O último ensaio do livro Ensaios, de Robert Musil, não é bem um ensaio, mas o texto de uma conferência proferida em Viena, no dia 11 de Março de 1937, com o título Über die Dummheit, Da estupidez, na tradução portuguesa. Eis um tema sobre o qual sou versado e sou-o de uma forma decisiva, isto é, de uma forma prática. Não se pense, porém, que me reconheço como estúpido. Impossível. A prática vem de pensar muito no assunto, como se verá na sequência. Todos nós, seres humanos, estamos convencidos de que estamos rodeados pela estupidez, mas pela estupidez dos outros. Se se fizer um inquérito, por maior que seja a amostra, não se encontrará um caso que seja de alguém que se reconheça como estúpido. Isto conduz-nos a uma primeira conclusão, a estupidez é sempre um problema dos outros. Nenhum eu tomará a palavra e dirá: eu sou estúpido. Se o bom senso, no dizer de Descartes, é a coisa mais bem distribuída no mundo, pois não há quem queira ter mais do que aquele que tem, a estupidez, pelo contrário, é a coisa que mais está em falta nesse mesmo mundo, pois não há ninguém que não reconheça estar desapossado dela, de ser um miserável no que toca à estupidez. Portanto, a estupidez é um problema dos outros pronomes pessoais. É um problema do tu, do ele e do ela, do vós e do eles e do elas. Só as primeiras pessoas, do singular ou do plural, não são estúpidas. Se o fossem como poderiam ser primeiras pessoas? É sabido que aquilo que faz com que uma primeira pessoa seja primeira, mesmo na região etérea da gramática, é a ausência de estupidez. Alguém poderia objectar que não é certo que um nós não contenha um conjunto de estúpidos. Um nós resulta da junção de vários eus. Ora, se não há nenhum eu que seja estúpido, aonde é que um conjunto de eus iria buscar a estupidez? A nenhures. Um problema prático. Muitas almas cheias de boa-vontade costumam perguntar sobre como erradicar do mundo a estupidez, coisa de estão desprovidas, mas que sabem existir ao seu redor. Eu tenho uma solução, embora desconfie que quem me poderia auxiliar nessa gesta gloriosa não esteja disposto a fazê-lo. Bastaria reduzir os pronomes pessoais às primeiras pessoas do singular e do plural. Não havendo nem tu, nem ele, nem ela, nem vós, nem eles, nem elas, também não haveria estupidez. Haverá, porém, algum gramático com alma de redentor do mundo disposto a abolir esses malfadados pronomes pessoais? Desconfio que não, ou não fora ele um estúpido ele.
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