sábado, 6 de maio de 2023

Conjecturas

Tinha pensado em ir almoçar ao bar do outro lado da rua. Quando me preparava para sair, já de chaves na mão, desatou a chover. Mudei de ideias. A razão não foi a chuva, mas o guarda-chuva. Pensei que se o levasse, como tinha de o fazer, iria esquecer-me dele, pois o aguaceiro teria passado e não mais me lembraria que o levara. Almocei em casa, cedo e sem necessidade de andar de guarda-chuva e pôr à prova a minha memória. Como não tenho outra aventura para acrescentar à gesta, passo a falar do estado do tempo. Não chove, céu parcialmente nublado, mas com abertas, pelas quais o sol brilha e faz deslizar uma cintilação esquiva no verde das folhas de árvores e arbustos. Posso também falar de orquídeas. Expandiram-se. Havia um friso. Agora há um friso e um canto. Ao todo, são 18, mas três ainda não floriram. São mais lentas do que as outras, mas parece que irão chegar ao dia em que se abrirão floridas para os olhos de quem as contempla. Para dizer a verdade, a minha relação é instrumental. Não mexo um dedo por elas, mas gosto do espectáculo que oferecem, comento-o com regularidade, talvez um dia chegue a teorizar sobre o assunto, mas, por enquanto, não ultrapasso a dimensão narrativa. Toda a ciência começa com a narrativa. A partir das narrativas passa-se à fase das taxionomias e, depois, entra-se no processo da conjectura e validação, embora, para certo filósofo, não seja possível validar nenhuma conjectura, apenas refutá-la. Os pássaros meus vizinhos não se calam. Grandes debates devem travar. Imagino que estejam a discutir o orçamento do bando ou alguma reforma que todos acham necessária, mas que ninguém quer. Nisto, os pássaros assemelham-se mais aos humanos do que aos anjos. Esta semelhança é corroborada pelo facto de os anjos se organizarem em hierarquias, enquanto os homens só estão felizes quando se dividem, como as aves, em bandos. Acho que vou dormir uns minutos, até que o pescoço me doa. Devia ir escrever o final de um relatório onde faço um conjunto de recomendações necessárias, mas que ninguém desejará ouvir. Sendo assim, mais vale dormir.

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