Todo o anjo é terrível. Assim começa a segunda Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Tantas vezes dei comigo a pensar sobre essa estranha sentença, não sobre a sua verdade, mas a perguntar-me se ela não é uma pista para decifrar o enigma daquilo que nos aterra, o mistério do terror. Sempre que algo de terrível assombra os homens talvez seja a obra de um anjo ou de uma legião deles, mesmo se nós nos convencemos que o excesso de iniquidade ou de prazer seja o fruto do arbítrio humano. Pensar sobre os anjos não será o mais indicado para uma tarde soalheira de um sábado de Julho, com o mar tão perto. Encerro os pensamentos na gaveta do armário onde guardo as toalhas de praia e os calções de banho, e espero que também esses pensamentos adormeçam e deixem de me assediar aos sábados à tarde. Ponho de lado o poeta e deixo-me cativar pelas longas conversas com que os pássaros, mesmo ao pé da janela, ajustam os negócios da sua vida. Tenho de me aprontar, parece que alguém se esqueceu de comprar gengibre. Sem ele, o jantar estará ameaçado, ou talvez ninguém desse por isso, pois um anjo terrível se haveria de dispor a embotar o gosto dos comensais e, como um certo génio maligno que atormentou o pobre René, haveria de fazer parecer óptimo aquilo que apenas era sofrível.
Sem comentários:
Enviar um comentário