Oiço uma peça do compositor português Emmanuel Nunes, Épures du serpente vert II, e deixo-me arrastar para uma meditação sobre a densidade, não poucas vezes agreste, da música do século XX. Raras concessões ao público, num tempo em que o público é endeusado. Grande parte da música erudita dessa época parece expressar uma dor irreparável. Talvez todas as dores sejam irreparáveis e irremissíveis. Valem-nos os analgésicos e os cuidados paliativos. Atenuam ou disfarçam, mas nunca a erradicam. Os tempos que nos foram dados acentuam o prazer, transformando-o na única realidade admissível, mostrando o sofrimento como uma patologia, para a qual se busca continuamente medicação. Tudo isto por causa de uma peça musical e do século XX. Este foi um tempo doloroso, mas quem o viveu acaba por ficar ligado ao prazer que ele também distribuiu como nenhum outro antes dele. Um dia de sol, o de hoje, mas o astro está comprometido com algumas sombras trazidas por nuvens esparsas que navegam no oceano celeste. Crianças chamam, lá em baixo, pelo pai. Depois, ouve-se uma voz masculina e tudo se aquieta. Daqui a pouco há-de ser a hora de ensaio do grupo de baile da escola vizinha. Lá virão os êxitos dos anos sessenta e setenta desse século XX, onde os seres humanos se mataram com especial insistência e inventaram regimes políticos dos mais tenebrosos. Para o mal, aos homens nunca falta imaginação.
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