sábado, 31 de agosto de 2024

Repressão e censura

Leio num jornal online a frase a repressão é a mãe do desejo. A proposição não é particularmente inovadora ou, sequer, interessante, apenas explora uma promessa de erotização. Vivemos num mundo que se saturou de tal modo de psicanálise que tudo o que tenha o seu aroma se torna cansativo. Contudo, a frase recordou-me uma outra coisa, os livros que o antigo regime censurava e proibia. Sempre me pareceu que se essas obras fossem livres, o seu impacto social seria tendencialmente nulo. O acto censório era um modo de propaganda dos livros, muitos deles medíocres, outros de tal modo complexos que só seriam lidos por especialistas, os quais, apesar das proibições, encontravam sempre modo de os ler. Um dos livros vítima da censura portuguesa foi O Anticristo, de Friedrich Nietzsche. Contudo, que impacto poderia ter um livro que discute as raízes da cultura europeia e questões de natureza axiológica? O impacto que tem hoje, isto é, nulo. No acto de censura de um livro há uma crença de que os livros podem mudar o mundo. Uma crença exagerada. Mais facilmente uma descoberta tecnológica muda o mundo do que um livro ou mesmo um arsenal de livros. Repressão e censura de livros são exercícios não apenas moralmente inaceitáveis como inúteis.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Devaneio

O dia tal como tem estado ofereceu-me duas possibilidades para o pós-almoço. Ou sentar-me aqui onde estou a escrever e acabar por adormecer, ou ir caminhar, aproveitando o dia cinzento e fresco. Escolhi a segunda opção. Fiz alguns quilómetros absorto, acompanhado pela música de Alban Berg. Talvez devesse caminhar sem música, prestando atenção ao caminho, deixando-me contaminar pela surpresa que nele, por certo, sempre haverá. Isto seria a realização de um ideal de vida. Prestar uma atenção sem falha a cada coisa que se faz, evitando a distracção que nos rapta do tempo presente e nos envia para um não tempo, onde a imaginação se entrega às suas divagações, criando mundos oníricos que se sobrepõem ao mundo em que nos movemos. Ouvir música, enquanto se caminha, é um compromisso. A imaginação é sustida e a atenção é mobilizada pela realidade daquilo que se ouve. Podemos imaginar que a arte, do ponto de vista, daquele que a contempla – visual ou auditivamente – representa um pacto que evita tanto as utopias subjectivas da imaginação quanto a crueza da submissão à realidade que nos cabe. Agosto aproxima-se do fim e isso é a única coisa que me ocorre neste momento.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Causa sui

Uma pessoa perde-se. É de tal modo desmesurada a obra de Fernando Pessoa que um leitor, mesmo medianamente atento, deixa escapar inúmeras facetas. Descobri há pouco que também escreveu histórias policiais. Acho que lhe chamava novelas policiárias. Talvez também tenha escrito ficção científica. É difícil um país tão pequeno conter um escritor tão grande, foi o pensamento que me ocorreu quando descobri que nem o policial escapara ao poeta. Não devia pensar coisas destas, pois pode indispor aqueles que andam sempre com a pátria na boca e a bandeira na lapela. Isto, porém, são coisas que não cabem nestas narrativas. Para dizer a verdade, eu não pensei que É difícil um país tão pequeno conter um escritor tão grande. Foi o pensamento que se pensou em mim. Se se tiver atenção, descobre-se que muitos dos nossos pensamentos não são nossos, mas são coisas que se passam em nós sem que tenhamos qualquer responsabilidade delas. Somos responsáveis pela censura ou não desses acontecimentos que se dão na nossa mente, mas não criamos a maior parte deles. Talvez uma parte substancial da obra de Pessoa seja desse género, coisas que ocorrem na sua mente e que ele, em vez de censurar, regista. Ele deve ter sentido isso mesmo e ficou perturbado, tentando encontrar pensadores para muitos dos seus pensamentos poéticos. Daí a heteronomia. Se ele fosse mais radical, admitiria que toda aquela obra não tinha autor. A obra compusera-se nele, mas tinha-se autocriado. Como diria Espinosa, a obra, como Deus, é causa sui.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Sem laço

Em 1906, Arthur Moeller van den Bruck, um pensador alemão, com uma costela holandesa, ou neerlandesa, afirmava Uma perspectiva inesperada abriu-se assim diante da arte moderna: ser ela própria a cultura moderna! Passaram 118 anos e a profecia de van den Bruck parece falhada. A evolução da arte moderna afastou-a, de algum modo, do poder de dar forma a uma cultura moderna, uma cultura que se tornasse uma visão global e unificada do mundo. Pelo contrário, a arte moderna integra o amplo espectro daquilo a que poderíamos chamar o grande estilhaçamento. Por todo o lado, o que emergiu foi uma contínua pluralização espiritual e cultural, sem que se percebe nas infinitas manifestações culturais qualquer laço comum, a não ser o da sua radical autonomia e, por isso, não possuir qualquer princípio unificador partilhado com todo o resto. Não há uma cultura moderna, mas múltiplas culturas modernas, como não haverá uma arte moderna, mas múltiplas artes modernas, deslaçadas – culturas e artes modernas – umas das outras. Os nossos tempos são assim de estilhaçamento e deslaçamento. Uma unidade global do espírito poderá ter existido no passado, mas não existe no presente. Do futuro, nada sabemos. Em 1906, ainda se vivia sob a sombra de um passado que, agora, está morto.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Um acontecimento

Hoje, pela primeira vez nesta época balnear, passeei-me à beira-mar. Enquanto caminhava sobre a areia e sentia a água nos pés, pensava que era monsieur Hulot, num dos extraordinários filmes de Jacques Tati, no caso, Les Vancances de Monsieur Hulot. O filme é de 1953, ainda não tinha este narrador nascido. Demorei muitas décadas para poder encarnar a personagem que Tati filmou e encarnou, diga-se. O senhor Hulot era mais alto, mas pouco, do que este narrador e tinha uma inclinação pelo cachimbo, que não consta no rol das inclinações de quem narra este episódio. Partilhamos, porém, a inclinação para o desajeitamento, embora seja necessário fazer uma ressalva. Enquanto monsieur Hulot acentuava esse estado de pouco ajeitamento, este narrador disfarça, não poucas vezes com sucesso. A vida tem destas coisas que não sabemos como nos calham. Poderia ser uma encarnação de Ivan, o Terrível, mas não. Saiu-me na lotaria o senhor Hulot. O grande acontecimento, porém, foi mesmo estar à beira-mar, coisa que em tempos era banal, mas que se tornou excepção. Ainda fui desafiado para entrar dentro de água, mas exclamei de imediato vade retro Satana, que é como quem diz Afasta-te, Satanás, a que acrescentarei vai tentar o diabo, se quiseres mergulha tu. Eu tenho de passear, com o meu panamá genuíno na cabeça e as mãos atrás das costas, para ver o que se me apresentar diante dos olhos.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

A obra, não a biografia

Uma parte da manhã passei-a numa visita a uma casa-museu do século XIX. O proprietário foi um artista distintíssimo numa arte que então dava os primeiros passos. A visita foi guiada. O discurso da guia foi uma verdadeira hagiografia do antigo proprietário. Ora, este terá tido uma faceta privada pouco digna da glória dos altares, e não me refiro a picarescas aventuras sexuais, mas que o torna uma personagem ainda mais interessante. Há uma tentação de associar a grandeza em certa área das actividades humanas à bondade moral ou mesmo à santidade. Lembro-me de ter saído da escola primária, como então era conhecida, com a sensação de que Portugal só tinha sido governado por grandes heróis que eram, ao mesmo tempo, grandes santos. Estariam todos, imaginava eu, no céu. Ora, todos nós temos um fundo obscuro e, não poucas vezes, quanto mais luminoso se é em certa área – na arte, por exemplo – mais escura é a alma do ponto de vista moral. Era bom que isso fosse entendido num museu, mesmo de província, e que os artistas fossem apresentados na sua complexidade, embora a vida dos artistas seja uma curiosidade. O fundamental, enquanto artistas, não é a sua vida, mas a sua obra. As hagiografias surgem muitas vezes para colmatar uma certa incapacidade para comentar e explorar a obra. No caso de hoje, o que foi mostrado e comentado foram aspectos episódicos da biografia luminosa do autor, o seu peso social, mas nada se explorou da obra, do porquê da sua importância, da sua relação com as tendências da época.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Um problema de arrumação

Sem saber como fui ter a uma página da FNAC onde se exibia, depois da escolha de uns quanto doutos escolhedores, as 12 melhores obras literárias portuguesas, no âmbito da ficção narrativa, dos últimos 100 anos. Na verdade, dos últimos 108 anos, pois a escolha foi efectuada em 2016 e, tanto quanto dei por isso, nada surgiu no nosso país que merecesse elevar-se àquele empíreo ou entrar nesse restrito cânone. É feita uma breve consideração de cada obra, apresentado o começo e mobilizada uma frase sobre o autor, um juízo de autoridade que legitima a sua escolha. As obras não estão classificadas. São 12, ordenadas alfabeticamente. A que surge em primeiro lugar é A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro. Ora sobre este, foi escolhida a frase É um inimigo político, mas é um grande escritor. O autor é António Salazar. Que se saiba, Salazar, apesar de ser especialista em classificar pessoas como inimigos políticos, não tinha qualquer autoridade enquanto avaliador de escritores. No lugar de Aquilino, mesmo morto, ficaria ofendido. De todos os começos apresentados, o de que mais gosto, considerando a época do ano em que estamos, é o do Vergílio Ferreira:  É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olha-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. Há outros excelentes. Por exemplo, se estivéssemos no Outono, teria escolhido o de Fernando Pessoa: Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê. É óptimo para ser apreciado em finais de Novembro. Caso estivesse num Inverno chuvoso, escolheria o de José Saramago: Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias. Sou um narrador ribatejano, note-se. Contudo a frase absoluta, que nunca esqueci é a de Herberto Helder: – Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. O que me fascinou, quando li o livro pela primeira vez, foi Se eu quisesse, enlouquecia. Agora, o que mais se me adequa é Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Dissidência

A Antígona Editores Refractários tem um pequeno projecto de publicação de cinco obras literárias, a que deu o sugestivo nome de Sementes de Dissidência, embora esta designação seja equívoca. Numa sociedade como a nossa a dissidência não precisa de ser semeada, pois qualquer um pode dissidir, sem que isso lhe traga consequências relevantes. Pode ser mesmo motivo de promoção. Não é, porém, a pertinência do nome do projecto, mas o começo das duas primeiras obras publicadas, ambas romances. A primeira – Caruncho (2021), de Layla Martínez – começa assim: Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego. Eis um começo pujante. A outra – Niels Lyhne (1880), de Jens Peter Jacobsen, tem outra tonalidade: Ela tinha os olhos negro e faiscantes dos Blid, com sobrancelhas finas e rectilíneas; deles era igualmente o contorno saliente do nariz, o queixo firme, os lábios carnudos. Perante estes começos, podemos especular que no caso de Layla Martínez estamos perante uma narração na primeira pessoa e no caso de Jacobsen de uma na terceira pessoa. Podemos, então, perguntar que tipo de narração estará mais próxima da verdade, quero dizer, qual delas ficciona de modo mais adequado a verdade do que narra. A narradora de Layla Martínez narra percepções subjectivas, enquanto o narrador de Jacobsen faz uma descrição objectiva. Podemos pensar que aquele que fala de si mesmo sabe muito melhor o que diz do que qualquer outro. Não creio que uma autobiografia esteja mais próxima da verdade de uma pessoa do que uma biografia dessa pessoa feita por alguém preocupado com a objectividade do que escreve. Hoje, amanhã tenho o direito de mudar de opinião, prefiro uma narrativa na terceira pessoa. O começo de Jens Peter Jacobsen, menos tonitruante que o de Layla Martínez, moveu o meu espírito a dar-lhe a precedência na leitura, apesar de ser a segunda obra do projecta da editora, e o de Laila Martínez, a primeira. Também sou capaz de dissidência.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

A gravidez dos mitos

Em Vico encontramos uma explicação em plano inclinado para a dificuldade que se tem perante os mitos, propriamente, os mitos da antiguidade clássica greco-latina. O autor italiano não usa mito, mas fábula, que traduz a palavra grega para mito. Por que razão se tem dificuldade em crer nos mitos? Eis a explicação. Eles nascem geralmente indecentes e, por isso, tornam-se impróprios, o que significará que estão alterados, o que os faz inverosímeis, o que dá lugar a que se tornem obscuros, o que conduz a que se tornem escandalosos, o que terá como consequência que sejam inacreditáveis. Encontramos um grupo de avaliações morais, são histórias indecentes, impróprias, escandalosas. Encontramos um grupo de avaliações epistémicas, são histórias inverosímeis, obscuras e inacreditáveis. O eixo em torno do qual giram estas duas rodas de avaliação dos mitos é a alteração. Os mitos são escandalosos e inacreditáveis porque estão alterados. Originariamente, escreve Vico, seriam narrações verdadeiras e severas, ainda uma avaliação epistémica e uma avaliação moral. Ora, em torno de que eixo giram estas duas avaliações? O eixo é a origem. Na origem, as narrativas dizem a verdade e expõem a conduta séria e rigorosa. Depois, quando o comboio do tempo traz as coisas e as narrações para cada vez mais longe dessa origem, mais elas se degradam moralmente e se tornam, ao nível do conhecimento, inacreditáveis. Repare-se, ainda, numa subtil distinção. Na origem, os mitos são verdadeiros e severos, mas nascem indecentes. Uma coisa é a origem e outra é o nascimento. O que nos leva a supor que a gravidez mítica é um processo de duvidosa moralidade que transforma uma história severa e verdadeira numa indecência inverosímil.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Um excesso

Na edição de 2007, da Bertrand Editora, das Elegias de Duíno e dos Sonetos a Orfeu, o nome em destaque não é o de Rainer Maria Rilke, mas o de Vasco Graça Moura. O tradutor surge como mais importante do que o autor. Talvez a ideia seja de que não é possível traduzir poesia, mas esta pode ser reescrita e, nesse caso, o reescritor é o autor. Peguei no quarto soneto a Orfeu, aquele que começa por O ihr zärtlichen, tretet zuweilen (Ó vós ternos, por vezes entrai) e, desconhecendo a língua, pedi uma tradução automática. Uma tradução automática rasura o poético do poema, mas devolve-nos imagens e materiais semânticos usados na construção original. A tradução de Vasco da Graça Moura propõe um novo poético, adaptado à língua portuguesa, do soneto de Rilke, mas trabalha com imagens e materiais semânticos provenientes, como não podia deixar de ser, de Rilke. Podemos discutir, e tem-se discutido, se na poesia o essencial é o som ou o sentido. Ora, nos poemas de Rilke, por certo, a grandeza nascerá de uma combinação entre som e sentido. O trabalho de tradutor de Vasco da Graça Moura é pessoal na dimensão sonora, mas tem uma dívida impagável ao sentido construído por Rilke. A capa da Bertrand Editora é uma tomada de posição sobre a discussão entre som e sentido, proclamando visualmente que o som é mais decisivo na poesia do que o sentido. Uma tomada de posição excessiva, parece-me.

domingo, 18 de agosto de 2024

O poder da acção

Num comentário a um longo romance de Fiódor Dostoiévski, alguém – um leitor ingénuo, por certo – escreve que as primeiras cem páginas são difíceis, mas, depois, chega a acção a sério, aquela que capta a atenção do leitor. E esse comentador terá as suas razões. O romance, tal como o compreendemos hoje, é uma invenção da modernidade europeia, essa modernidade que decretara que a acção se sobrepunha à contemplação. O importante não é aquilo que o homem pensa ou observa de modo desinteressado, mas o que faz. O romance narra esse agir humano e os leitores, tomados pelo espírito moderno, não compreendem que um romancista – seja Dostoiévski ou Eça, o Eça de Os Maias – se entregue a longas descrições que pressupõem um espírito capaz de se abstrair do que se move para contemplar aquilo que está aí e parece permanecer. Os modernos precisam de mergulhar na acção, talvez como refrigério por não saberem o que fazer, neste mundo, da alma que lhes coube em sorte. Há muitos anos, na década de oitenta no século passado, quando foi exibido aqui, nesta cidade onde me acolho, o filme de Akira Kurosawa A Sombra do Guerreiro, o programador local agendou-o para uma sessão de um sábado à noite. Estranhei a opção e ainda mais estranhei o facto de a sala, com uma lotação para mil espectadores, estar cheia. Programador local e público pensaram estar perante um filme de guerra ou de artes marciais. Sentia-se a decepção dos espectadores pela ausência de acção, pela natureza contemplativa que percorre o filme. Houve uma explosão quando foi exibida uma batalha bem activa. Isto são memórias com mais de 40 anos e há muito que não revejo o filme. Talvez seja uma boa ideia para a noite deste domingo, onde, na verdade, não espero qualquer acção. Melhor, onde dispenso qualquer acção.

sábado, 17 de agosto de 2024

Poder absoluto

Retornei ao sítio de calor de onde tinha partido ontem e fui recebido com um abraço caloroso, demasiado caloroso. Os neurónios suspendem a sua função, que já não seria muita, e o mundo fica mais turvo. Dei por finda a estadia junto do mar, cansado de mais de um mês de litoral. Para dizer a verdade, não é tanto cansaço do litoral como saudades do escritório, a minha cadeira. A minha secretária, as minhas estantes. É o meu reino, onde o poder não necessita de negociação e, por isso, é absoluto, tal como o de Luís XIV. Esta coisa de um poder absoluto é sempre uma mentira, pois mil coisas conspiram contra esse poder, até as mais benévolas. Ninguém, nem Luís XIV, tem, teve ou terá poder absoluto sobre si mesmo, sobre o seu corpo, o seu desejo, quanto mais um império sem limites sobre os outros e o mundo. Somos limitados e finitos, o resto são fantasias para disfarçar essa limitação e essa finitude, as quais, elas sim, são absolutas. Agora, vou beber água para me hidratar.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

O prazer do fogo

Acabei de fazer uma viagem de 17 graus centígrados. Saí de um sítio com 41o e cheguei a outro com 24o. A crónica de hoje de António Guerreiro, no Público, gira em torno do fogo. O título é Brincar com o fogo. E o lead diz: A Terra foi vista como um reservatório de energias inesgotáveis. Continuámos a brincar com o fogo e agora o planeta arde. Até certa altura pensava-se que a hipótese de as coisas acabarem devido a uma guerra nuclear era grande. Depois, o medo atenuou-se, embora não se perceba bem a razão desse atenuar. O medo seguinte, mas também cada vez mais atenuado, é de que tudo acabe devido ao aquecimento global. Ora, nem um conflito nuclear está posto de lado, nem há qualquer acção efectiva que vise travar o aquecimento global. Tirando uns infelizes militantes que atiram tinta a quadros, a generalidade das pessoas não quer saber de aquecimentos globais. Nós, seres humanos, somos fascinados pelo fogo. Poucos são aqueles que não sentem prazer em ver as labaredas de uma fogueira, o que significa que no fundo da alma de cada ser humano há um pequeno pirómano. Nesta altura, esses pequenos pirómanos parecem estar a tomar conta de cada um de nós e, em vez de temermos o fim pelo fogo, desejamo-lo cada vez mais e com mais intensidade. O ideal seria a combinação da revolta da natureza através do fogo e uma guerra nuclear. Enfim, hoje acordei com uma leve dor de cabeça e uma inclinação para a hipérbole. O planeta arde, mas isso não assusta a nossa alma de pirómanos. Pelo contrário, é como se estivéssemos numa noite fria de Inverno diante da lareira para contemplarmos as labaredas que dançam na lenha que arde. O prazer do fogo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Moda

Robert Musil, o escritor de O Homem Sem Qualidades, acreditava que a fealdade não impede a moda de surgir. Escreveu isto num ensaio de 1931, “A Moda”. A certa altura, com o pretexto de exemplificar essa fealdade, escrevia e as saias curtas de mulher igualmente usadas até há pouco representavam, para uma observação imparcial, a repartição mais desfavorável da figura feminina que imaginar se possa, uma vez que se gerava um rectângulo elevado assente em duas pequenas andas curtas. Saliente-se que por saia curta o autor considerava a saia pelos joelhos. Como pôde ele ler a parte visível das pernas das mulheres como duas andas curtas? A apreciação estética que faz é fruto de um hábito e de preconceitos sobre o que se deve vestir e o que se deve mostrar – ou ocultar – no corpo da mulher. Ninguém da minha geração pensaria as pernas desocultadas de uma mulher como um dispositivo artificial tipo andas. Quando Musil escreve que a fealdade não impede a moda de surgir, talvez devêssemos compreender as coisas de uma outra maneira. Toda a moda se funda numa manifestação da beleza. Aqueles que a pensam como feia apenas não conseguem perceber o que de belo nela se manifesta. A moda estaria, deste modo, ligada à transmutação dos valores estéticos e, por isso, ela é sempre reservada a uma pequena vanguarda. Isto permite ir mais longe na especulação. Aquilo que é belo não apenas é difícil, como pensava Platão, mas tem em si um princípio de inquietação que conduz a contínuas metamorfoses, as quais são apreendidas, por instantes, pela moda, para logo se transformarem, esperando que a moda as capte numa nova imagem do que é belo.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Derrelicção

Sem se dar por isso, duas semanas de Agosto estão cumpridas. Há uma estranha percepção sobre a duração. Duas semanas nos dias de hoje passam muito mais rapidamente do que duas semanas há sessenta anos. Isto coloca um problema interessante. Enquanto nos tornamos mais lentos, o tempo torna-se mais rápido. Imagino que a rapidez do tempo está na proporção inversa da rapidez do ser humano. Dito de outra maneira, quanto mais lentos nos tornamos, mais rápido é o tempo. Isto, claro, é uma ilusão, mas o que faríamos nós da vida se fôssemos destituídos de ilusões? Um dos erros perceptivos que sempre me fascinou foi aquele que ocorre quando se está sentado numa carruagem de um comboio parado na estação e o comboio ao lado começa a movimentar-se. O deslocar do último gera no observador parado a sensação de que é ele que se move. O pior é que agora estou parado no comboio da existência, enquanto a realidade galopa em direcção ao futuro, mas nenhuma ilusão me acode. Sinto que o mundo vai desencabrestado por aí fora e que eu fico irremediavelmente para trás, sentado num comboio parado a que nunca se dará o sinal de partida. As pessoas não caminham em direcção à morte. É a vida que avança e se esquece delas no caminho. É a isto que se chama derrelicção.

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Um gigante e uma vaca

Imagino que seja um livro com informação um pouco desactualizada, mas talvez não. Não sei, não sou sequer um curioso cuja curiosidade o leve a estar continuamente actualizado no assunto. O livro data de 1987 e tem por autor Steven Weinberg, um físico norte-americano que recebeu o Prémio Nobel, juntamente com outros dois físicos, por ter unificado duas das quatro forças que superintendem as interacções entre partículas e objectos, tema que não vem agora ao caso. Devido ao livro, Os Três Primeiros Minutos – Uma Análise Moderna da Origem do Universo, o autor foi agraciado pelo Presidente dos Estados Unidos com a Medalha Nacional de Ciências. Depois do Prefácio do livro, este segue com a Introdução: O Gigante e a Vaca. Esta começa com uma referência a um conjunto de mitos vikings – Edda – sobre a origem do Universo, mitos em que, apesar de não existir nada, havia um gigante chamado Ymer e uma vaca que tinha o nome, aliás inspirador, de Audhumla. Weinberg conclui que a explicação dada pelo mito nórdico para a origem do Universo não é muito satisfatória. Passa, então, para um resumo do «modelo-padrão», aquilo a que se chama normalmente a teoria do big bang. Ele escreve: No início houve uma grande explosão. Não uma explosão como aquelas com que nos familiarizámos na Terra, partindo de um centro definido e espalhando-se de maneira a englobar cada vez mais ar circundante, mas uma explosão que ocorreu simultaneamente em toda a parte, enchendo o espaço inteiro desde o início, cada partícula de matéria fugindo de todas as outras. Mais adiante, continua: Cerca do primeiro centésimo de segundo, o tempo mais recuado de que poderemos falar com confiança, a temperatura do universo era aproximadamente de cem mil milhões (1011) de graus centígrados. Ora, apesar de ter passado o tempo do gigante Ymer e da vaca Audhumla, o tempo anterior ao centésimo de segundo a que podemos recuar com confiança (o que é uma façanha tremenda da razão humana) e o tempo anterior (na verdade, não havia tempo) ao big bang abrem a porta para todos os gigantes matreiros e para todas as vacas encantadas reencarnarem. Quem primeiro propôs a teoria do big bang, denominando-a hipótese do átomo primordial, foi um padre católico, professor de Física, em Lovaina, George Lemaître. Consta que o Papa da altura ficou entusiasmadíssimo e julgou que tinha sido encontrada uma prova científica da criação do mundo por Deus. Parece que Lemaître lhe terá dito para não se meter por esses caminhos da ciência, tão ínvios quanto os de Deus. Talvez, imagino eu, quisesse preservar o encanto da narrativa do Génesis, aliás, mais imaginativa do que a do Edda nórdico.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Beleza

Há títulos de livros extraordinários. Por exemplo, The Fragility of Goodness, de Martha C. Nussbaum. Contudo, a tradução para português deixa de funcionar. A Fragilidade da Bondade perde o impacto sonoro devido à repetição das duas sílabas finais de fragilidade e de bondade. Um expediente seria traduzir por A Fragilidade do Bem, mas não seria a mesma coisa. Aliás, a tradução existente em português, na variante brasileira, faz a tradução literal. Martha C. Nussbaum não é apenas uma muito interessante e talentosa filósofa, mas é uma criadora de títulos excepcional. Além do citado, vejam-se os seguintes: Cultivating Humanity; Political Emotions; Frontiers of Justice; Upheavals of Thought; Not for Profit; The Cosmopolitian Tradition. Poder-se-á pensar que a natureza retórica destes títulos é uma estratégia comercial. Imagino que a autora se ofenderia. A qualidade linguística estará ligada, de alguma forma, à qualidade do pensamento. Os primeiros textos filosóficos completos que nos chegaram são os diálogos platónicos. Aquilo que que foi escrito antes, e foi alguma coisa, perdeu-se ou permaneceu em forma fragmentária. É possível pensar que esses textos pré-socráticos, é assim que se chamam, teriam qualidade poética e retórica. Os textos de Platão, os diálogos filosóficos, nasceram de uma ruptura dentro do próprio filósofo. Este era um jovem escritor de tragédias, mas fascinado pela figura de Sócrates, de quem queria ser discípulo, aceitou a imposição deste e destruiu as tragédias que tinha escrito. Contudo, não se conseguiu livrar completamente de si mesmo e passou do teatro trágico ao teatro filosófico, onde encenou as aventuras da própria razão. Para tornar as coisas mais interessantes, não são poucos os diálogos onde, ao lado de uma exploração racional de um problema, Platão constrói ou usa mitos. Poder-se-á pensar, e haverá quem o pense, que esses mitos, tal como os belos títulos da contemporânea Martha C. Nussbaum, têm um efeito retórico, quase de natureza comercial. Imagino que Platão ficaria ofendido. A beleza do título ou o encanto dos mitos fazem parte da verdade, que recusa revelar-se caso não haja um módico de beleza. Dessa beleza que a arte do século XX e XXI expulsou de si mesma, numa confissão de que se tinha divorciado da verdade, mas que, apesar do desígnio de muitos artistas, essa beleza acaba por voltar, contra a vontade dos próprios.

domingo, 11 de agosto de 2024

Pensamentos sem sentido

Hoje, fui à praia, mais uma vez. Dizer que fui à praia é uma hipérbole, pois fui ao bar da praia, onde me sentei a beber um café e a comer um pastel de nata, enquanto olhava o mar. Não passei, claro, do bar, mas prometi que voltaria à praia, isto é, ao bar. Não sei bem porquê, aquele bar, que até hoje me era indiferente, passou a ter um valor para mim. Que valor? Não faço ideia, mas apetece-me lá voltar amanhã e no outro dia. Este apetite de voltar a um sítio é a melhor prova de que esse sítio merece a visita. Apesar do meu contencioso com a praia, o mar sempre me fascinou. Não, não é tanto o mar que me fascina, mas a visão do mar. Olho para o mar e sinto uma vertigem – isto é uma metáfora. Essa vertigem quer dizer que estou perante algo que me ultrapassa infinitamente. Sinto-a, ou sentia-a, quando olhava o céu estrelado. O mar e o céu estrelado são símbolos daquilo que me ultrapassa infinitamente, daquilo que me é incomensurável. Há muitas décadas, nas noites estivais de céu estrelado, procurava um sítio onde a poluição luminosa não me incomodasse e ficava a contemplar as estrelas. Tentava suspender o pensamento, mas este resistia e trazia-me sempre as mesmas questões: Para quê tudo isto? Porquê tudo isto? Depois, fui estudar filosofia, mas acho que não adiantei nada. As questões permanecem, mas já não me entrego à contemplação dos céus nas noites estreladas. Tudo isto é inexplicável. O oceano, o céu estrelado, a minha perplexidade perante ambos. Oiço passos, é uma das minhas netas. Não sei se elas sentem uma vertigem perante o mar ou o céu estrelado. E o meu neto, ainda nos cinco anos, algum dia olhará o mar ou o céu estrelado e perguntará para quê e porquê tudo isto? Se nenhum deles o fizer, o que andei eu a fazer neste mundo?

sábado, 10 de agosto de 2024

Obrigações

Tive de ir à praia. Função de avô. Em tempos, que me parecem muito recuados, tinha prazer nesse ritual da ida à praia. Depois, foi desaparecendo. Nem ritual, nem areia, nem sol, nem água do mar salgado. Uma esplanada com vista para o mar ainda é uma coisa que me dá prazer, pois contemplar a linha do horizonte, onde o oceano e o céu se fundem na ilusão do olhar, abre o espírito à rêverie, a esse sonho acordado onde os mistérios do universo se fundem com os segredos ultramarinos. Devo estar a tornar-me uma pessoa insuportável, se não o era já. Não cultivo nem a praia e os banhos de sol e mar nem a viagem, turística ou outra. Estar onde se está e viajar na sua própria morada é a mais difícil e desafiante das viagens. Voltou-me o gosto pelas hipérboles. De tarde, consegui escapar-me à função da ida à praia, com a desculpa esfarrapada de ter de ir fazer compras, coisas que só eu sei o que são, embora não imagine o quê. É certo que fui olhado com condescendência, mas é coisa que suporto bem. Sobre este narrador, há duas teorias. Uma é que sofre de autismo. Outra é que falhou a vocação de monge eremita. Por mim, aceito qualquer uma. Talvez as duas sejam verdadeiras. Tenho de ir às compras. Um dia cheio de obrigações.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Mudos e surdos

Não é devido à qualidade da escrita – que é desmesurada – que vou citar Flannery O’Connor, mas por uma motivação lateral à literatura. Quase no início de O Céu é dos Violentos, diz-se O seu tio ensinara-lhe Contas, Leitura, Escrita e História, a começar em Adão expulso do Jardim e seguindo por aí abaixo, passando por todos os presidentes até Herbert Hoover, e avançando especulativamente até à Segunda Vinda de Cristo e ao Dia do Juízo Final. Este tio era profeta e talvez devêssemos olhar para os próprios historiadores como profetas. Fazem profecias sobre o que se passou. O tio profeta não apenas profetizou acerca do futuro – ou do fim do futuro, para ser mais preciso – como profetizou sobre o passado, a história de Adão e a expulsão do paraíso. Dir-se-á que os historiadores, não têm no seu bornal metodológico a profecia, que se atêm aos factos e isso é diferente das especulações sobre o início da humanidade e o fim da mesma humanidade. Ora, o grande problema é que os factos são mudos, não dizem nada, não usam língua gestual ou comunicam através de sinais de fumo ou de maquinetas que usam o código de Morse. Perante a mudez factual, os historiadores, dissimuladamente, sacam, de um compartimento escondido no dito bornal, a profecia e, movidos pelo Espírito Santo, põe-se a profetizar sobre o passado. Isto coloca um problema teológico que me apresto, para ajuda da humanidade, a resolver. O problema é o seguinte: como entender que diversos historiadores, perante os mesmos factos mudos e movidos pelo mesmo Espírito Santo, profetizam coisas diferentes? A explicação é mais simples do que pode parecer. Os diversos historiadores têm graus diferentes acuidade auditiva ou, para ser mais claro, diferentes níveis de surdez. O que é dito é o mesmo a todos, mas cada um ouve o que pode. Este é o meu contributo, sem preço, para deslindar um tomentoso problema teológico e, também, epistemológico. Sobre factos mudos, profetizam historiadores surdos.