Como não poucas vezes aqui foi dito, ou, melhor, foi escrito, existe um conflito entre mim, narrador desta epopeia, e o autor. Este impõe-me limites e proíbe-me certos assuntos, impedindo-me de expressar o que me vai na alma. Sim, na alma, pois até um narrador tem uma alma — uma alma narrativa, mas não humana; caso contrário, seria um desalmado, o que, manifestamente, não é o meu caso. Ora, um dos pontos de conflito é a tecnologia. Eu sou um conservador e, não fora as imposições do autor, escreveria estes textos em papel, com pena de cisne. Ele, porém, não mo permite. Obriga-me a usar um teclado. Pior do que isso, cultiva coisas estranhíssimas, como o uso da inteligência artificial ou o interesse — embora sem uma convicção militante — por questões políticas, apesar de dizer sempre que quem quiser compreender alguma coisa nesse campo nebuloso deve começar por ler as tragédias gregas, e não O Príncipe, de Maquiavel, ou A República, de Platão. É uma das poucas coisas em que estamos de acordo. Tenho-lhe dito que a inteligência artificial é um perigo para a humanidade, mas ele responde-me sempre que não há maior perigo para a humanidade do que ela própria. Calo-me, pois, sendo apenas um narrador, não sou propriamente humano e, em última análise, não tenho qualquer interesse pelo destino dessa espécie tão dada à volubilidade, que é impossível perceber o que pretende da existência. Ora, descobri-lhe uma prática viciosa: pega em livros do domínio público, escritos em línguas que não domina, e manda-os traduzir pela inteligência artificial. Depois, lê-os. E parece não ficar desagradado com o resultado. É aqui que começo a temer pela minha existência. Um dia, ele substituir-me-á por um narrador proveniente de um modelo de linguagem. Escreve um prompt ordenando-lhe um post com certas características, e aquela coisa escrevê-lo-á. Por uns tempos, ainda sem grande graça, mas, estou certo, progressivamente, as suas narrativas serão melhores do que as minhas. Nessa hora, apesar das juras de fidelidade do autor, serei um narrador no desemprego, derrotado na contenda com o autor. A minha esperança é que ele próprio seja deglutido por um bot. Tudo se paga nesta vida. E, se não for nesta, há-de ser na outra — ou numa outra.
quinta-feira, 24 de julho de 2025
quarta-feira, 23 de julho de 2025
Determinações
No texto de abertura que antecede o artigo de Thomas Garcin, um professor de Estudos Japoneses na Universidade de Paris, sobre o centenário do nascimento de Yukio Mishima, na Electra do Verão de 2025, escreve-se: olhada do fim para o princípio, a vida de Yukio Mishima parece um destino em que tudo o que aconteceu não podia ter acontecido de outra maneira. Aquilo que é dito de Mishima pode ser dito de qualquer um. Uma vida olhada a partir da morte que lhe coube está perfeita – no sentido de acabada – e, como tal, está plenamente determinada. O jogo de causas e efeitos está fechado, e cada efeito é o resultado da causa que o produziu. Não se podia ter achegado ali – naquela hora e naquele espaço – senão pelo caminho que se seguiu. Contudo, se se olhar uma vida não a partir da sua morte, mas da sua emergência no mundo, o que se observa são as possibilidades que estão em aberto. Não serão infinitas, pois os homens são finitos, mas são muito mais amplas do que se pode pensar. A vida de Mishima ou a de um sem-abrigo são idênticas: um processo contínuo de fechamento de possibilidades que estavam em aberto. Cada vez que se faz uma escolha, selecciona-se um caminho e fecham-se muitos outros. É um processo de afunilamento contínuo: as escolhas vão escasseando até que chega a hora em que não temos direito a mais nenhuma. Um determinista radical diria que, mesmo no início da vida, não existe escolha; tudo estará determinado por causas que não controlamos. O problema dos deterministas radicais e dos fatalistas é que olham a vida dos homens a partir da morte. Nos seus olhos, só existe a morte, uma sombra que se projecta sobre a vida e que a mata, vendo-a como um mero jogo de causas que se sucedem necessariamente certos efeitos. Se tivessem razão, que valor teria a obra de Mishima ou o seu suicídio ritual?
terça-feira, 22 de julho de 2025
Vida quotidiana
Hoje fiz uma viagem de apenas oito graus centígrados. Como foi uma viagem de ida e volta, e como as diferenças de temperaturas, à ida e à volta, se mantiveram constantes, poder-se-á afirmar que, mesmo num mundo conturbado como o nosso, existem constâncias. Nem sempre a volubilidade reina no ânimo de quem superintende as metamorfoses da realidade. Tinha várias coisas a tratar naquele sítio onde, durante grande parte do ano, me acolho para pagar tributo à deusa Necessidade. Entre essas coisas, a mais premente era passar pelos CTT e levantar uma encomenda de livros que tinha chegado no dia 17 e que temi que fosse devolvida à precedência. Também fui à loja de mobiliário de escritório, para levantar a cadeira onde, neste momento, escrevo. A outra estava cansada, e decidi reformá-la. Talvez a devesse condecorar pelos serviços prestados ao longo de mais de duas décadas. Ainda falámos sobre o assunto – eu e ela –, mas opôs-se. Não tinha paciência para cerimónias, nem farda militar, nem casaca ou mesmo um simples fraque. Que não fosse por isso, ripostei. Agradeceu e fez-me um estranho pedido: não me abandones no sótão ou numa cave. Prefiro ser deixada ao pé de um caixote do lixo. Alguém pegará em mim e dar-me-á uma nova vida. Talvez lhe faça a vontade, mas ainda não tomei uma decisão. Andamos, nós os humanos – no caso de eu ser um humano –, muito enganados sobre a natureza dos objectos do mundo. Tanto os que são fruto da natureza como os que são produtos do artifício. Pensamo-los passivos, meras coisas ao alcance da mão, instrumentos para os nossos fins, mas isso é uma fantasia nossa. Eles têm vontade e expressam-na. Temos, porém, de estar dispostos a falar com eles. Coisa que raramente ocorre, mesmo no meu caso, em que prefiro falar sozinho. Agora vou equipar-me e fazer uma caminhada, por causa dos pontos cardio, seja lá isso o que for, mas a sua acumulação faz bem ao coração. E quem não quer ter um coração saudável?
segunda-feira, 21 de julho de 2025
Calendários e deadlines
Aproximo-me, a passos largos, daquela fase da existência em que a denominação dos dias da semana desaparece. Aquilo que era uma experiência ténue, localizada nos tempos de férias, será agora — imagino — a natureza da minha relação. Isto, porém, é uma especulação, pois, em todo o lado, a começar pelo telemóvel, está a informação do dia da semana, do mês em que se está e até do ano que corre, como um rio tranquilo, para a foz. A tranquilidade fluvial dos anos não deriva daquilo que acontece neles, mas da regularidade que os habita. Começam sempre a 1 de Janeiro e terminam a 31 de Dezembro. De quatro em quatro anos, dão um bónus ao mês de Fevereiro – nada que o compense do injusto quinhão que lhe coube em sorte. Há pouco, li uma notícia: tinha sido descoberta uma flauta feita em osso de urso, que pertenceria a Neandertais. A conclusão óbvia é que também eles faziam música. Com alguma evidência empírica, desconfia-se de que também se entregavam à pintura, bem como à bijutaria. Podemos mesmo dizer: humanos, demasiado humanos. E teriam eles calendário? Dividiriam o tempo de algum modo? Observariam os astros? O seu desaparecimento continua a ser um mistério. Talvez a falta de um calendário seja a causa da sua tragédia. O calendário permite colocar deadlines, o que significa que há um espaço temporal, a que se segue uma deadline, a qual, sendo atingida, está ultrapassada. Sem um calendário, os Neandertais não distinguiam a deadline do tempo que está antes e depois dela. Para eles, todo o tempo era uma deadline, por onde entraram e de onde não conseguiram sair. Sem calendário, a deadline deixa de ser um prazo-limite, para ser a linha da morte ou, melhor, uma superfície da morte, isto é, um campo da morte. Esta é a minha contribuição para decifrar mais um mistério que atormenta a imaginação, se não da espécie, pelo menos de uma parte que se entrega a este tipo de coisas. Se me perguntarem por evidências empíricas, direi que foi uma dedução a priori, sem necessidade do recurso à experiência. O pior, para a minha tese, é, se um dia descobrem que também os Neandertais tinham calendários e usavam deadlines para as suas tarefas. Enquanto isso não acontece, pode ser que eu esteja a transformar-me num Neandertal.
domingo, 20 de julho de 2025
Incomunicabilidade
Quais os limites da linguagem? Num conto de 1959, denominado Martelo, Stanisław Lem escreve: Pedregulhos enormes, aquecidos pelo sol e, na sombra, frios como gelo, pontiagudos, com aquele odor… não sei como descrevê-lo, mas quase sinto o seu cheiro neste momento…. A questão central expressa-se no “não sei como descrevê-lo”. Não se trata de uma falta de habilidade, de uma incapacidade derivada da falta de técnica, mas da confissão de uma impotência – não de natureza pessoal, mas da própria linguagem. Como descrever um odor ou um sabor? Tenho sempre uma grande curiosidade pela avaliação feita dos vinhos, pois aí está patente toda a impossibilidade de descrever o odor e o sabor. Os críticos recorrem, então, a um arsenal de metáforas. Esperam, através de uma poética tornada convencional, que o leitor aceda à sua experiência do vinho. Esperança vã – não porque a sua poética seja convencional, mas porque a experiência é absolutamente singular e incomunicável. A linguagem tem dispositivos para falar do singular, mas nenhum para comunicar, a outra pessoa, a experiência que eu tenho de um odor, de um sabor, de um prazer, de uma dor. A experiência, além de absolutamente singular, é incomunicável. O escritor russo Lev Tolstói propôs uma doutrina estética como forma de ultrapassar a incomunicabilidade da experiência: a arte teria a função de comunicar ao público a experiência singular que o artista teve e que desencadeou a produção da obra de arte. O receptor da obra, caso esta fosse uma verdadeira obra de arte, refaria em si a experiência singular do autor. Talvez seja nesta ideia que os críticos de vinho se fundamentam para descrever o odor e o sabor dos vinhos. Não serão grandes artistas – ou talvez sejam e Tolstói estivesse enganado, pois é impossível fazer o outro viver a experiência que eu vivi. A incomunicabilidade das nossas experiências é muito mais radical do que aquela que é suposta existir nas experiências do olfacto e do sabor. A minha experiência do amarelo é tão incomunicável quanto o sabor de um vinho. Aquilo que os outros experimentam na experiência do amarelo permanecerá sempre, para mim, um mistério. Nada nos salva da incomunicabilidade radical da experiência – nem a poesia, nem o amor; muito menos a linguagem. Além da morte, a experiência é a única coisa que é verdadeiramente nossa.
sábado, 19 de julho de 2025
Organização
Tenho aqui alguns livros – mais do que devia – que estão organizados por alturas. Nunca me tinha ocorrido esse critério de organização, mas talvez seja tão pertinente como outro qualquer. O caso, porém, deve-se à mais pura necessidade: a estante tem prateleiras com diferentes alturas, o que me obriga a uma ginástica organizacional. A espécie humana tenta encontrar motivações racionais para organizar o seu mundo; no caso dos livros, os temas e os autores são princípios racionais de organização. Será a melhor forma? Haverá bons argumentos a seu favor. Contudo, podemos supor que, num mundo em que os livros fossem arrumados ao acaso – uma radicalização da organização por altura –, se cultivariam virtudes que a actual organização das bibliotecas não permite. Imaginemos uma grande biblioteca onde não há qualquer critério de organização: o leitor parte em demanda do livro desejado. Isto tem várias vantagens. Em primeiro lugar, faz a experiência da incerteza, o que é uma preparação para lidar com a existência, que nunca deixa de ser incerta. Pergunta-se: existirá o livro ou desapareceu, apesar de haver um registo de compra? Depois, empreende uma viagem que não deixa de ser uma aventura. Se vai descobrir ou não a obra que pretende, isso nunca saberá. Contudo, aprenderá a mapear a biblioteca, a construir esquemas racionais para lidar com o caos. A certa altura – a experiência mais fundamental – descobrirá que o importante não é a obra, mas a viagem, a aventura da caça, mesmo que o livro a caçar não exista. Como não tenho espírito de aventura, em casa, a minha biblioteca está racionalmente organizada: temas e autores. Contudo, aqui e ali vou introduzindo pequenas clareiras onde o caos reina, os temas se cruzam e os autores se misturam. Isso serve para me lembrar a minha falta de espírito de aventura – ou então da necessidade de comprar mais estantes.
sexta-feira, 18 de julho de 2025
Leitura meditada
A vida literária da Áustria, nos primeiros trinta anos do século XX, é uma espécie de milagre: Robert Musil, Hermann Broch, Joseph Roth, Leo Perutz, Karl Kraus, Arthur Schnitzler, Hugo von Hofmannsthal, Stefan Zweig. Contudo, se se quiser passar da Áustria para um espaço cultural mais alargado, aquele que é designado pelo termo Mitteleuropa (Europa Central), descobrimos que o milagre austríaco se inscreve numa área mais vasta de milagres literários. Desde muito cedo, a minha pátria literária foi essa Mitteleuropa, talvez por culpa de Franz Kafka, cuja leitura me mostrou um mundo literário que não era plausível para um meridional. Tudo isto vem a propósito da leitura de Das Spinnennetz (A Teia de Aranha), o primeiro romance de Joseph Roth. O autor expõe, em 1923, o foco psicológico que dá energia a dois fenómenos que vão ter, na história do século XX, as mais funestas consequências: trata-se do ressentimento, que é um dos elementos centrais tanto do nacionalismo como do anti-semitismo. Impressiona a clareza com que Roth, muito antes da catástrofe se declarar, a torna patente. Talvez a sua condição de judeu e de jornalista o tenha tornado sensível ao espírito do tempo. No entanto, o que é marcante no diagnóstico feito é a clara compreensão do papel do ressentimento na determinação da agência dos indivíduos. Os europeus — mesmo os meridionais, como os portugueses — fizeram uma dura aprendizagem sobre o papel do ressentimento na história. Quando os indivíduos ressentidos se tornam uma massa, as maiores desgraças estão ao virar da esquina. Essa aprendizagem parece já ter sido esquecida e vemos o ressentimento tomar conta de cada vez mais pessoas. É um problema difícil de tratar, pois o ressentido tem a causa da sua patologia em si mesmo, nas escolhas que fez e no talento — ou falta dele — que lhe coube em sorte. Nunca se culpará pelo seu falhanço, mas encontrará um bode expiatório, uma vítima sacrificial. Uma leitura meditada do primeiro romance de Roth ajuda-nos a compreender o mundo actual melhor do que muitas análises sociológicas ou de ciência política.
quinta-feira, 17 de julho de 2025
Arbitrariedade geográfica
Percorri sem pressa o molhe. O céu nublado, as águas cinzentas, os barcos ancorados. Parece uma praia da Normandia, pensei. Como tudo na realidade se desconcertou, é possível que as próprias praias tenham mudado de lugar. Não é improvável, nos tempos que correm, andar, por exemplo, pela Beira Alta e encontrar uma pequena cidade alemã ou belga, com os seus habitantes perplexos por, sem darem por isso, terem mudado de lugar, apesar de não terem mudado de cidade. Nasci num tempo em que ainda havia um reflexo de uma ordem no mundo. Mas um reflexo de uma ordem já não é uma ordem, mas um caos que ainda não tomou consciência de si mesmo. As décadas foram passando e aquilo que estava oculto foi-se revelando. A arbitrariedade tornou-se a imagem de marca do mundo. Talvez por isso a Geografia seja, no concerto dos saberes científicos, uma área em crise. Quem pode mapear uma realidade física ou social, se os espaços perderam a fixidez que outrora os ligava à Terra, sendo agora a sua distribuição o resultado de um baralhar de cartas de um jogador amante do acaso? Digo para mim mesmo: conversa idiota de um velho do Restelo. O meu tempo passou e aquilo que é para ti desordem é a ordem rígida dos que agora começam a olhar com alguma atenção para o sítio onde chegaram quando nasceram. Contudo, não me sinto convencido e arquitecto uma outra teoria. A realidade espacial onde habitamos sempre dependeu do arbítrio. Nunca o jogador de cartas amante do acaso esteve ocioso na sua distribuição dos lugares. Contudo, os olhos e o coração são cegos para a realidade: precisam de muito tempo para começarem a ver e ainda mais para crerem no que vêem. Estou em Portugal, mas a praia por onde caminhei esta manhã era normanda. O que me preocupa agora é saber onde estará a praia que aqui estava. Talvez ela volte um dia destes. É possível, porém, que só retorne daqui a séculos. E amanhã, de onde virá a praia que aqui haverá? Deveria fazer um registo das mudanças, para memória futura.
quarta-feira, 16 de julho de 2025
Sem sentido
Por aqui o dia começou deslumbrante, mas, conforme as horas foram passando, o que havia de deslumbre foi sendo substituído por uma névoa esbranquiçada, como se fosse um véu de uma noiva abandonada no altar, trapo andrajoso, sujo, cravejado pelos dardos escuros da dor. Talvez a tonalidade do dia servisse para cenário de um romance policial, com um crime urdido nas teias virginais da vingança. A vítima fora encontrada com um estilete cravado no coração, de onde saíra apenas um fio de sangue insignificante. Ninguém sabia quem ele era e que culpas carregava na consciência. Só a noiva abandonada o conhecia. Isto, porém, não faz sentido, pois uma noiva abandonada no altar não tece vinganças, mas, livre de um futuro incerto, dá graças por o destino lhe ter perdoado a precipitação de um sim ou a falta de coragem de um não. O melhor é não imaginar crimes e detectives, deixar o dia correr e esperar que tudo siga o caminho traçado sabe-se lá onde ou por quem, sem noivas ultrajadas nem véus gastos pelo vitríolo da vingança.
terça-feira, 15 de julho de 2025
Hara-Kiri
Em 1979, o filósofo alemão Hans Jonas, em Das Prinzip Verantwortung (O Princípio Responsabilidade), formulou um novo imperativo ético que se pode traduzir assim: age de modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na Terra. Este princípio moral revela uma clara preocupação com o desenvolvimento das sociedades modernas e com o poder que elas têm, devido aos efeitos das tecnologias, de destruir a possibilidade de assegurar as condições para que uma vida humana seja possível no planeta. Esta preocupação foi recebida, por aqueles que não são tocados por ela, de quatro modos: em primeiro lugar, a indiferença perante essa preocupação, uma coisa de lunáticos; num segundo momento, quando a indiferença era já impossível de manter, passou-se à negação da relação causal entre a acção humana e a degradação do planeta; a terceira fase, depois de também a negação ser impossível, foi a da dissimulação: ficcionou-se a preocupação moral, enquanto tudo continuou a piorar; contudo, a própria consciência moral do problema era desagradável e, por isso, entrou-se numa quarta etapa: não apenas negar, mas afirmar e impor comportamentos que degradem efectivamente o planeta. Este desejo de destruição revela uma pulsão de morte, um desejo de aniquilação, um exercício niilista no qual estamos todos implicados. A nula relevância prática do princípio de Jonas deve-se a uma coisa muito simples: não nos sentimos responsáveis pelo futuro. O prazer do presente é muito mais relevante do que o cuidado com um futuro que desconhecemos como será. Provavelmente, só quando o presente se tornar uma dor contínua, a espécie perceberá o perigo em que se encontra e, mesmo nesse momento, não é seguro que o reconheça. É possível que a espécie esteja cansada de viver e tenha escolhido a destruição da casa como modalidade de hara-kiri.
segunda-feira, 14 de julho de 2025
Imaginações
Não sei o que se passa em mim. Por vezes, sou perturbado por estranhas decisões. Comecei ontem a ler Duna, de Frank Herbert. Qual o problema? Não foi esse romance que esteve na origem do filme Dune, de David Lynch? Sim, foi. Contudo, trata-se de ficção científica. Com tanta coisa fundamental para ler, por que razão gastar o tempo com esse tipo de literatura? Não faço ideia. Podia adiantar algumas razões. Por exemplo, gosto da editora portuguesa que publicou todos os romances da série; leio muitos livros publicados por ela. Outra razão será a capa: gosto das capas. E razões mais substantivas, não há? Esta pergunta veio nem sei bem de onde. Claro que posso apresentar razões mais interessantes. Se toda a ficção é um laboratório onde a vida se ensaia através de experiências imaginárias, a ficção científica fá-lo de um modo mais acentuado, pois desenha espaços e tempos que estão para além da experiência possível. Se não é assim, então deveria ser. Bem, não sou versado no tema, mas predispus-me a descobrir o que tem este género de literatura que represente um contributo da imaginação que não exista no romance tradicional. Fui educado numa espécie de literatura muito específica, a que se deu o nome de Filosofia. Os filósofos juram que usam a razão, deixando a imaginação para a arte. Nunca fiquei convencido. Os diálogos de Platão são racionalizações de um foco imaginário, o qual, não poucas vezes, é indisfarçável, e o autor, ao lado de argumentações mais ou menos sistemáticas, não consegue evitar o mito, o recurso explícito à imaginação, à literatura. Mesmo autores mais austeros, como Kant, fazem literatura, mobilizando a força da imaginação para dar vida e energia a conceitos e argumentos, uma literatura muito específica, que deve ser compreendida também a partir da poética e, pasme-se a heresia, da retórica. Volto à ficção científica: aquilo que me interessará, então, é ver como a poética e a retórica, utensílios da imaginação, aí operam. Estas são as minhas razões de hoje, talvez influenciado por ter ido à consulta de oftalmologia, tendo recebido a notícia de que os olhos de hoje estão como há dois anos e meio, que vá lá daqui a um ano, talvez haja novidades, porque, agora, ainda vejo bem. Eu achei que a médica também tinha uma certa propensão para a literatura, talvez para a ficção científica. Disse-me aquelas coisas depois de me espreitar para dentro dos olhos e ter-me posto a ler textos cada vez mais pequenos, que eu ia lendo sem óculos. Aliás, os textos não eram grande coisa. E, se os olhos me arderem, que lhes ponha um lubrificante. Imaginei que este era um recurso retórico desnecessário, que talvez ela não tivesse jeito para a ficção, nem a científica nem a outra. Mas nunca se sabe aquilo que vai na alma de uma pessoa que passa a vida a espreitar para dentro dos olhos dos outros.
domingo, 13 de julho de 2025
Ociosidades dominicais
Um domingo de Verão. Na banalidade de uma constatação esconde-se um mistério, o enigmático segredo que dorme esquecido nessa conjugação entre um dia da semana e uma estação do ano. Alguém dirá: Mistério? Trata-se antes de uma banalidade, pois todos os dias de qualquer semana estão conjugados com uma estação do ano. São convenções e os homens persistem em cultuar como verdades eternas aquilo que convencionaram. Aqui, aquiesço. Sim trata-se de uma banalidade. No entanto, acrescento, onde abunda a banalidade, superabunda o mistério, para fazer um pastiche retórico de uma conhecida frase de Paulo de Tarso. Recorde-se a ideia de banalidade do mal trazida por Hannah Arendt. Na mediocridade da vida quotidiana, por rotina e hábito, sem furor ou exaltação, o mal era metodicamente praticado. Contudo, essa banalidade de funcionário rotineiro na prática do mal não elimina – pelo contrário, acentua – o mistério do mal. Também a banalidade das convenções e das práticas quotidianas em vez de eliminarem o mistério que se esconde atrás delas, o acentua. Por isso, também na conjugação deste domingo com este Verão haverá um mistério. O facto de não sabermos qual, não invalida a sua existência. Esta ideia parece provir da pura ociosidade. E é verdade, só o ócio permite à mente desligar-se dos afazeres quotidianos e das preocupações com a necessidade e fornece o espaço para a especulação. Todos os mistérios têm a raiz naquele que é o mais radical de todos: porque existe o ser e não o nada. As religiões – pelo menos, as monoteístas – deram uma solução – Deus criou o ser a partir do nada – que não soluciona nada, pois a questão da existência de um Deus é tão ou mais misteriosa do que a existência do ser. Os mistérios que a banalidade esconde são emanações desse mistério último e fundamental, que contamina tudo o que existe, inclusiva a minha disposição para escrever este tipo de coisas em vez de estar a olhar o mar, contando os veleiros que passam.
sábado, 12 de julho de 2025
Exageros
No final da década de quarenta do século passado, Pierre Schaeffer traz para o campo musical as sonoridades do quotidiano e a manipulação de sons. A essa música deu-lhe o nome de música concreta em oposição à música erudita tradicional. Os sons concretos do mundo em oposição às abstracções sonoras a que se dava e dá o nome de música. Este é apenas um exemplo, no âmbitos das artes, em que foi possível rasgar os horizontes e pôr em causa a tradição. Podemos crer que o público e mesmo os especialistas terão ficado perplexos, pois o não musical era apresentado como musical, o não artístico era dado como artístico. Este episódio é, assim, mais um de um longo conflito entre o artista e o público. O gosto do público é sentido sempre como desadequado e aquilo que o artista procura está para além daquilo que agrada ao público, mesmo a um público educado. Se recuarmos a Kant, o juízo estético parte de uma experiência singular e eleva-se, através da reflexão, a uma comunidade de gosto, mesmo que apenas ideal. Ora, o que a arte do século XX pretende é quebrar esse laço entre a experiência singular e o gosto comunitário. Cada experiência da obra de arte deve permanecer na sua radical singularidade e, por isso, na sua incomunicabilidade. A arte mostrou-se, desse modo, como uma inimiga visceral do senso comum, ainda que ilustrado. Cada obra de arte é, desse modo, uma granada lançada sobre o público, pois este, com o seu gosto comum, é o inimigo da arte. Pode ser que esteja a exagerar. Este narrador, por vezes, é dado à hipérbole. Um narrador hiperbólico. Mas a hipérbole, como a caricatura, exagera para mostrar o que é decisivo e está escondido.
sexta-feira, 11 de julho de 2025
Paixão pela verdade
Os dias não estão muito saudáveis. Não, não me refiro à volubilidade de S. Pedro, mas ao conjunto de ideias absurdas que parecem ter invadido o mundo e que se aninham com surpreendente facilidade nas mentes humanas. Quanto mais absurdas são essas ideias, maiores são as legiões de adeptos que arrastam. É muito provável que Tertuliano nunca tenha dito ou escrito “creio porque é absurdo”; contudo, a máxima ilustra bem o mecanismo de formação de crenças na espécie a que pertenço. O problema dessas crenças não é existirem, mas o facto de elas moverem os homens, gerando ondas de fanatismo que se impõem — não sem violência — aos outros. Talvez o problema não seja tão antigo como se poderá pensar: Jan Assmann coloca-o em Moisés, naquilo a que chama a distinção mosaica. Moisés, ao propor a existência de um único Deus, o Deus verdadeiro, inaugurou uma nova maneira de pensar. Até aí, cada povo tinha os seus deuses e prestava-lhes culto conforme entendia. É a associação entre divindade única e verdade que abre o caminho não apenas para a imposição de uma crença — verdadeira, justificar-se-á — e a perseguição daqueles que não partilham dessa opinião. A partir do momento que uma crença se proclama como a única verdadeira, ela vai contaminar todas as outras, que passam a querer ser únicas e verdadeiras. Ora, uma das paixões mais funestas é a paixão pela verdade: as pessoas dispõem-se a morrer por ela, mas, acima de tudo, a matar em seu nome. E qualquer coisa absurda pode ser tomada por verdade. É esta proliferação de apaixonados pela verdade que tornam os dias de hoje pouco saudáveis.
quinta-feira, 10 de julho de 2025
Cuidado com o futuro
Um acaso levou-me à descoberta de uma incongruência, ou de um anacronismo, se se preferir. Numa obra do filósofo italiano Giorgio Agamben, encontro uma referência a um S. Frutuoso de Braga. Fui pesquisar quem era e, nessa procura, encontro a referência de ter sido antecedido, no arcebispado de Braga, por Potâmio. É neste que está o problema. É dito ser um religioso português, bispo de Braga. Ora, Potâmio — assim como Frutuoso — viveu no século VII, altura em que Portugal não existia, nem ninguém pensava no assunto. Podia acontecer que existissem portugueses antes de existir Portugal, mas não é o caso. Primeiro existiu Portugal e, depois, vieram os portugueses. Potâmio seria um visigodo e, por certo, se lhe dissessem que era português, nem perceberia o que estavam a dizer. As fidelidades que temos são com o presente e com o passado. Se alguma fidelidade temos com o futuro, é o desejo de continuidade daquilo que amamos. Potâmio, caso fosse interrogado sobre o que desejaria para os dias de hoje, catorze séculos depois daquele em que viveu, diria que esperava que o reino visigodo continuasse vivo e próspero. Não quereria, por certo, ser despojado da sua identidade. Isto é um aviso para o futuro. Se, daqui a catorze séculos, existir neste sítio uma outra identidade política, eu — anónimo narrador desprovido de narrativa — quero continuar a ser português e não ser tido por uma outra coisa qualquer cuja natureza desconheço. Preservemo-nos do futuro.
quarta-feira, 9 de julho de 2025
Juízes e julgamentos
O corpo é um cruel juiz. Estava a reler textos escritos há muito e adormeci. Sobre eles, ficou um julgamento que não devo ignorar. Poderia argumentar que a condenação deve recair sobre o julgador, segundo a máxima popular: o bom julgador a si se julga. Isso, porém, seria tergiversar e cair numa fantasia infantil. O melhor será esquecer aqueles textos. Apagá-los. Outrora, os textos rasgavam-se ou queimavam-se, caso os autores fossem espíritos mais fogosos. Hoje, em aparência, tudo é mais higiénico. Não há papel ou cinza para limpar. Coisas que deveriam ser limpas são expressões como : uma brilhante auto-análise de um dos maiores pensadores do século XX. Nem me refiro à adjectivação da auto-análise. Com facilidade se atribuem epítetos e se proclamam grandezas. A pergunta, porém, que o leitor deve fazer é a seguinte: O tempo estará de acordo com essa classificação? Cronos é um juiz mais cruel do que o meu corpo. Aquilo a que uma época atribui a coroa de louros, o tempo, na sua desfaçatez, pode levar para a caverna escura do esquecimento. O mais sensato seria deixar a adjectivação de lado. Contudo, adjectivar é bem mais fácil do que descrever. Quando se diz que é um dos maiores pensadores, não se está a dizer rigorosamente nada. Alguém, vindo de outro planeta, poderia perguntar: Era dos mais altos? Quanto media? A resposta seria decepcionante. Se, porém, se desse uma explicação breve sobre o que pensou, isso seria mais adequado, embora tivesse o defeito de não tratar o leitor como um idiota.
terça-feira, 8 de julho de 2025
Memórias
Por aqui está um excepcional dia de praia, o que, para mim, não é, de todo, uma boa notícia. Como sou dado à hipérbole, estou a exagerar. O dia está bom para fazer praia, mas isso não constitui, para mim, uma tão má notícia quanto quero fazer crer. Aliás, fui-lhe fazer uma visita. As minhas netas disseram logo que era um acontecimento: nunca me tinham visto na praia. Fiquei perplexo. Eu, que ali as levei tantas vezes, que ali brinquei com elas, e disso não ficou um vestígio na memória. Não se lembrava de me ver perto do mar, disse-me a mais nova. Ainda olhei para a mais velha, mas esta corroborou a irmã. Não sei o que fazer com esta informação. Talvez o melhor seja não fazer nada e criar uma sólida narrativa de que nunca fui com elas à praia. Será uma narrativa falsa, mas terá a aparência de verdadeira, e daí vir-lhe-á a solidez. Lembrar-se-ão do avô como aquele que nunca foi à praia com elas. Em contrapartida, não se esquecerão de que as levava, nesta altura do ano, a concertos de piano. Será justo. Não se pode sobrecarregar a memória das novas gerações. E não somos nós que escolhemos as memórias que ficarão de nós, caso fiquem algumas. Os poderes humanos são parcos e de grande fragilidade, ao contrário do desejo, que é infinito. Não tarda, terei de as ir buscar.
segunda-feira, 7 de julho de 2025
Louvor da trivialidade
A trivialidade é um disfarce daquilo que não é trivial, cuja luz é de tal modo intensa que não a suportaríamos. Cultivar a trivialidade é uma estratégia de sobrevivência, pois nenhum mortal poderia estar continuamente a confrontar-se com aquilo que causa espanto. Os antigos Gregos fizeram dele – do espanto – o início da Filosofia. Implicaria uma atitude radical de corte com o que parece óbvio, mas, mesmo aí, há um mecanismo de defesa. A Filosofia, ao furtar-se ao óbvio quotidiano, acaba por instituir uma obviedade mais complexa, mais elaborada, mas que acaba por ter o efeito de dissolver o espanto. Nem o corpo nem o espírito humanos suportariam estar, a cada instante, a confrontar as coisas óbvias e triviais, pois é nesta modalidade de existência – a obviedade e a trivialidade – que a vida é possível. Hábitos e rotinas fecham-nos os olhos para o excesso que toda a realidade comporta em si mesma. Isso, porém, é o preço a pagar para estarmos vivos. Isto tem uma consequência interessante: a vida implica sempre um grau de alienação, de estranhamento a si mesmo, pois aquilo que somos é sempre excessivo para aquilo que suportamos. Alienarmo-nos é uma estratégia de sobrevivência. Quem suportaria ver-se como realmente é? A educação de um ser humano é um processo de contínua trivialização de si, para que o excesso de luz e de trevas que há em cada um não o arraste para fora da vida.
domingo, 6 de julho de 2025
Vazio
Referindo-se à teoria da História de Tolstói, Isaiah Berlin, no início do capítulo IV de O Ouriço e a Raposa, escreve: As teorias raramente nascem do vazio. Fiquei longos minutos a olhar para a frase. O meu problema não era o seu sentido, mas as possibilidades que abre quando parece fechá-las. A frase de Berlin diz duas coisas: uma, a que está explícita – a maioria das teorias não nasce do vazio – contudo, diz também que algumas teorias, embora raras, nascem do vazio. Como é possível tirar alguma coisa de onde não há nada? A resposta conhecida pertence ao campo da teologia e da religião: só Deus pode tirar alguma coisa do nada. Foi assim que criou o mundo – do nada tirou o ser. Isto, porém, é matéria de fé e não de análise racional. Nenhuma teoria pode ser extraída do vazio, pois ela, mal se formule, usa palavras, e estas estão longe de serem coisas vazias. Se há coisas cheias – grávidas de uma prole incomensurável – essas coisas são as palavras. Veja-se a quantidade de coisas que existe numa palavra como “casa”. Mais do que isso: não seria possível tirar do vazio uma teoria sobre casas, pois a própria palavra é uma teoria cheia de decisões epistemológicas. É essa teoria que permite excluir na referência de “casa” os garfos, os copos, os planetas, as pulgas, por exemplo. Nenhuma teoria pode ser tirada do vazio, a não ser que Deus se tenha tornado filósofo e decida criar uma teoria a partir do nada. Ora, se a discussão sobre a existência de um Deus é um beco sem saída, menos saída haveria para discutir se, caso Deus existisse, ele poderia ser filósofo. Pode-se pensar que, por aqui, se formulam teorias que, não vindo do vazio, são elas próprias vazias. Sim, é um facto que este narrador tenta criar pequenas teorias vazias. É um objectivo existencial. O problema é que falha sempre: elas contêm sempre qualquer coisa, ainda que errada. Acho que dormi mal. Acordei de um sonho estapafúrdio e fiquei com estes pensamentos, ainda por cima açulados por um vento que não me convidou a fazer a caminhada matinal.
sábado, 5 de julho de 2025
Bússola
Umas vezes estou em conflito aberto com o calendário; outras, num processo de desconhecimento radical. O primeiro caso acontece quando penso que se está num dia e, afinal, se está noutro; o segundo ocorre quando não faço a mínima ideia em que dia da semana se está. É este o caso de hoje. Faltam-me as referências. Aqui se condensa a diferença entre o erro e o desconhecimento: no primeiro caso, existe uma crença que se pensa verdadeira, mas que é falsa; no segundo, não há qualquer crença – apenas um vazio. Em que dia estamos?, pergunto-me, mas não consigo responder. Por norma, as pessoas preferem ter crenças falsas a não terem nenhuma: uma crença, mesmo errada, é uma bússola; a pessoa pensa que está a caminhar para Norte, mas dirige-se para Sul. Apesar disso, há uma consolação: caminha-se para algum lado. Eu prefiro não ter qualquer crença a ter uma errada. Quando não se tem uma crença, olha-se para a bússola e não se percebe que objecto é aquele. Em vez de me pôr a caminhar, fico sentado a pensar em coisas abstrusas ou a contemplar a minha ignorância. É neste momento que atinjo a sabedoria: a douta ignorância. Contudo, uma preferência não significa que seja isso que se faça. A maior parte das vezes ando de bússola na mão, sem a saber ler, pensando que vou a caminho do Oriente, enquanto me dirijo para Ocidente – esse lugar onde o Sol se põe, a luz se apaga e tudo acaba.