo com o princípio da utilidade. O problema é mesmo a burocracia, o labirinto processual kafkiano, o odor a naftalina que me vem à memória, o ranço da gramática que fala em substantivos, enquanto a outra, com odores de lavanda, fala em nomes contáveis e não contáveis, como se tudo não passasse de um negócio com contabilidade organizada. Se continuar a escrever, só paro em 2021, nem dou pela passagem de ano. Ah… encontrei o adjectivo.
terça-feira, 29 de dezembro de 2020
Uma dança rude
Acabei de fazer a primeira leitura do Poema à Duração, de Peter Handke. Depois, fechei o livro, extraí com cuidado da contracapa a etiqueta autocolante onde está o preço e a parafernália de informações que ali são encaixadas e colei-a no verso da capa. É um hábito inútil que adquiri há uns anos, uma espécie de habilidade manual que cultivo. Irrito-me se a operação corre mal e rasgo aquela peça informativa. Outras vezes, esqueço-me e a contracapa fica maculada com a prova de que um livro também é uma mercadoria. Não sei se era a isto que um certo autor do século XIX chamava fetichismo da mercadoria, mas bem podia ser. Bem, o melhor é afirmar desde já que sei que não era, antes que apareça alguém a querer discutir o conceito, que para mim não passa de um tropo literário para este texto. Não devias usar a palavra tropo, diz-me um dos homúnculos que habita a caverna da minha inconsciência. Mandei-o dormir e pus-me a contemplar o mundo lá de fora. As árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado já cresceram o suficiente para que as copas não me ocultem uma certa rotunda cheia de repuxos e umas figuras inomináveis vindas sabe-se lá de onde. Indiferentes ao desastre estético, os carros volteiam por ali e distribuem-se pelo mundo. Mais ao longe, as paredes do hospital que um dia foram brancas são agora um campo sujo, onde exércitos de fungos espalham véus de cinza escura. O sol sofre de raquitismo, mas as orquídeas estão quase todas carregadas de botões. Estão à espera que cheguem os Reis, para que as decorações de Natal sejam recolhidas e elas voltem para o friso de onde contemplam o universo. Depois de hoje, restam a Dezembro e ao ano dois dias. Virá então Janeiro e outro ano, mas nada disto é duração, apenas a dança rude do calendário.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2020
Mau humor matinal
Acordei cedo e levantei-me com péssimo humor, coisa que muito raramente acontece. Por norma, o humor matinal é mais de profunda ausência, de ainda estar num outro reino que não o da realidade, estado que o primeiro café liquida. Hoje, porém, não foi assim. Talvez tenha sonhado alguma coisa que, apesar de não saber o quê, me continua a irritar. Levantei-me e fui pôr o carro a tratar dos pneus. Daqui a duas horas estará pronto, informaram-me. Óptimo, respondi, e voltei para casa a pé, mas não se pense que tive de fazer uma grande caminhada. Talvez nem meio quilómetro. A manhã ameaça chuva e ainda levei com dois ou três pingos em cima, mas as nuvens, benévolas e divertidas com o meu humor, contiveram-se e permitiram-me chegar a casa sem percalços. Sentei-me no escritório, dei uma vista de olhos pelos sites noticiosos e confirmei o óbvio. O mundo ainda não acabou e continua a ser mundo, um sítio umas vezes péssimo para viver, outras o melhor dos mundos possíveis, e, na maioria dos casos, nem uma coisa nem outra. No Facebook alguém se queixa da burocracia a que está sujeito, dos relatórios a fazer e dessas coisas que a organização racional da empresa e do Estado modernos exigem, mas poupo os leitores a uma dissertação sobre Max Weber. Um raio de sol fende as nuvens, entra pela janela e ilumina-me as mãos e o teclado. Fico a olhar para o efeito de luz e sombra e sinto o mau humor a desfazer-se. Um segundo café e tudo entrará na velha ordem, onde serei uma pessoa benevolente e cheia de bonomia, digna da glória dos altares, não fora estar a mentir.
domingo, 27 de dezembro de 2020
A pequena pacatez
Tenho a vaga ideia de que quando acordei estava um domingo luminoso. A luz entrava pelas janelas como se fosse uma promessa de um mundo a vir, mas logo a intensidade da ilusão foi decrescendo, até que um véu de cinza cobriu a cidade encerrada na sua pequena pacatez. Da varanda voltada para a Sá Carneiro, não se avista qualquer transeunte, apenas carros vão passando com demora, distraídos, como se bocejassem melancolicamente durante um filme que não lhes interessasse. As minhas netas andam às voltas com os trabalhos de casa, que não são pouco. A mais nova sentou-se a meu lado e vamos discutindo uma história de papagaios, emigrantes e lavradores. No tempo em que frequentei a classe correspondente ao ano em que ela se encontra não me parece que os conhecimentos exigidos fossem tantos e tão complexos como agora. Eu sei que as pessoas que fizeram a escola nesses tempos soturnos, agora que o tempo edulcorou o passado, a acham uma coisa maravilhosa. O direito à ilusão também deverá estar inscrito na constituição e há que respeitá-lo. As noções de texto dramático que a pobre criança tem de saber excedem em muito aquilo que me terá sido exigido. Ela faz aquilo com bonomia, como quem diz que o que tem de ser tem muita força. Ensino-lhe a fazer um plano para escrever um texto, logo eu que nunca fui dado a planos, esboços e projectos. Olho para a rua e parece que a paisagem congelou, como se tempo tivesse deixado de existir e nada no mundo se movesse. Chaminés dos prédios vizinhos fumegam e na rua, suspeito, haverá cheiro a lareiras acesas. Oiço uma intimação para uma delas. Não quero ninguém de robe à mesa. Chegou a hora de almoço.
sábado, 26 de dezembro de 2020
Um náufrago à deriva
Estamos em pleno pós-Natal. Um sábado que não parece sábado antecede um domingo que há-de parecer outra coisa qualquer. Depois de um Natal todo ele passado em Lisboa, sem aquelas múltiplas viagens que a ausência de pandemia implica, um retorno à província, com netas atreladas. Tudo parecia bem, enquanto se consultava os sítios onde se poderia almoçar ao chegar. Pobres enganos. Acabada a escolha, um furo em plena A1, ainda antes das portagens de Alverca, deitou tudo a perder. Começou-se pelo exercício de despejar uma bagageira carregada como se se fosse mudar de casa. Os parafusos ainda saíram, mas a roda manteve-se firme no lugar, recusou-se a saltar de onde estava. A salvação veio de um carro da Brisa, onde alguém com um taco de madeira e um maço a ajudou a sair e, num gesto de gentileza suprema, colocou lá a outra. Estava colada, ouvi. Retomada a viagem, havia um sol brilhante e, no horizonte, uma lua esbranquiçada desenhava um crescente já bem visível. Sempre que a lua aparece durante o dia, tenho a sensação de estar num filme de ficção científica, num daqueles onde se salta de planeta em planeta com a maior das facilidades. Está um Inverno magnífico, com dias frios e uma luz intensa e vibrante. Na A1 havia pouco trânsito. Agora o sol desmaia-se lentamente, enquanto caminha em direcção àquele lugar a que chamam o sítio do sol posto. As raparigas são muito dramáticas. Uma leve dissensão motivada por um riso sardónico fora do lugar e logo temos direito a uma sessão bergmaniana de lágrimas e suspiros. A adolescência, com as suas borbulhas e humores volúveis, não é um lugar tranquilo para viver. No meu bloco-notas imaginário, escrevo: já tenho idade suficiente para ligar para o seguro e pedir para virem mudar o pneu. Era o que deveria ter feito, em vez de parecer um náufrago à deriva numa auto-estrada.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2020
Dia de Natal
Há pouco ouvi os sinos a chamarem para a missa do meio-dia. Memória antigas chegaram até mim, recordação de um tempo em que a norma do dia de Natal impunha a missa e o almoço em família. Nunca me lembro de haver lá por casa qualquer inclinação pela missa do Galo. A celebração religiosa perdeu-se lá muito atrás. Uma outra memória, bem mais antiga que parece inventada, veio intrometer-se, e transporta-me para Lisboa, com a minha mãe a ir à missa na Basílica da Estrela e eu a ficar a brincar no jardim com o meu pai, que sempre conheci como descrente e nunca o vi em qualquer acto religioso. Isso foi há tantos, tantos anos, que esta memória apenas existe porque me terá sido contada e recontada. No telemóvel, uma fotografia do meu neto em frente de um enorme bombo, um presente de alguém não destituído de ironia. Os dias de Natal tinham um problema terrível. Os cafés estavam quase todos fechados. Era um suplício e um exercício de paciência encontrar, na província, algum aberto. Depois, tudo isso deixou de ser importante e há muito que se bebe em casa um café tão forte como na rua. Hoje o almoço será tardio, porque tudo nos dias de Natal se tornou tardio. Tanto quanto me lembro, nesta época, na televisão havia saltos de ski – recuso-me a escrever esqui – e, à tarde, um concerto de Natal proveniente da Eurovisão. Porventura, isto também será inventado. A televisão nesses dias era dada a grandes interlúdios musicais, acompanhados pela informação pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos. Às vezes seguia, outras nem por isso. Qualquer prazer televisivo vivia sob a ameaça de se transformar num coitus interruptus, método contraceptivo então em voga e que tinha a vantagem de assegurar um razoável número de crias ao rebanho pátrio. Também havia o método da temperatura basal, que tinha o mesmo êxito, embora não se aplicasse à televisão.
quinta-feira, 24 de dezembro de 2020
Dezasseis palavras por minuto
Olho para o telemóvel. Informa-me que são onze horas e onze minutos. Estes acasos fascinam-me. Contemplo os quatro uns perfilados, apenas interrompidos a meio por um sinal de dois pontos. Imagino, então, que o tempo se suspendia nessa hora, não porque o mundo acabasse, mas porque o tempo tinha sido abolido e aquela informação era já um sinal do passado, pronta para que arqueólogos a encontrassem e especulassem sobre o mundo em que havia tempo. Logo o devaneio foi quebrado, pois uma súbita metamorfose levou a que o um da direita se transformasse em dois e o tempo retomasse o seu império sobre mim e sobre o mundo. Lá fora, o sol brilha, embora haja momentos em que empalidece, como se recebesse uma notícia desagradável. A consoada já está a caminho montada no ginete desse tempo que não foi abolido. Será a mais estranha das consoadas que me será dado viver. Os rituais natalícios foram esventrados por outros rituais mais imperativos. O vírus não é destituído de estratégia. Aproxima-se sorrateiro, sem se mostrar. Começam a ouvir-se notícias de quem foi por ele apanhado e esse alguém está cada vez mais perto, até que o inimigo põe cerco e não deixa ninguém sair das muralhas acasteladas onde as gentes se agrupam para a resistência. Ainda não cheguei aí, mas é cada vez mais possível. O telemóvel interrompe-me. Uma mensagem informa-me que me será entregue uma encomenda até às 19 horas. Encolho os ombros e vejo que são quase onze e meia. Está na hora de acabar o escrito, não sem antes pensar se foi lento ou rápido o ritmo da escrita. Faço as contas, dezasseis palavras por minuto.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2020
Tempos de suspensão
Sinto sempre que nas festividades cristãs, o Natal e a Páscoa, há um excesso para o qual os homens não estão preparados. Não sabem lidar com elas, com a perturbação que introduzem no modo como entendem espontaneamente o mundo, o que os leva para a trivialidade. Apesar da minha condição, também nunca soube bem como viver esses momentos. Não são fáceis. O pior, hoje em dia, é este vírus e eu, como é visível, estou velho, demasiado velho. Não devia, mas talvez tenha medo. Isto foi o que me disse há pouco, quando me ligou para desejar um bom Natal, o padre Lodovico. Depois lamentou-se da não realização do encontro habitual do grupo que ocorre sempre num certo restaurante de Campo de Ourique entre o Natal e o Ano Novo. A vida sem esses encontros perde cor, e, acrescentou, vocês têm filhos e netos, eu só tenho a minha vocação. Não é pouco, mas. E deixou a conjunção suspensa. A vida tem mais mistérios do que aqueles que estamos preparados para admitir, pensei quando a chamada acabou e eu fui espreitar a Sá Carneiro, por onde pessoas e carros deslizam como num sonho. Um homem ainda novo, de máscara preta, caminha devagar. De um bolso tira o telemóvel e logo as costas se arqueiam, como se um peso inesperado lhe tivesse caído sobre os ombros. Ao longe, as torres do castelo olham com indiferença o que se passa na cidade. Ainda mais longe, os pequenos outeiros que me limitam a visão fundem-se com o céu triste do dia. O Natal está à porta. Faço uma lista de pessoas a quem devo ligar. Depois, enumero as velhas práticas da época que a virose descabelada me obrigou a suspender. Vou almoçar, antes que se faça tarde.
terça-feira, 22 de dezembro de 2020
Uma fartura
Uma fartura. Fui a uma grande superfície comercial para comprar um saco natalício para um presente de uma das netas. Cheguei lá, havia uma enorme fila para entrar no sítio onde se vendem essas coisas, local que também serve de estação dos CTT, tabacaria, reprografia, papelaria, livraria e sei lá mais o quê. Contemplei a fila, girei sobre os calcanhares e fui-me dali. Na rua, o negócio das farturas estava aberto. Nem hesitei. Tentado, deixei-me cair, sem querer saber de diálogos com a balança e outras frescuras que se organizam à volta do que se come e do que se bebe. Tenho o raio da saqueta para comprar, em resumo. Depois, veio a noite, a temperatura caiu um pouco e dirigi-me para casa. As ruas estão mais agitadas, as pessoas continuam apegadas aos rituais natalícios, quero dizer, comprar, comprar, comprar. Fazem bem, pode acontecer como aos pais do Menino Jesus que, em vez de marcarem antecipadamente o quarto pelo Booking, foram para Belém à sorte, confiados numa boa estrela. A estrela não era má, mas os quartos estavam todos ocupados. Se o caso fosse hoje, o Menino ainda era tirado aos pais, para os punir de não cuidarem do nascimento da criança, e entregue a uma instituição. Este segundo dia de Inverno esteve primaveril, com um sol simpático, que sorriu durante as horas em que esteve acordado. Talvez tenha guardado o mau humor para a noite.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2020
A las cinco de la tarde
Hoje é o dia mais curto do ano, dia de solstício e, por inerência de funções, de começo do Inverno. Há pouco, temeroso de um rápido apagar de luz, fui à varanda do escritório contemplar o mundo envolvente, o céu cinzento e a aproximação do crepúsculo. Lá em baixo, o parque infantil jaz abandonado, os baloiços atados com fitas de plástico e uma proibição de frequência com nome de vírus. Uma sirene anuncia a aproximação das cinco da tarde, o que me traz à memória o poema de Lorca que começa precisamente A las cinco de la tarde. O poema tem por título La Cogida y la Muerte. Seria impensável em Portugal traduzir esse título como A Captura e a Morte. Isso, porém, aconteceu no Brasil. Não, não é uma captura, mas uma colhida, coisa que acontece nas praças de touros. Uma metáfora poderosa para o que sobrevém aos homens. Mais tarde ou mais cedo, todos acabam colhidos, por melhor que seja a faena a que se entreguem. Ao contrário do que se passa nas touradas, na vida o touro derrota sempre o toureiro e nem precisa que a filarmónica se entrega à euforia de um pasodoble. Numa tourada, o homem mata o touro, mas na verdade o que ele mata é a vida que o há-de matar a ele, num exercício que combina defesa preventiva e vingança antecipada. Se não vivesse na época em que vive, este narrador diria que uma tourada é um exercício de catarse. Porém, recusa-se a dizer tal coisa. Há crepúsculos fulgurantes, plenos de vermelhos, e há outros sombrios, como o de hoje. E eu que não queria falar nem de touros, nem de Lorca, nem de poesia, fui apanhado por tudo isso a las cinco de la tarde.
domingo, 20 de dezembro de 2020
Amanhã será outro dia
Dezembro galopa. Não tarda, terá deixado o Natal para trás e estará a bater à porta do Ano Novo. Não sei como ainda falamos em anos novos, a não ser por uma inclinação desmedida para nos iludirmos. Entre 31 de Dezembro e 1 de Janeiro, não haverá diferenças, nem novidades, nem inovações. Nada, a não ser estarmos um dia mais velhos, alguns mais velhos um dia e ressacados. Levantei-me cedo e estive a trabalhar durante toda a manhã. A tarde não vai ser diferente. Hoje não me chegam rumorejos da rua, talvez o silêncio seja um efeito de ser Domingo, ou do cinzento baço com que o céu se pintou, ou de o café da praceta estar fechado, ou de eu estar a ficar surdo. Há sempre tantas causas possíveis para aquilo que acontece, que nunca sei a verdadeira razão seja do que for. Ontem à noite brinquei com o meu neto. Vi desenhos animados e assisti a sessões de pintura no quadro branco que há no quarto das crianças. Já me trata por avô, isto é, por bô e, mal me vê, dá-me a mão e puxa-me para os sítios que quer visitar. Como é domingo, almoçarei tarde, para que uma velha tradição se cumpra. Amanhã será outro dia, a não ser que alguma coisa se passe no sistema solar, mas o melhor é não pensar nisso.
sábado, 19 de dezembro de 2020
Um vício deplorável
Um sábado desmaiado é o que nos cabe em sorte. Uma palidez de cinza cobre-o, enquanto oiço a libanesa Abeer Nehmeh a entoar cânticos sagrados maronitas, siríacos e bizantinos. Há muitos anos que sou sensível a tonalidades musicais que se afastam da tradição ocidental. Escutar essas músicas não é apenas um prazer estético exótico, uma espécie de revivescência do culto do orientalismo, mas fazer viagens a lugares onde turista algum poderá ir, ao espírito que se manifesta naquelas conjugações sonoras, que não precisam de tradução, mas antes de uma abertura do espírito ou do coração para que uma voz primordial fale através delas. Sob cada língua existe uma musicalidade e esta é, na sua particularidade e ao contrário das palavras, universal. Talvez a tradução entre línguas seja possível por causa da secreta musicalidade que a todas percorre. Hoje é sábado, como já fiz notar, e não deveria nesta manhã entregar-me a especulações sem nexo. Não resisto. Haverá coisas mais interessantes do que especulações sem nexo? Na praceta, uma rebarbadora entrega-se ao prazer de cortar azulejos e de me incomodar a audição da libanesa. É uma música infernal, pensei. Rebarbadoras, aspiradores, corta-relvas, toda a variada gama de instrumentos mecânicos são emanações das regiões inferiores, invenções de pequenos diabos desocupados, anjos caídos pertencentes às hierarquias mais baixas. Olho para a secretária, e o que lá vejo acumulado tira-me o ânimo. Logo, o meu neto vai estar cá, e isso salvará a anemia de sábado, o acumulado que vou desacumular e a rebarbativa música que me chega da rua. Devia escrever textos mais pequenos. A logorreia é um vício deplorável.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2020
A evolução das especies
Hoje é o décimo oitavo dia de Dezembro e o trecentésimo quinquagésimo terceiro dia do ano de 2020, segundo o calendário gregoriano que nos ajuda a lidar com esse animal escorregadio a que chamamos tempo. Como chapéus, também calendários há muitos. Servem todos eles para nos enraizar nessa coisa incompreensível que é o cosmos, dando-nos a ilusão de que sabemos a quantas andamos. A palavra deriva do latim calendarĭu, que significa registo e, também, livro de contas. Portanto, uma questão de contabilidade. Algum leitor incauto, ainda dira ah que rapaz tão culto, até sabe o que significa calendarĭu. Lamento a desilusão, ele apenas sabe consultar um dicionário. Seja como for, talvez saber consultar dicionários seja uma vantagem competitiva no processo evolutivo. Se analisarmos com cuidado nenhuma outra espécie humana – neandertais, denisovanos e outras – sabiam consultar dicionários. Resultado? Extinguiram-se. Tenhamos então esperança. Enquanto houver um ser humano que saiba consultar um dicionário, ainda que online, a espécie está segura e a extinção bem longe do horizonte. Neste momento já não consigo lembrar-me da razão porque comecei este texto como comecei. Talvez quisesse falar sobre a extinção das espécies, ou da noite que caiu há um bocado, ou de qualquer coisa que ignoro. Deixemos que a sexta-feira progrida lentamente e não se apressa a entregar-se nos braços do sábado. São dispensáveis cenas eróticas nestes textos.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
Se sonhasse
Se eu sonhasse, sonharia que era um extraterrestre que me perdera neste planeta e que, para sobreviver, tinha de parecer humano e crer naquilo que os homens acreditam. Era um exercício difícil, pois há gente disposta a dar assentimento às coisas mais inverosímeis, parecendo haver uma indústria para produzir as maiores tolices e outra para adestrar os incréus na fé de crer nelas. Não faltam sacerdotes e sacerdotisas, apóstolos e apóstolas. O que me vale é que não sonho e, logo, não sou um extraterrestre. Por isso, por não ser um verdadeiro ET, posso comer chocolate ou fumar um cigarro. Hesito entre os dois e, passados instantes, escolho o chocolate e o cigarro. Os alunos do centro de línguas entregam-se a uma algazarra sem fim. Talvez seja um intervalo. A noite está a cair, enquanto o dia, envelhecido, se decompõe em finas partículas de poeira que o vento levará para longe da nossa memória. Alguém grita golo, e eu recordo-me de também ter gritado golo e apaziguo-me com o caravancerai que vai ali por baixo. Os meus dias passam com a finalidade de passarem e de me arrastarem com eles. Conformo-me. Tenho uma quantidade enorme de tolices para meditar. Talvez me conduzam ao nirvana.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
Disposições cortantes
Tenho certa inclinação para comprar livros que ninguém, em perfeito juízo, se lembraria de comprar ou ler, mesmo que emprestados. Chegaram-me vários adquiridos num alfarrabista. Num romance, das Edições Ática, publicado em 1962, de uma autora que não terá deixado rasto na literatura nacional, há um registo manuscrito de posse do livro. Começa com o nome próprio, talvez um diminutivo, do proprietário ou da proprietária, ilegível, e depois os apelidos, um nome de família ligada à cidade de Leiria. Sim, fui investigar no Google. Na linha seguinte, diz apenas ano de 1966. Na terceira, surge Foi me oferecido pela. Na última, um nome de mulher, aliás, dois nomes, sem apelidos. O que interessa isto, perguntar-se-á. Nada, mas fiquei indeciso a que sexo atribuir a antiga propriedade da obra. É uma letra larga e, ao mesmo tempo, pontiaguda. Não há letra que não assente num único ponto, como se a intenção fosse cravá-las a todas nas linhas imaginárias. Fiquei com a impressão de que se trataria de uma pessoa com uma disposição cortante, talvez uma daquelas mulheres a que se associa a designação de víbora. Talvez esteja enganado, e o livro tenha sido oferecido à mais bondosa das pessoas. Nunca fui dado à grafologia. O romance nem começa particularmente mal: Há seres destinados a passarem como sombras pela vida, sem ocuparem lugar definido nem adquirirem vulto ou fisionomia que os distinga. Lido isto, logo senti uma estranha solidariedade com esses seres que passam pela existência sem que se tornem figuras. O pior, acudiu-me ao espírito, são aqueles que não apenas se tornam figuras, como chegam ao friso onde se amontoam os grandes figurões, cujo vulto e fisionomia todos conhecem, embora não haja quem não preferisse nunca lhes ter escutado o nome. A quarta-feira flui com lentidão, daqui a pouco terei direito a mais uma corveia, mas isso é o que acontece a quem não chega a ter vulto ou fisionomia que o distinga. O romance tem uma bela capa desenhada por Paulo-Guilherme e deve pesar mais de um quilograma. Nem tudo será mau ou pouco.
terça-feira, 15 de dezembro de 2020
Dobrar o cabo
Era meio-dia quando Dezembro dobrou o cabo e começou a inclinar-se para o fim que o espera. Chegado aí, virá Janeiro e um novo ano acolherá a embarcação onde nós, nautas sem destino, nos acotovelamos entre ilusões de regresso ao passado e esperanças que nunca deixam de fervilhar nas vísceras humanas. Pendem de uma tília da avenida algumas folhas amarelas. São tão poucas que quase me sinto tentado em contá-las, mas logo a atenção é requerida para outros acontecimentos, carros que se arrastam com vagares de gente desocupada, pessoas apressadas escondidas em máscaras, pequenos nadas com que ocupo o tempo. As orquídeas foram destronadas do seu friso pelos adereços de Natal, hibernam noutro lugar à espera que os Reis Magos cheguem a Belém, deixem os presentes e voltem para o Oriente, onde todos os anos os esperam. Então, voltará o friso das orquídeas, algumas já floridas e o tempo continuará a correr indiferente a dores e prazeres humanos, como sempre aconteceu e, presumo, sempre acontecerá.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2020
Sem agenda
Chove. Vejo as gotas de água dançar e, depois de uma hesitação, precipitarem-se para terra. Ao poisar, fazem pequenos lagos ou ribeiros incipientes. Pessoas passam abrigadas em guarda-chuvas, alguns com anúncios coloridos, outros mais sisudos. Há quem corra e entre num carro ou num café. Falta uma semana para que o Inverno chegue, mas ele já cá está há algum tempo. Faço uma lista de compras e outra de afazeres. Nem sei para que as faço, pois não tenho qualquer intenção de olhar para elas. Nunca tive uma agenda. Isto não é completamente verdade, mas as que tive nunca me serviram para nada. Até hoje não me fizeram falta. Vou a onde tenho de ir, faço o que tenho a fazer. Desconfio, porém, que não tarda e ser-me-ão de grande auxílio. Este ano, pela primeira-vez, esqueci o aniversário da minha sobrinha-neta. Passada uma semana, lembrei-me e achei o esquecimento um mau sinal. Apesar da chuva e das nuvens escuras, há momentos de reverberação, como acontece com certas lâmpadas que emitem um clarão intenso antes de se fundirem. Não tarda, e o dia funde-se. Nos sites noticiosos continua a contabilidade dos mortos. Os números são desagradáveis, mas ninguém quer saber. Os jornais começam a fazer a revista do ano, como se este fosse um ano que merecesse revista. Às segundas-feiras falta-me sempre assunto. Nos outros dias, também. Se dormisse uma sesta, ainda que tardia, tudo melhorava, mas não sou capaz.
domingo, 13 de dezembro de 2020
Ócio dominical
Quando há pouco olhei para a rua, o dia estava turvo, uma mancha de cinza húmida flutuava na atmosfera e caía lentamente no chão. Agora, porém, apesar do céu revestido por nuvens cinzentas, tudo se tornou definido como acontece quando se limpa os óculos sujos e embaciados. As cores tornaram-se mais vibrantes, os amarelos e castanhos das folhas mortas, os verdes daquelas que persistem por dentro da invernia, até os tons baços de muros e paredes ganharam uma nova vibração, um som mais musical. Das caves esconsas dos prédios saem automóveis para enfrentar as exigências de domingo, enquanto, sentado no escritório, bebo café e como uma fatia de bolo-rainha. E ao escrever isto, logo me maravilho com o progresso da igualdade entre géneros. Se não fosse excessivamente brejeiro e dado a más interpretações, diria que antigamente só o bolo do rei podia ser comido, agora também o da rainha se alcandorou ao êxtase da deglutição, mas para evitar mal-entendidos e interpretações falsas e ociosas afirmo que não escrevi o que acabaram de ler. Isto podia mesmo ocultar o mais importante. Assim como o arquitecto divino da costela do homem extraiu a mulher, também um pasteleiro humano de uma amêndoa torrada perdida no bolo-rei gerou o bolo-rainha. E em ambos os casos o segundo produto excedeu em larga medida a qualidade do primeiro. O que prova que Deus escolheu a melhor costela do homem, e o pasteleiro teve a sensatez de evitar criar o novo produto a partir da lamentável fava. Apesar da triste superficialidade do meu escrito, as cores continuam vibrantes, assim como a música que delas se desprende e inunda o universo até às esferas celestes. Como é belo o ócio dominical.
sábado, 12 de dezembro de 2020
A angústia progride
Atravessei há pouco parte da antiga vila, a zona a que por vezes, e talvez sem ironia, chamam histórica. Fico sempre sem saber se estou num filme distópico, uma pós-catástrofe, ou se num daqueles em que a desolação de certas zonas da América é trazida à luz por algum realizador arguto. Numa esplanada, havia pessoas sentadas, hirtas, umas de máscara e outras sem ela, mas todas olhavam para um sítio indefinido que parecia ter deixado de existir há muito. Prédios caídos, paredes por pintar, um comércio feito de ausências, uma tristeza sem fim, como se o futuro tivesse sido arrancado àqueles lugares e agora apenas existissem rugas e ruínas, memórias desfeitas, gente que se perdeu no caminho e ficou parada num tempo que não existe. Ocorreu-me que também eu não destoaria daquele cenário e acelerei o carro, afastei-me o mais depressa que a lei me permitiu. Depois, a tarde começou a enegrecer, a traçar as linhas que a haveriam de levar ao crepúsculo. Quando estacionei e saí, senti-me impelido a dar um pequeno passeio a pé, para me lavar por dentro, para dissolver o óleo rançoso que se acumulara. Agora a noite anuncia-se nos altifalantes de Dezembro, numa voz delida, numa pronúncia cansada. Enquanto escrevo, olho as acácias. Algumas folhas incertas resistem ao avanço da invernia, uma ambulância pára na urgência do hospital, assim a imagino a partir dos clarões azulados que rasgam a escuridão.