Que dia este de Julho, exclamei para mim mesmo. Almocei tarde e deixei-me ficar em frente da televisão a ver a etapa do Tour. Um ciclista fugia, fugia, embrenhava-se estrada fora. Ia sozinho, como se um monstro tortuoso o perseguisse. Talvez a ideia de ser devorado por um dragão lhe desse forças nas pernas e lá ia ele, a subir e a descer, curva e contracurva, indiferente à paisagem, surdo para os incentivos, os olhos no futuro e um medo terrível do passado. Se fosse S. Jorge, por certo, esperava o dragão e matava-o, mas hoje não abundam heróis como aqueles que havia noutros tempos. Os heróis de hoje pedalam, que ped’alma, como escrevia o O’Neil. E enquanto o semideus pedalava eu adormeci em frente ao televisor, adormeci com o meu “passado a tiracolo”. Eu dormia e o ciclista, um italiano, dava às pernas, abandonado, afogueado, “com o provir na pedaleira”. Parecia que lhe tinham chegado fogo ao rabo. Talvez fosse uma baforada do dragão, admito agora que penso no assunto, e o pobre, que não era S. Jorge, toca de se despachar, para chegar à meta que deve ser uma espécie de coito, onde, a quem nele se abriga, nada pode acontecer. Terei sonhado? Terei ressonado? Não ouvi protestos. Quando acordei, lá estava o italiano no coito, protegido contra dragões, à espera que chegasse o camisola amarela, que tinha perdido o comboio e se atrasara vinte minutos, pois também os camisolas amarelas chegam tarde quando os comboios cumprem horário. O melhor é não sair de casa. Pode ser que apareça por aí um dragão e não tenho santidade suficiente para o enfrentar nem força para dar ao pedal, que a pedaleira está enferrujada e o passado a tiracolo pesa-me mais que o futuro.
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