quarta-feira, 10 de maio de 2023

Nulidade

O que queremos dizer quando dizemos que não temos nada dentro da cabeça? A asserção não é factual, pois caso fosse verdadeira, não poderíamos dizê-la. Aliás, não poderíamos rigorosamente nada, pois não existiríamos. Só podemos afirmar que não temos nada dentro da cabeça porque temos alguma coisa dentro da cabeça. O que me apetece, todavia, dizer é que não tenho nada dentro da cabeça. Devo fazê-lo? Devo faltar à verdade pare descrever uma sensação realmente sentida, mas que sei ser falsa? Quando se chega a esta altura do dia e a única coisa que os dedos conseguem fazer surgir no monitor são estas interrogações idiotas sobre um assunto insignificante, no sentido radical da palavra, então é porque o dia foi gloriosamente perdido na nulidade. Talvez o niilismo seja a perda de cada um na pura nulidade. Ora, a nulidade é um oceano pacífico e profundo, onde se mergulha e se flutua à tona de água até se adormecer. Depois, é uma questão de sorte. Uns afogam-se, outros são devorados por tubarões, outros são arrastados pela corrente para a areia, talvez de uma ilha deserta, ou quase, se nela habitar uma princesa adormecida. O problema destas princesas adormecidas que habitam em ilhas quase desertas é que aqueles que nelas encontram a salvação estão longe de serem príncipes encantados, e mesmo que cheguem ao momento em que dão o beijo na bela adormecida e esta acorde, eles transformam-se em rãs e a princesa pensa que foi mordida por um batráquio. Mais valia continuar a dormir. O niilismo que habita a minha cabeça não dá para mais. Uma princesa bela e adormecida foi mordida por uma rã, a pobre. Uma comoção.

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