Passei a manhã como acompanhante – honni soit qui mal y pense! – de paciente que, na ânsia, sabe-se lá
se fundada, de ver melhor o mundo, decidiu submeter-se a uma cirurgia aos olhos,
a um, para ser mais exacto. A exactidão, nestas coisas da medicina, é essencial,
como logo nos apercebemos mal entramos em contacto com um desses seres
mitológicos a que, por reverência, se dá o nome de médico. E enquanto aguardava
o desenrolar das operações, para poder executar a função a que me propusera,
fui adentrando-me na vida dos outros. Coscuvilhar, para ser mais fiel à atitude
que foi, durante a manhã, a minha. Preocupei-me, não sem condescendência, com
as hesitações e as dores das primas Garman, Rachel e Madeleine. Cansado de desventuras
no feminino, passei para o destino do garboso e recém promovido capitão
Giovanni Drogo. Quando o rescaldo da intervenção cirúrgica terminou, estava eu
a pensar que este interesse pela vida de terceiros, ainda por cima gente de
papel, não prognostica nada de bom sobre a minha índole. Uma pessoa decente,
por parcos que fossem os seus talentos, empregá-los-ia na criação de riqueza, ou
na libertação da humanidade ou, mesmo, na salvação do mundo. Todas estas nobres
actividades, porém, não estão no meu horizonte. Olho-as e não consigo ver nada.
Talvez também eu precise de uma cirurgia ocular.
Também já fiz de acompanhante em cirurgia ocular, mas estava demasiado nervosa,
ResponderEliminarpreocupada, não consegui ler um livro.
Agora estou a assar em lume brando aqui na minha sala, virada a sul e oeste, sem ar condicionado; pela temperatura reinante, diria que estou no Deserto dos Tártaros, mas não, estou mesmo em Portugal, na raia beirã.
Será que vou conseguir sair daqui? Humm, parece-me que vou ser como o capitão Giovanni Drogo.
⚘
Maria
Portugal está a torna-se um deserto dos tártaros. E não sei se haverá lugar para onde ir.
EliminarHV