sábado, 20 de julho de 2019

Trabalhos manuais

Peguei num romance que começa com uma descrição de soldados de papel. Os primeiros são os couraceiros cabeças-redondas de Cromwell, os quais acabaram por ajudar ao funesto desenlace que levou Carlos I ao cadafalso. Talvez a decapitação faça parte das prerrogativas reais, pensei. A história está cheia de regicídios, mas hoje é sábado e o melhor é não pensar em coisas dessas. Voltando aos soldados de papel, lembrei-me que havia quem coleccionasse soldadinhos de chumbo. Talvez existisse gente que coleccionava soldadinhos de papel ou, melhor, de cartão. Por falar nisto, lembrei-me de um fatídico acontecimento da minha existência. No meu tampo, havia, para além do exame de admissão, um exame da quarta classe. O mais difícil para mim era, de longe, a prova de trabalhos manuais. Tínhamos de apresentar uma obra construída pelas nossas próprias mãos. Havia quem fizesse navios em madeira e outras coisas que eu nem imaginava serem possíveis. Eu, pobre de mim, não sabia o que as minhas mãos poderiam fazer. Não sei como nem porquê, calhou-me construir um moinho de cartão. Tinha de recortar as figuras e montá-las, fazendo dobragens e colando. Uma tortura. O pior foi que não conseguia colar aquela geringonça. A professora ao aperceber-se da minha inépcia, perguntou-me que cola estava a usar. Ao constatar que o problema não era da cola, deu-me três estalos na cara. Nesse momento devo ter tido pena que ela não fosse Carlos I de Inglaterra e eu, no abandono dos meus nove anos, um Cromwell justiceiro. Não sabia, porém, história de Inglaterra e limitei-me a ficar calado. A verdade, porém, é que a senhora não perdeu a cabeça no cadafalso e eu lá consegui colar o moinho. Nunca deixei de odiar os trabalhos manuais.

4 comentários:

  1. E agora nem um bricolage de vez em quando, HV?
    Lamentável que antigamente se resolvesse tudo, ou quase tudo, à estalada.
    Quanto ao livro, penso que será Os Exércitos de Paluzie, do Manuel de Seabra, mas o mérito é todo do Google: nunca li este livro e desconheço o autor.
    Bom Domingo.

    Maria

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    1. Talvez a professora, por acaso minha vizinha, estivesse num dia difícil. Nessa altura qualquer desarranjo hormonal poderia ter consequências funestas. Tirando esse acontecimento sombrio, embora eficaz, devo-lhe a qualidade da preparação para a admissão aos liceus. Uma coisa que as pessoas mais novas não sabem é que essa preparação era paga e decorria após o horário normal da escola. Quanto ao livro é esse mesmo. Nunca li nada desse autor, mas comprei este livro num alfarrabista. Não é fácil de ler, pois a letra, na edição do Círculo de Leitores (a única que existe, penso), é muito, muito pequena. Quanto a bricologe, zero.

      HV

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  2. Li alguns "calhamaços" nessa letrinha: Anna Karenina, Crime e Castigo, Decameron, Os Maias, por exemplo. E muitos, muitos outros livros, menos volumosos. Fui sócia do Círculo de Leitores, desde o início e durante vários anos.
    Como pus todas as minhas amigas a ler, recebi vários livros por propôr novos sócios.
    Nesse tempo, livros grandes e letras pequenas não me intimidavam; agora sim, e muito.
    Recentemente tive que comprar uma nova edição dos Maias, por me ver incapaz de ler a que tinha cá em casa, precisamente do Círculo de Leitores.
    Ninguém me avisou que ia ser assim...


    Maria

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    1. Há sempre avisos. Isto é, pessoas que se queixam, mas nunca se lhes dá a devida atenção. E isso continuará assim enquanto houver humanidade.

      HV

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