Tenho a vaga ideia de que quando acordei estava um domingo luminoso. A luz entrava pelas janelas como se fosse uma promessa de um mundo a vir, mas logo a intensidade da ilusão foi decrescendo, até que um véu de cinza cobriu a cidade encerrada na sua pequena pacatez. Da varanda voltada para a Sá Carneiro, não se avista qualquer transeunte, apenas carros vão passando com demora, distraídos, como se bocejassem melancolicamente durante um filme que não lhes interessasse. As minhas netas andam às voltas com os trabalhos de casa, que não são pouco. A mais nova sentou-se a meu lado e vamos discutindo uma história de papagaios, emigrantes e lavradores. No tempo em que frequentei a classe correspondente ao ano em que ela se encontra não me parece que os conhecimentos exigidos fossem tantos e tão complexos como agora. Eu sei que as pessoas que fizeram a escola nesses tempos soturnos, agora que o tempo edulcorou o passado, a acham uma coisa maravilhosa. O direito à ilusão também deverá estar inscrito na constituição e há que respeitá-lo. As noções de texto dramático que a pobre criança tem de saber excedem em muito aquilo que me terá sido exigido. Ela faz aquilo com bonomia, como quem diz que o que tem de ser tem muita força. Ensino-lhe a fazer um plano para escrever um texto, logo eu que nunca fui dado a planos, esboços e projectos. Olho para a rua e parece que a paisagem congelou, como se tempo tivesse deixado de existir e nada no mundo se movesse. Chaminés dos prédios vizinhos fumegam e na rua, suspeito, haverá cheiro a lareiras acesas. Oiço uma intimação para uma delas. Não quero ninguém de robe à mesa. Chegou a hora de almoço.
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