sábado, 12 de dezembro de 2020

A angústia progride

Atravessei há pouco parte da antiga vila, a zona a que por vezes, e talvez sem ironia, chamam histórica. Fico sempre sem saber se estou num filme distópico, uma pós-catástrofe, ou se num daqueles em que a desolação de certas zonas da América é trazida à luz por algum realizador arguto. Numa esplanada, havia pessoas sentadas, hirtas, umas de máscara e outras sem ela, mas todas olhavam para um sítio indefinido que parecia ter deixado de existir há muito. Prédios caídos, paredes por pintar, um comércio feito de ausências, uma tristeza sem fim, como se o futuro tivesse sido arrancado àqueles lugares e agora apenas existissem rugas e ruínas, memórias desfeitas, gente que se perdeu no caminho e ficou parada num tempo que não existe. Ocorreu-me que também eu não destoaria daquele cenário e acelerei o carro, afastei-me o mais depressa que a lei me permitiu. Depois, a tarde começou a enegrecer, a traçar as linhas que a haveriam de levar ao crepúsculo. Quando estacionei e saí, senti-me impelido a dar um pequeno passeio a pé, para me lavar por dentro, para dissolver o óleo rançoso que se acumulara. Agora a noite anuncia-se nos altifalantes de Dezembro, numa voz delida, numa pronúncia cansada. Enquanto escrevo, olho as acácias. Algumas folhas incertas resistem ao avanço da invernia, uma ambulância pára na urgência do hospital, assim a imagino a partir dos clarões azulados que rasgam a escuridão.

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