Olho para uma das estantes do escritório e vejo uma pilha de CD fora do lugar. A entropia é isto, pensei. A desordem vai crescendo dentro do sistema. Em vez de ir arrumar os discos, coloquei um na aparelhagem e deixo-me estar a ouvi-lo enquanto permaneço sentado. Se o crescimento da desordem for musical, talvez não seja uma situação entrópica. A música tem um poder de salvação tal que até da doença da entropia ela é capaz de salvar uma casa. Escuto as Sonatas dos Mistérios, de von Biber. No século XVII, havia uma bela imaginação para colocar nomes, mesmo num sítio tão hirsuto como a Boémia. Chamava-se ele Heinrich Ignaz Franz von Biber. Um nome barroco, tal como a música. Também o dia está barroco, cheio de rococós. Isto não é verdade. Está um dia pesado, quase lutuoso. Na avenida, as pessoas passam, algumas abrem o guarda-chuva, outras afivelam máscaras, mas também há quem se sente na esplanada do bar e, enquanto bebe uma cerveja, pede aos céus para se conterem e não derramarem águas que lhes estrague o interlúdio. Estas sonatas de Biber acompanham os mistérios do rosário. São as gozosas, as dolorosas e as gloriosas. Deste modo, o Príncipe Arcebispo de Salzburgo podia acompanhar a oração desse mesmo rosário, de que era um adepto fervoroso, pareço estar a falar de futebol, com a nobreza e a elevação que seria a de um príncipe e de um arcebispo, em vez de misturar a sua voz à do rebanho. Hoje, e não fosse o caso da pandemia, talvez ele fosse mesmo ao estádio apoiar a equipa da cidade. Consta que o próprio Papa não se coíbe de partilhar com o mundo o clube do coração. O mundo está cheio de coisas insensatas, mas essa será a sua natureza. Refiro-me ao mundo. Como o bom julgador a si se julga, está tudo dito.
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