Está a acabar o sexto mês do ano. Junho fina-se entre calores. Não se pense, porém, que chegamos a meio do ano. Dos 365 dias que 2025 haverá de ter, hoje será centésimo octogésimo primeiro. Só ao meio-dia de 2 de Julho se alcançará essa meta. A partir daí tudo se inclina, cada vez mais, para o fim do ano. É como se depois de ter subido durante 182,5 dias a montanha, se começasse a descê-la. Oiço que esta informação não tem qualquer relevo e que ninguém quer saber dela. Se se escrevesse apenas sobre coisas relevantes, pensei, possivelmente nada teria sido escrito pela humanidade. E, depois, quem sabe aquilo que os outros querem saber. Hoje tinha duas tarefas para realizar. Uma, responder a um questionário, está acabada. A outra, enviar um email a uma editora por causa de uns livros que não chegaram, ainda está por fazer. A temperatura talvez me impeça de realizar mais do que uma tarefa por dia. Podia estar a ler, mas os olhos ardem-me. Por vezes, temo que peguem fogo. Têm-se visto tantas coisas, que não será impossível, de um momento para o outro, os olhos inflamarem-se e deles saírem labaredas. Isso seria impossível com os ouvidos, pois há entre eles um canal secreto por onde corre um vento fresco, que diminui a temperatura, e mesmo que um ouvido se inflame, logo a aragem apagará a deflagração. Na minha secretária repousam vários livros. Três deles, pelo menos, já os li. Por que razão os trouxe das estantes? Um enigma. Um outro jaz ao lado deles, mas esse não o li. Uma peça de teatro de Karl Kraus: Os Últimos Dias da Humanidade. A capa diz: versão integral. Respiro descansado, pois se fosse apenas uma versão parcial ou resumida, talvez se atirasse para as três mil páginas. Kraus optou pela síntese e são apenas umas novecentas . Uma coisa é certa, aqueles não foram os últimos dias da humanidade. A primeira grande guerra foi terrível, mas ainda tivemos oportunidade para mais uma grande guerra, além das múltiplas pequenas e médias guerras, que parecem o resultado de globos oculares que se inflamam com facilidade e ateiam os conflitos num virar de olhos. O pior é o calor.
segunda-feira, 30 de junho de 2025
domingo, 29 de junho de 2025
Temas
Não sou só eu. Em As Sete Idades, de Louise Glück, encontramos o poema Marmeleiro. O primeiro verso estabelece, de imediato, uma relação comigo: No fim, só tínhamos o clima como tema. É o que me resta nestes dias sem nome – pois até o dia da semana se evapora da consciência – em que o calor cai sobre a cidade como um bombardeamento de poderosas esquadrilhas inimigas. Sim, também só tenho o clima como tema. Podia contar o terror do dia de ontem, mas nada acrescentaria ao tema do clima, pois foi dele que veio o terror, como se fosse um directório jacobino em exercício no poder, sempre com a guilhotina do sol à mão. O segundo verso do poema tem uma natureza salvífica: Felizmente, vivíamos num mundo com estações. A pluralidade de estações do ano traria uma diversificação temática às conversas de um casal a quem, faltando temas, não faltariam palavras. Também não me faltam palavras. Aliás, há em mim uma fonte borbulhante de vocábulos, sempre prontos a ser mobilizados para formarem frases atrás de frases. O pior é o tema. A minha expectativa é que o frio do Inverno e o calor do Verão me forneçam o que não tenho, assim como as indecisões climáticas da Primavera e do Outono. Acabei de espreitar a Sá Carneiro. Apenas casas e árvores na avenida. Nem carros passam, como se se tivesse voltado àqueles dias da pandemia, onde as coisas desapareceram do horizonte onde estavam habitualmente. Bebo água, dormito, deixo que pensamentos sem nexo dancem na minha mente e espero que o ataque funesto do inimigo passe, para poder ir à rua certificar-me de que ainda existe um espaço público, que a aviação inimiga não destruiu aquilo que levou séculos – talvez milénios – a erguer. Sim, eu sei: o resultado não é extraordinário, mas o que conta é o processo, e esse, pela sua longevidade, é extraordinário – tal como o clima. Ordinária é apenas a falta de tema. Felizmente, ainda não desapareceram as estações.
sábado, 28 de junho de 2025
Maldita referência
Chegou a época em que a consulta a um site meteorológico se tornou indispensável. Por aqui, a temperatura chegará hoje aos 42 graus, mas na terça-feira, aos 44. Nem sei o que dizer sobre o destempero de S. Pedro. Terei de ir a Lisboa, à festa, ao ar livre, de fim de ano lectivo do meu neto. Começa às três da tarde, quando estarão por ali 39 graus. Duvido que a direcção e os organizadores tenham o hábito de consultar a meteorologia quando programam estas coisas. Como não tenho vocação para mudar o mundo – e mesmo que a tivesse, o mundo não gosta de ser mudado – aceito as coisas como elas são, apesar de elas deverem ser de outra maneira. Não se trata de uma consciência demissionária das suas responsabilidades comunitárias, mas de saber o que a casa gasta – uma belíssima expressão – e ter idade suficiente para perceber que a casa não está interessada em novos produtos. Por casa, não me refiro ao colégio, mas a este país. Aliás, tenho assistido ao longo da vida a coisas extraordinárias. Não apenas à manutenção de coisas completamente disfuncionais, mas que fazem parte daquilo que a casa gasta, como, não poucas vezes, vejo pegar em coisas que funcionam muito bem e mudá-las até que se tornem disfuncionais. Se há uma coisa que os portugueses gostam é da disfunção. Consomem disfunção atrás de disfunção, com grande prazer. É isso que os alimenta e lhes permite dizer mal de tanta disfuncionalidade. O amor à disfunção é uma paixão pela maledicência. Temos medo de não haver matéria a maldizer, por isso apostamos tudo na disfunção. Não sei o que me deu, para hoje estar a dissecar a alma-pátria. Eis mais uma bela expressão: alma-pátria. É daquelas que Frege diria que tem sentido, mas não tem referência. Todos percebemos o que ela quer dizer, mas, mesmo que procuremos bem, nunca encontraremos uma alma-pátria. E isto revela o grandioso desígnio destes textos: falar de coisas que têm sentido, mas que não têm referência, que não se referem a nada. O pior é a temperatura alta, que não apenas tem sentido, como tem uma efectiva referência. Maldita Bedeutung.
sexta-feira, 27 de junho de 2025
Reciprocidades
Por vezes interesso-me pelo estado do mundo, mas, em contrapartida, o estado do mundo nunca se interessou por mim. Ora, uma relação onde não há reciprocidade é um casamento condenado. Kant, na Filosofia do Direito, tanto quanto me lembro, emitia um juízo negativo aos casamentos interclassistas e também aos poligâmicos. A razão seria a mesma: a ausência de reciprocidade. Não consta que o venerado filósofo de Königsberg tivesse inclinação para a poligamia – mas, quem sou eu para saber das inclinações de outro? – por isso, a explicação mais plausível para se ter mantido solteiro toda a vida é não ter encontrado uma mulher com quem pudesse estabelecer uma relação de reciprocidade. Se ele pensava que num casamento entre alguém com mais dinheiro ou influência e alguém com menos, este último estaria em desvantagem e, de algum modo, perderia a sua autonomia, também é plausível pensar que essa assimetria entre cônjuges estaria presente entre um homem como ele e uma mulher que não se interessasse pelo magno problema de saber se a Metafísica era possível enquanto ciência. A minha tese, porém, é outra. Certamente haveria mulheres dispostas a discutir, no leito matrimonial, o espinhoso problema que assombrou a Crítica da Razão Pura. No vasto mundo, pode-se encontrar de tudo. O problema é que Kant nunca saiu da cidade onde nasceu e, devido ao seu amor ao torrão natal, não encontrou aquela que lhe abriria o espírito para a possibilidade de tornar a Metafísica uma ciência ao lado da Física e da Matemática. Talvez, enquanto estudante, tenha ouvido uma outra versão, um mito urbano recolhido por algum biógrafo tardio. Kant terá dito que, quando precisava de uma mulher, não tinha dinheiro para ela, e, quando chegou a uma situação económica desafogada, já não precisava de uma mulher. Se esta historieta é verdadeira, dever-se-ia perguntar ao eminente pensador como é que tal afirmação se coadunava com a fórmula da humanidade do imperativo categórico, que ordena respeitar a dignidade do outro, tratando-o sempre como um fim e nunca apenas como um meio. Este texto é um exemplo do estado corrompido da minha mente: começo a falar de uma relação pessoal com o estado do mundo e acabo a lançar a suspeita de uma incoerência na mais alta personagem que a cidade de Königsberg alguma vez deu ao mundo.
quinta-feira, 26 de junho de 2025
In vino veritas
Acabei de chegar. Fui a um bar de vinhos beber um copo. Caí, agora, numa metonímia banal: tomar o continente pelo conteúdo. Ninguém bebe copos, mas o líquido que está dentro deles. No meu caso, o conteúdo era vinho branco. Primeiro, um alvarinho; depois, um loureiro. Também ninguém bebe alvarinhos ou loureiros, mas os vinhos que se fazem destas castas. O alvarinho era interessante, mas não extraordinário. Contudo, o loureiro foi o melhor que bebi até hoje. Quem me vê, não poucas vezes me confunde com um nórdico, mas em certas coisas sou estruturalmente latino. Cerveja é, claro, bebida de nórdicos, bárbaros. O vinho é uma herança do velho Lácio. E nele se concentra muito do que há de extraordinário neste mundo e talvez em outros que não conhecemos. Requer a lentidão contemplativa. A cor – o loureiro tinha uma belíssima cor –, o aroma e, depois, a multiplicidade de sabores, tudo isso exige mais, muito mais do que um desejo de álcool. O famoso adágio in vino veritas não que dizer aquilo que se pensa. Não significa que bêbadas, as pessoas tendem a dizer a verdade, a revelar os segredos. A verdade que se manifesta no vinho não é a que está no sujeito que bebe, mas na coisa bebida. Nele, a realidade do mundo manifesta a sua essência e nessa manifestação está a verdade desse mundo. Um mundo que não permitisse o fabrico do vinho não seria um verdadeiro mundo, mas um simulacro. Todos nós pensamos em mundos possíveis, mas quando se pensa num mundo onde não existe vinho pensa-se num mundo impossível. Se eu fosse um Leibniz tardio – coisa que não sou – argumentaria que este é o melhor dos mundos possíveis. Porquê? Porque nele existe vinho e a música de Bach. Sim, estou a ouvir as Variações Goldberg, por Glenn Gould. Não, não estou a beber. Não suporto demasiada verdade num só dia.
quarta-feira, 25 de junho de 2025
Na mesoguarda
Podia ter sido mais um dia glorioso para a minha gesta – mas não foi. A causa? Uma noite de insónia. Quando me levantei para ir tratar de assuntos que a vida me colocou pela frente, percebi que a principal tarefa seria segurar as pálpebras, para que não se fechassem em algum momento inconveniente. Se se fecharem agora, ninguém quer saber. Aliás, é coisa que elas estão a tentar fazer. Resisto como posso, embalado pela música produzida pelos dedos ao chocarem contra as teclas. Sim, é uma composição musical contemporânea. De vanguarda. As vanguardas perderam o brilho de outros tempos. Ninguém quer saber de vanguardistas. Eles que se atolem no futuro – onde chegarão antes de nós. É isto que significa ser de vanguarda: atolar-se no pântano do futuro antes dos outros. Não se pense que sou retaguardista. Não sou. O meu lugar é no meio – na mesoguarda –, na perfeita equidistância dos que correm para diante e dos que correm para trás. No meio está a virtude da imobilidade. Sou um homem virtuoso – mas a cair de sono.
terça-feira, 24 de junho de 2025
Química
Acordei sorumbático, uma visão cinzenta sobre o estado das coisas, embora nem o estado nem as coisas estivessem definidos na minha consciência. Também algumas dores, sem importância, induzidas pela incerteza do tempo, me obsidiavam. Quando me cansei, decidi-me a tomar um comprimido receitado por uma médica. Quando a acção do químico começou a fazer efeito, não apenas as dores deixaram de me importunar, como o cinzento com que via o mundo da manhã, deu lugar a uma visão mais solar pela tarde. Agora que penso em tudo isso, vejo nascer em mim dois núcleos de perplexidades. O primeiro grupo é de natureza epistémica: será que a minha visão sorumbática e cinzenta do estado das coisas era mesmo minha ou induzida pela manhã sombria? Ou será que a manhã estava sombria porque, estando eu com visões em cinzento, a via assim? O segundo núcleo toca a ontologia. Será que a natureza das minhas visões é o fruto de combinações químicas? Basta uma leve alteração química no organismo, e logo a minha visão se torna outra? E, para tornar as coisas piores, se a visão é apenas uma metonímia, onde se toma a parte pelo todo? E se não é apenas a natureza da minha visão das coisas que é fruto de meras combinações químicas, mas todo o meu ser? Preocupamo-nos com a nossa identidade, elaboramos teorias sobre o eu e o self, mas não deveríamos antes preocuparmo-nos com a química? Talvez vivamos sob uma despótica tirania química, onde somos, ao mesmo tempo, tiranos e tiranizados, enquanto construímos narrativas onde nunca deixamos de ser os heróis – mesmo quando fazemos de anti-heróis – num mundo ora malévolo, ora benevolente, conforme a disposição e o humor da química. O pior é que as próprias ilusões são ainda fruto da química.
segunda-feira, 23 de junho de 2025
Um dia de glória
Um dia esfusiante para acrescentar glória à minha gesta gloriosa. A manhã ocupei-a em luta contra os dragões burocráticos. Enfrentei um ligado aos impostos e outro aos deveres profissionais que ainda vou tendo. Luta feroz, terrível, mas a minha auréola de herói saiu reforçada: perdi ambos os combates, pois ninguém derrota o fisco, nem as invenções que um deus inútil forja para espalhar a inutilidade entre os mortais. Animado, reservei-me para depois do almoço enfrentar o terceiro dragão. Um dragão técnico. Apesar de tudo, ainda sou quase uma pessoa normal. Tenho um contrato com uma operadora de telecomunicações, uma daquelas ínvias instituições que me vendem a possibilidade de telecomunicar, internetar, telefonar – apesar de ter mandado para o lixo o telefone fixo – e telever. Fazem isso a troco de uma mensalidade generosa, com a finalidade de testarem a minha inclinação natural para a bondade. Ora, essa Santa Casa da Misericórdia Telecomunicacional decidiu trocar dois aparelhos que montara cá em casa por um único. Teve uma ideia brilhante. Nada de enviar um profissional para fazer o processo, mas testar a capacidade técnica dos assistidos pela sua generosa caridade. Sim, fomos nós, os donos da casa e felizes consumidores telecomunicacionais, que recebemos o imperativo – estou a medir as palavras – de desmontar e montar aquela tralha tecnológica, o qual foi acompanhado por uma terrível ameaça, a lembrar uma praga do Egipto, para o caso de não se entregar os dois aparelhos substituídos. Havia instruções para a desmontagem e remontagem, claro. Umas em papel, mas a letra era tão pequena que nem com a lupa se conseguiam ler. Outras num manual digital em pdf, mas eram omissas precisamente naquilo que não conseguíamos resolver. Havia ainda outras, um vídeo com um rapaz que pensava que tinha graça e debitava instruções a uma velocidade digna de um Grande Prémio de Fórmula 1, tratando os clientes como se tivesse andado com eles na noite a fumar substâncias ilícitas. Agora, pensei ao fim de três minutos, perante este dragão, estou perdido. Desmontei, montei, liguei, desliguei. Decido telefonar e, nem sei como, não me enganei no número. Depois daqueles preâmbulos com vozes gravadas, sou encaminhado para um assistente. Não era um assistente, era uma assistente. Não, na verdade, era um assistente, pois, apesar da voz feminina, foi um anjo descido dos céus que nos ajudou –esta era uma tarefa colaborativa – a matar o dragão. Para ser mais preciso, foi o anjo que matou o dragão, só para acrescentar glória à minha gesta nesta Terra. Um grande dia.
domingo, 22 de junho de 2025
Vida doméstica
A minha neta acabou de sair. Retorna a Lisboa, depois de uma semana por aqui, em luta com a economia. Agora, a casa ficou mais vazia. Ontem também cá esteve o mais novo. Perguntou-me se queria jogar xadrez, mas não estive pelos ajustes. Tinha de procurar o tabuleiro e as peças. Ficámos pelas damas. Ganhou-me um jogo e empatámos outro. No fim, comentou que o avô o tinha deixado ganhar. Desmenti. Este desmentido não foi uma mentira piedosa. Faço sempre um certo esforço para jogar seja o que for, e ontem estava com pouca disposição, mas há coisas que não se recusam. Transbordando de entusiasmo fingido, lá fui movendo as peças sem grande nexo e ele ganhou mesmo. Tenho de lhe comprar um jogo de xadrez, mais tarde ficará com o meu. Na adolescência joguei muito xadrez, mas, depois, perdi o interesse, talvez a paciência. Tenho de a ganhar, para o ensinar. A relação entre avós e netos é uma coisa muito especial. Não conheci nenhum avô – as avós, sim –, pois morreram antes de eu nascer, e, por vezes, sinto que foi um indecência que o destino me fez a mim, que me privou deles, e a eles, que morreram ainda relativamente novos. Está um dia indeciso, estranho como uma página de metafísica, soturno como uma sermão moral. Os pássaros meus vizinhos – são aves urbanas – não param de falar, mas ainda não consegui descobrir o alfabeto que usam e por isso perco-me na tradução. Eles estão seguros da incompreensibilidade; sabendo-me por perto não se coíbem de dizer o que têm a dizer. Não há problemas que ele nos oiça. Ouvir é uma coisa e compreender é outra, dizem entre si, e ele – referindo-se a mim – não compreende nada do que dizemos. Só posso corroborar. Não entendo nada do que eles dizem, nem do que eu escrevo ou penso, caso ainda pense. Bebo água para não desidratar.
sábado, 21 de junho de 2025
Meditação solsticial
Começou o Verão. O solstício foi lá pelas 3 horas e 42 minutos, mas não dei por ele. Estava a dormir. Também se estivesse acordado não daria por ele. Não é coisa que se veja, oiça, cheire, saboreie ou tacteie. Isto nada nos diz sobre ele, mas é muito esclarecedor sobre as limitações a que os nossos órgãos sensoriais estão sujeitos. Hoje, quando saí de manhã, estava muito menos Verão do que ontem, anteontem e antes de anteontem. A empresa fornecedora de estações do ano cumpre os prazos, mas entrega produtos de duvidosa qualidade. É capaz de enviar uma Primavera que parece um Verão consumado, para logo de seguida nos dar um Verão que é uma Primavera tardia. Este é um tema inesgotável por aqui. Sem conversa, logo vem o clima, o calendário, as estações, a imprevisibilidade do tempo, a má gestão de S. Pedro. Hoje será o maior dia do ano; depois, começa um lento definhamento até chegar ao mais pequeno. Podia falar de coisas mais interessantes e fingir erudição. Por exemplo, escrever sobre Georg Groddeck. Dele sabia duas coisas: que teria tido alguma influência no doutor Sigmund Freud e que na colecção TEL da Gallimard havia a sua obra mais conhecida, Le Livre du Ça. Uma das características mais notáveis da colecção, para além dos autores que publicava, eram as capas de Vasarely. Descobri, entretanto, outras coisas interessantes sobre o autor, mas guardo-as para futura oportunidade, não vá ter uma crise de falta de inspiração. Um outro tema curioso seria os meus erros de digitação. Por que razão escrevo sempre falat em vez de falta? Tenho outros, que raramente consigo evitar. Os dedos precipitam-se e querem ultrapassar-se uns aos outros. Sofro de indisciplina digital. Não tenho dedos prussianos, é a conclusão a que chego. Lamento-me muito da falta de ideias, mas o mundo e eu mesmo estamos repletos de matérias aliciantes. Meu Deus, quem poderá querer ignorar o drama da minha precipitação digital? Ontem, refresquei-me com o velho mazagrã, coisa de senhoras de outras eras, mas o que me apetece agora é uma bela cerveja belga, uma daquelas produzidas pelos monges trapistas. O problema é que nunca me lembro de comprar cerveja. Talvez seja demasiado filho do Lácio para me entregar a uma bebida de bárbaros, mesmo que abençoada. Como o Verão astronómico começou, fico-me pela água.
sexta-feira, 20 de junho de 2025
Mazagrã
Abro um dos eReaders que uso para leitura e descubro um romance que não li até ao fim. Faltam, segundo a informação disponível, 59 minutos para acabar, o que equivale, na contabilidade do dispositivo, a 21% da obra. Um pequeno romance. Não me lembro das razões que me levaram a suspender a leitura, mas devem existir. Ou talvez não. Sou eu que, por desleixo trazido pelo hábito, olho para tudo o que acontece como se estivesse amarrado a uma cadeia causal. Nada acontece sem que haja uma razão suficiente que explique por que é assim e não de outro modo, diria o senhor Gottfried Leibniz. Este princípio, porém, entedia-me. Não se trata de dizer que é falso ou verdadeiro, mas que provoca em mim, com a temperatura ambiente, um tédio incalculável. Tomemos em consideração o dístico de Angelus Silesius: A rosa é sem porquê, floresce porque floresce, / Não cuida de si própria, nem pergunta se a vêem. A rosa não é a rosa, ou só a rosa. Do ponto de vista poético, é uma metonímia. Não é apenas ela que é destituída de porquê, mas toda a realidade, onde se inclui o meu abandono do romance. Abandonei-o porque o abandonei. Só isso. Hoje todos sabemos – pelo menos os que se interessam pelo assunto – a razão por que a rosa floresce; sabe-se as cadeias causais que conduzem ao florescimento. Contudo, apesar disso, nada sabemos, e a verdade está toda no verso de Silesius. Refresco-me com um copo de mazagrã. Sabe-me bem, mas esse saber bem é como o florescer da rosa, e é nele que está toda a sua verdade. A autora do romance – omito o nome – é uma bela e interessante mulher. Vi-a há dias numa entrevista. Está na idade em que as mulheres florescem, fazendo-o sem porquê. Contudo, cuida de si própria e, por certo, já se perguntou ao que veio. E é aí que começa a queda. Voltarei ao romance um dia destes. Por agora, fico no mazagrã.
quinta-feira, 19 de junho de 2025
Beatices
Está um tempo esbranquiçado, uma luz anémica e um calor insuportável. Será das poeiras vindas de África, que decidiram emigrar do sítio onde estavam e procurar o estatuto de imigrantes, lançando um véu de irrealidade sobre este lugar que, por se acolher junto a uma serra, foi abandonado pelos ventos marítimos. Lá dentro, sob a rigorosa supervisão da avó, a minha neta mais velha confronta-se com as matérias da economia, para enfrentar o exame da próxima semana. Quando realizei esses exames, vivia-se um tempo extraordinário. Não apenas os professores fumavam na sala onde decorria a prova, como os alunos podiam fazer o mesmo. Isto é tão inverosímil que, quando penso nisso, acho que, como os actuais modelos de linguagem, conhecidos como Inteligência Artificial, estou a alucinar. O prompt que recebo de mim mesmo encontra um algoritmo que constrói uma história. Contudo, consigo mesmo ver-me a fabricar um cinzeiro em pleno exame, onde depositava a cinza e as beatas dos cigarros. Nunca soube a razão de se ter dado o nome de beata ao que resta do cigarro depois de fumado. Decidi, agora, perguntar a um Large Language Model a razão desse uso linguístico. Ele foi generoso e estabeleceu, de imediato, uma relação entre a beata do cigarro e a mulher beata da Igreja. Uma seria o que resta do consumo de um cigarro; a outra, o que resta pelo consumo do ardor religioso de alguém que se queima pela fé, que se consome pela devoção. Não fiquei particularmente convencido, mas não tenho contra-argumentos. A origem latina das palavras beato e beatitude não remete directamente para o contexto religioso, mas para a felicidade. Beatitude é felicidade, e beato é aquele que é feliz. Depois, o Cristianismo apropriou-se das palavras, dando-lhes um sentido mais restrito. Contudo, podemos imaginar, sem contradição, ateus beatos, isto é, felizes. Não consigo recordar-me, contudo, se, ao fumar em pleno exame, sentia alguma beatitude. Posso imaginar que sim, o que faria de mim, naqueles momentos, um beato a depositar uma beata num cinzeiro improvisado. Mesmo que essa memória seja falsa, alguma beatitude haverá nela para que a rememore. A minha neta não fuma, mas já ninguém fuma em exames. Tem uma vantagem sobre mim: a sabedoria que levar não se evola, durante a prova, com o fumo do cigarro.
quarta-feira, 18 de junho de 2025
Escutar
Oiço Für Alina, de Arvo Pärt, e interrogo-me sobre a diferença do uso do silêncio nesta peça e em 4’33”, de John Cage. Talvez, pensei, que um caminho interpretativo fosse recorrer à distinção proposta por Agostinho de Hipona entre a Cidade de Deus e a Cidade do Homem. O silêncio de Für Alina é o espaço onde o sagrado se manifesta, envolvendo a expectativa do auditor e transportando-o para uma outra dimensão, a qual não existe noutro lugar, mas que mostra que o aqui é já um além. O ostensivo silêncio da peça de John Cage é uma abertura. Não ao sagrado, mas à sonoridade do mundo. É aqui que a Cidade do Homem, de Agostinho, terá menos pregnância. Não se trata de escutar os sons do amor sui, do amor de si dos homens, mas do mundo em geral, onde a sonoridade humana não necessita de ter um estatuto especial, mesmo que, quando a peça é interpretada num auditório, o silêncio que a compõe seja maioritariamente ferido pelo ruído humano. O que une as duas peças, na sua radical diversidade, é o desejo de escuta. A escuta do sagrado e a escuta do mundo. E nisso há um compromisso com algo que está a morrer: a disciplina da escuta. Talvez essa disciplina da escuta tivesse, na nossa tradição cultural, começado a morrer com Sócrates e a sua necessidade de se envolver no diálogo como caminho para a verdade. Isso subverte a tradição do pitagorismo. A comunidade pitagórica estava dividida entre acusmáticos e matemáticos. Os primeiros estariam numa espécie de período de aprendizagem, que poderia chegar aos cinco anos. A sua função era escutar a lição do mestre sem lhe ver a face. O essencial era, antes de ter o direito à palavra, exercitar o dever de escutar. O diálogo platónico, que surgia em contraponto com a retórica demagógica dos sofistas, mais do que uma condenação do ruído público, acabou por ser uma legitimação da ruína da disciplina da escuta. Talvez porque escutar se tenha tornado, nos tempos modernos, um pesadelo, a música, por vezes, tenta abrir clareiras para que os homens rememorem esse acto de humildade que é escutar o outro, seja este um homem, um deus, o rumor do vento ou a música das esferas celestes. Também eu preciso de aprender a escutar. Em vez de ficar em silêncio perante o desenrolar de Für Alina, fui escrevendo, escrevendo.
terça-feira, 17 de junho de 2025
Estranheza
Desconheço a razão, mas pus-me a ouvir um álbum de 1975, de um tempo que ainda não tinha chegado aos vinte anos. Um estilo de música que me recusei a cultivar – o rock progressivo –, mas que fui ouvindo, nessa época em que se ouviam essas coisas. Enquanto o álbum, proveniente de uma plataforma musical, vai correndo, tento imaginar-me nesses dias. Não encontro nada de extraordinário, a não ser a banalidade da existência. Na verdade, desconheço-me naqueles traços que recordo. Isto não é uma negação do que fui no passado, é apenas perplexidade. Caso a vida me desse mais cinquenta anos, uma impossibilidade biológica, e me oferecesse uma capacidade de pensar idêntica à que ainda me resta, por certo, aquele que sou hoje seria um estranho para esse eu impossível. Enquanto escrevo, as canções vão correndo. Em mim, porém, nada vibra. Aquilo parece-me uma xaropada, mas, disciplinado, obrigo-me a ouvir até ao fim, tentando descobrir o que, por vezes, me levava a ouvir estas canções, sem um particular desagrado. Aqueles foram uns estranhos anos, embora na altura me parecessem normais. Imagino que todas as décadas são tempos estranhos, o que tem uma consequência extraordinária: a vida mais vulgar é feita de coisas estranhas, feitas de uma familiaridade inquietante. Chego aqui e suspendo a tentação de cair – toda a tentação está ligada a uma queda – na exegese dos conceitos Unheimlich e Unheimlichkeit provenientes de Freud e de Heidegger. Deixemo-los a repousar lá no etéreo lugar que lhes cabe. Ponhamos de lado o familiar, o estranho, a inquietante estranheza. Embora, pensar-me em 1975 não deixe de ser uma inquietante estranheza.
segunda-feira, 16 de junho de 2025
Casamento
Hoje, estive quatro horas em videoconferência, uma modalidade branda de enlouquecer. Não, equivoquei-me. A modalidade não é branda, mas áspera. Sendo assim, a loucura que me calhar será também ela áspera, crespa, rugosa. Talvez acre e ácida ao mesmo tempo. Se enlouquecer desse modo, a culpa não será minha. Tão pouco, dos genes recebidos, pois são genes muito bons. Quero dizer: são os melhores que consegui, embora sem fazer nada para isso. A culpa do meu futuro enlouquecimento não poderá ficar solteira, mas temo que nessa altura não saiba qual o marido com que devo acasalá-la. Talvez nem consiga para ela uma simples união de facto. Agora, poderia casar esse hipotética culpa com o videoconferenciar. Contudo, como ainda não estou louco, não há culpa, embora haja marido – ou parceiro – para ela, que até lá terá de se entregar à abstinência. O casamento exige a mais pura virgindade. A culpa e o videoconferenciar descobrirão um com o outro os factos da vida. Também é possível que a vida não tenha factos e, por isso, não haja nada para descobrir. Pode-se argumentar que este texto anuncia que o videoconferenciar não ficará abstinente por muito tempo. Cada um que julgue, mas poupem-me os pormenores. Se estou a ficar louco, uma presunção sem fundamento, quero entrar nessa fase da existência sem saber. A ignorância é uma amante virtuosa, mais do que a inocência.
domingo, 15 de junho de 2025
Dobrar o cabo
Dobrámos o meio de Junho e preparamo-nos para lançar âncora no porto do Estio. Então, os dias começarão a diminuir. Cheguei tarde a casa, vindo de Lisboa, e antes de escrever fui fazer a minha caminhada. A noite tinha-se apossado da cidade e, apesar da iluminação pública, as pessoas eram apenas vultos, sombras sorrateiras. No percurso escolhido, há uma capela dedicada a Santo António, por certo o de Lisboa; aqui não haverá devotos do santo em versão paduana. No átrio, vivia-se ainda o rescaldo das festas em honra do santo. Havia farturas à venda numa roulotte à beira da estrada. Não se pense que caí na tentação. Passeio ao largo. Num palco, alguém cantava uma música que passa por popular, mas que é apenas um exercício de mau gosto, esse mau gosto que se apossou da cultura popular e que transbordou para todo lado. Passei rápido, não fosse contaminado por algum vírus. Entrei na avenida, e conforme ia andando chegava até mim o perfume doce e intenso das flores das tílias. As árvores estão belíssimas, mas o aroma é enjoativo. Haverá quem goste. Apesar dessa leve disfunção aromática, sentia-me bem, penetrando solitário na solidão da noite. Enquanto contemplava a pujança das tílias, lembrei-me dos jacarandás da 5 de Outubro, já sem o esplendor que devem ter tido há uns dias. Além de terrível, a beleza é efémera. Por vezes, não há nada melhor do que uma trivialidade para dizer o que as coisas são. Aliás, haverá coisa mais trivial do que o ser, esse objecto último de toda a meditação filosófica?
sábado, 14 de junho de 2025
Sentido
Durante parte substancial da minha vida, este era um dia de festa. Hoje – na verdade, há mais de duas décadas – é data de rememoração. Festa, rememoração, nada. Uma sequência inevitável, por muito que nós, mortais dotados de consciência, queiramos resistir-lhe e subverter. Por que razão as coisas têm de ser assim, não o sei, ninguém o saberá. Podemos especular sobre a fragilidade dos materiais de que somos compostos, mas isso é apenas constatar factos. Ora, os factos nada nos dizem. Limitam-se a acontecer. E isso não lhes confere qualquer sentido. Mesmo que os saibamos explicar pela sua inserção numa legalidade da natureza, enquadrá-los num esquema de causa-efeito ou num outro do mesmo género, isso nada nos diz por que motivo as coisas são como são e não de outra maneira. As leis da natureza não explicam nada. Mais: são elas que necessitam de explicação. Por que estas e não outras? Anaximandro via, nesse processo de vir ao mundo e de dele ser expulso, um acto de justiça que repunha as coisas no seu lugar, devido à injustiça cometida pela entrada no mundo. Há, nesta resposta, por ingénua que pareça, mais sabedoria do que numa explicação científica. Dá-nos um sentido, oferece-nos um porquê para a sequência: festa, rememoração, nada. A ciência explica-nos como as coisas acontecem, mas em nós nunca deixa de vibrar a pergunta que, na infância, repetimos vezes sem conta, até exasperarmos os adultos: Porquê?
sexta-feira, 13 de junho de 2025
Pobres diabos
Releio Fome, o romance de Knut Hamsun publicado em 1890. Antecipa a revolução modernista. Conforme vou lendo, pressinto a incomodidade com que críticos e leitores fundados nas tradições rivais do romantismo e do naturalismo devem ter recebido a obra. Nem a subjectividade hiperbólica e exaltado do génio romântico, nem a subjectividade determinada pela hereditariedade ou pelo meio do tipo ideal ou clínico da personagem do naturalismo. O narrador protagonista, sem nome, é o retrato de uma subjectividade em colapso. Um leitor atento encontrará, por certo, tonalidades românticas e naturalistas, mas ambas superadas na implosão de um sujeito assombrado pela fome e tomado pelo desejo de escrever. Não é um tipo universal, mas também não é um herói singular. É apenas um pobre diabo que tem fome. Contudo, este pobre diabo esfaimado está mais próximo de cada um de nós do que as personagens romanescas anteriores. Não por causa da fome, mas porque é um pobre diabo. E é isso que somos, mesmo que a fome não nos atormente. A fome designa o desejo, a cujo império só poucos, muito poucos, conseguem furtar-se. É pelo desejo que se entra na confraria dos pobres diabos e é por causa dele que não saímos dali.
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Equívocos
Uns dias fora e, quando chego a casa, as orquídeas estão todas doentes, moribundas. Foram atingidas por uma pandemia para a qual desconheço vacina. Talvez o número seja excessivo e a competição pelo título de a mais bela do ano as tenha enfraquecido, lançando-as num estado depressivo que se apodera das flores e das hastes onde brotam os botões. Em contrapartida, o jacarandá da praceta do outro lado da avenida está exuberante, de uma beleza inominável. O facto de ser inominável deve-se apenas a uma incapacidade minha para a nomear. Poderia encontrar metáforas, mas serão as metáforas um nome? Talvez todos os nomes não sejam mais do que metáforas. Dar nome não à beleza, mas às coisas belas, é um exercício difícil. As palavras estão gastas. O melhor seria inventar uma palavra para a beleza específica daquele jacarandá. Contudo, há um problema: a beleza que entrevi há pouco não será a mesma que ele terá ao crepúsculo, o que me obrigaria a inventar uma nova palavra, a qual também não seria adequada para a beleza que a árvore ostentará na aurora de amanhã. É aqui que nascem todos os equívocos linguísticos. A realidade está em constante metamorfose – em leitura hegeliana, dir-se-ia: está em devir –, mas a linguagem é muito mais lenta na sua adaptação a essa realidade. Eu mantenho o nome desde que nasci, mas eu não sou aquele que nasceu há tantas décadas. Sou outro, continuamente outro, o que implicaria que tivesse de mudar continuamente de nome. Em linguagem política – Honi soit qui mal y pense –, a língua é conservadora, a realidade é revolucionária. Isto tem implicações extraordinárias: os revolucionários odeiam a língua; os conservadores, a realidade. Por mim, não odeio nem a língua nem a realidade. Sofro-as como posso, com a paciência de um santo, a qual não é outra coisa senão um compromisso que compatibiliza os ardores revolucionários da realidade com a gélida solidez da língua. O pior é que a realidade está a destruir as orquídeas cá de casa e não tenho palavras para solidificar a sua beleza.
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Um súbito interesse
De súbito, sem razão aparente, interessei-me por um assunto que nunca me tinha interessado: o regicídio de 1908. Não se trata de um interesse político, da querela entre monárquicos e republicanos. Também não se trata de um interesse técnico — desde o planeamento e a execução dos homicídios até à completa inoperância de todas as estruturas que teriam, em todos os momentos, de defender a família real. O que, de modo inesperado e intempestivo, se acordou em mim foi tentar perceber como é que as pessoas sentiram o acontecimento. Como vibrou ele no espírito de monárquicos e de republicanos? Como repicou no coração popular? Este tipo de interesse não é diferente de um que tivesse por objecto compreender como ressoou, na consciência das pessoas, o terramoto de 1755. Aparentemente, são dois casos bastante diferentes — um de ordem natural, fruto das leis da natureza; outro, de ordem cultural, resultado da agência dos homens. Também os diferencia o grau de devastação humana. Contudo, estes acontecimentos atingem o espírito das pessoas e ficam por lá, enquanto elas o ruminam. E é esta ruminação acerca do regicídio que, de um dia para o outro, me interessou. Muitas vezes procura-se definir qual terá sido o acontecimento mais importante de um dado século. Talvez o acontecimento decisivo do século XX português tenha sido o assassinato dos dois Braganças. O que é que esse assassinato — não o facto, mas a sua repercussão nas consciências — diz de nós? Não sei se a resposta — por muito matizada que seja — será agradável.