Num livro lido há muito encontrei múltiplas passagens sublinhadas a lápis. Por curiosidade, fui passando as páginas e lendo os sublinhados. Seria muito cómodo afirmar que, se lesse esse livro de novo e em estado imaculado, sublinharia as mesmas coisas. Com isso daria a prova de ser sólido, imutável, um carácter nada volúvel. Seria comovente, mas falso. Em primeiro lugar, é pouco provável que me pusesse a ler aquele livro. Depois, entre mim e aquele que, com a minha mão, sublinhou o livro há uma distância que não me parece pequena. O sublinhador tornou-se-me estranho, se não estrangeiro. Um dia, alguém me disse que permanecemos sempre o mesmo, que, na verdade, nunca mudamos. Não foi bem a mim, mas aos alunos que assistiam a uma amena aula, que decorria na Faculdade de Letras, talvez numa tarde já quente. Imaginei que seria uma afirmação de Parménides contra Heraclito, mas achei-a estranha. Talvez a experiência do confessionário, pensei, lhe tenha ensinado a imutabilidade do carácter humano, pois a afirmação veio de um padre. Contudo, ela trazia uma negação terrível da própria função sacerdotal. Se permanecemos sempre os mesmos, que sentido fará tentar salvar as almas da perdição? Se eu permanecesse o mesmo, reconhecer-me-ia nos sublinhados feitos há décadas, mas não me reconheço. Logo, não sou o mesmo que era nesses dias. Também é possível que o outro e o mesmo sejam distinções sem sentido, fruto de uma fantasia de distinção, isto é, um jogo da imaginação. Está uma tarde sem sol, mas abafada. Uma luz de cinza esbranquiçada cai em borbotões sobre a praça. Os ramos das acácias e das tílias vergam-se ao peso dessa luz, inclinando-se para a terra, como se ela fosse a sua casa.
Não é o seu doppelgänger, mas em literatura até poder ser. Quem sabe ele tem um cão. Os cães acrescentam pontos cardio.
ResponderEliminarAté podia ser*, mas até poder ser é uma espécie de futuro.
EliminarNaquela altura não se interessava por pontos cardio, nem por cães. Duvido que nisso tenha mudado, mas não sei, não lhe perguntei.
EliminarÉ claro que não. E saber isso é a minha parte interesseira. Nunca sublinhei um livro.
EliminarDeixei de o fazer há muito, mas agora voltei, mas apenas nos livros digitais. Os de papel ficam imaculados, para amarelecerem puros.
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