sábado, 10 de agosto de 2024

Obrigações

Tive de ir à praia. Função de avô. Em tempos, que me parecem muito recuados, tinha prazer nesse ritual da ida à praia. Depois, foi desaparecendo. Nem ritual, nem areia, nem sol, nem água do mar salgado. Uma esplanada com vista para o mar ainda é uma coisa que me dá prazer, pois contemplar a linha do horizonte, onde o oceano e o céu se fundem na ilusão do olhar, abre o espírito à rêverie, a esse sonho acordado onde os mistérios do universo se fundem com os segredos ultramarinos. Devo estar a tornar-me uma pessoa insuportável, se não o era já. Não cultivo nem a praia e os banhos de sol e mar nem a viagem, turística ou outra. Estar onde se está e viajar na sua própria morada é a mais difícil e desafiante das viagens. Voltou-me o gosto pelas hipérboles. De tarde, consegui escapar-me à função da ida à praia, com a desculpa esfarrapada de ter de ir fazer compras, coisas que só eu sei o que são, embora não imagine o quê. É certo que fui olhado com condescendência, mas é coisa que suporto bem. Sobre este narrador, há duas teorias. Uma é que sofre de autismo. Outra é que falhou a vocação de monge eremita. Por mim, aceito qualquer uma. Talvez as duas sejam verdadeiras. Tenho de ir às compras. Um dia cheio de obrigações.

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