sábado, 24 de abril de 2021

Uma narrativa médica

Dois temas absorvem os interesses das pessoas que chegam a certa idade. Previsões meteorológicas e narrativas médicas. Descobri que também eu cheguei a certa idade. Falo do tempo ou faço narrativas ligadas à saúde. O tempo não está grande coisa. Contribuirá para encher as barragens e deixar mais água nos solos. De resto, impede-me de ir fazer a minha caminhada por sertões e veredas, isto é, por becos e vielas desta pequena cidade, que seria uma vila interessante, caso não tivesse sido promovida à patente acima, como aconteceu à maior parte das vilas deste país. Quanto às narrativas médicas, o que posso dizer é que ontem me submeti a um exercício tecnológico interessante, o qual ia acompanhando em directo. Quando perdi numa sala de operações a vesícula, não assisti ao assalto. A quadrilha adormeceu-me e, aproveitando-se do meu estado, levou-me, através de uns buraquinhos discretos, uma coisa que não estava a ser nada indiscreta. Isto, porém, já foi há uns anos. Ontem foi muito mais emocionante. Depois de me raparem a pelagem nos braços e em sítios indiscritíveis, levaram-me para uma sala onde um bando, depois de me apalpar o braço, decidiu enfiar-me uma arma por uma artéria acima e andar ali como quem anda nos carros da feira, aqueles que eram para crianças e não os de choque. O bando era composto por dois médicos cardiologistas, um técnico cardiopneumologista, um técnico de radiologia, que fazia o papel de cameraman, um enfermeiro e uma estimável enfermeira, que eu convidaria para jantar caso fosse mais novo e descomprometido. Eu pensava que estava nas filmagens do 2001 Odisseia no Espaço. Os médicos divertiam-se a ver um filme, embora um deles estivesse a escarafunchar-me as artérias com a tal arma que, para disfarçar, davam o nome de cateter. O filme, apesar de ser feito no momento como se fosse uma improvisação num concerto de Jazz, parece que tinha enredo, pois os facultativos comentavam entre si as peripécias, o cameramen recebia instruções deles para colocar a câmara em certas posições, debitando os ângulos, o que me lembrou que a minha neta devia estar a ser massacrada pela avó com assuntos de geometria. A enfermeira perguntava-me se queria pipocas. Eu dizia que não, que estava tudo bem, eu nem estava a ver o filme. A verdade é que os médicos se apoderaram do monitor e, apesar de ter pago bilhete, nem uma sequência vi. Quando se cansaram da história, foram para uma sala ao lado bichanar. Depois de se terem informado dos resultados do futebol, das peripécias da política internacional e dos dramas de meia dúzia de famílias reais europeias, um deles veio ter comigo e disse-me bem, apesar da coisa não estar lá muito boa, há umas calcificações aqui e ali – eu pensei que se deviam à água daqui ser muito calcária – a coisa não está tão má quanto eu pensava. Não lhe vamos pôr nenhuma anilha, coisa a que ele deu o nome esotérico de stent. Temos de acertar a terapêutica medicamentosa em consulta. Daqui a três horas pode ir-se embora, mas já vou ao quarto falar consigo. E foi mesmo, eu saí e fiquei com assunto para hoje. De que falaria? Do tempo?

2 comentários:

  1. Que tudo corra pelo melhor, HV, e que possa voltar bem depressa às suas caminhadas por becos e vielas. Se bem que o Abril tenha decidido voltar a ser de águas mil, em vez do primaveril Avril au Portugal...

    Um abraço, HV.
    🌾
    Maria




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    1. Muito obrigado, acho que as coisas estão a correr bem. Ontem, ainda consegui sair, houve uma boa aberta. Hoje é que está mesmo um Abril de águas mil.

      Abraço, Maria
      HV

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