segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Estratagemas da natureza

A neta mais nova esteve cá todo este fim-de-semana. Veio em busca de apoio da avó em todas aquelas disciplinas do nono ano que detesta. Uma agenda de trabalho rigorosa, mas com espaços para respiração. Os seus quase quinze anos encheram a casa. Agora, voltou para Lisboa; o dia anoiteceu rapidamente. Os netos são uma espécie de segunda luz. Haverá nesta relação entre avós e netos um estratagema da natureza. Oferece aos mais velhos uma esperança para o tempo que lhes resta. Uma promessa de que a vida continua, não a pessoal, mas a de alguma coisa inexprimível por palavras, mas que se sente no amor entre gerações, nos olhares de expectativa, nos projectos que sendo dos netos, ainda são, por instantes, os dos avós. Agora, vou procurar um jogo de Xadrez a sério. Para o meu neto, claro. Para o ensinar a jogar. O Xadrez é um jogo militar, mas também a vida é milícia que exige um pensamento estratégico claro. O peão avança duas casas e as brancas preparam-se para ocupar o centro, apesar de o negrume da noite ter triunfado sobre a luz anémica do dia.

domingo, 7 de dezembro de 2025

Sombras dominicais

Um domingo de sombras. De manhã, fui caminhar. Na rua onde costuma haver gatos ao sol, não encontrei sequer um. Não havia sol. Pensei: os gatos são animais meticulosos. Se não há sol, não desperdiçam energia vindo para o espaço publico. Se há, ocupam sempre os mesmo lugares. A ausência dos animais foi compensada pela multidão de folhas mortas a ocupar, como um exército invasor, os passeios. Com a humidade, o processo de decomposição acelera-se e o  risco de queda dos transeuntes aumenta exponencialmente, ainda por cima em passeios calcetados, uma fixação dos autarcas e uma ameaça contínua para os cidadãos. Seja a humidade do tempo frio, seja o polimento das pedras de calcário no tempo quente, a queda é sempre uma possibilidade real. Contudo, que importância podem ter meia dúzia de quedas perante o olhar embevecido de um autarca? Sempre que posso, escolho o alcatrão, mas são poucas as ruas em que isso é possível. Enquanto caminhava, ia ouvindo o Quator pour la Fin du Temps, de Olivier Messiaen. O compositor tomou por inspiração um versículo de S. João: Não haverá mais tempo. Ora a música distribui-se pelo tempo, pôr fim ao tempo é também pôr fim à música. Talvez esta seja uma reminiscência da eternidade, mas uma música eterna é uma contradição. Aquilo de que a música é uma cópia, para falar à maneira de Platão, nunca, neste mundo, o saberemos. E nesta ignorância, uma pessoa caminha, observa os gatos ou a sua ausência, as folhas caídas, com a música em fundo, como uma promessa de eternidade num acto da mais prosaica temporalidade. As sombras ainda não desapareceram deste domingo, nem da minha mente, nem daquilo que escrevo. Hélas!

sábado, 6 de dezembro de 2025

Não ter silêncio

Maurice Maeterlink escreveu que há indivíduos que não têm silêncio, e que matam o silêncio à sua volta. Note-se que esses indivíduos têm uma deficiência ontológica: não têm em si silêncio. Têm no seu ser uma deficiência irremediável. Falta-lhes o silêncio como a outros falta a visão, a audição ou a fala. E isso é uma calamidade para quem os rodeia. Como a patologia não é reconhecida, ninguém se preocupa com a cura ou a minimização do problema. E aquele que não tem silêncio em si, não pára de derramar o ruído onde quer que esteja. A única solução é o afastamento. Perante alguém que não tem silêncio, a melhor conduta é ir para longe. Nem sempre, porém, é possível. Acontece – e não tão poucas vezes quanto se pensa – que nos deparamos com uma irmandade destes doentes, a que é difícil fugir, pois ela funciona em onda e, ao mesmo tempo, em rede. Sentimo-nos afogados no ruído ou presos nas malhas da vozearia. É nessas horas infelizes que descobrimos a paciência como uma das mais valiosas virtudes.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Leitura e halterofilia

Não sei o que me perturba mais, se o ensaio da banda de rock da escola aqui ao lado ou o número de páginas do novo romance de Gonçalo M. Tavares, 912, segundo vi no Público. À primeira vista, o ensaio é mais invasivo, mas só se realiza à sexta-feira e dura relativamente pouco tempo, pois os músicos, um deles um rapaz da minha idade, os outros não conheço, não terão o fôlego que um dia tiveram. Acontece a todos. E o problema reside mesmo no fôlego, no que toca ao romance – O Fim dos Estados Unidos da América - Epopeia. Não o fôlego para enfrentar aquelas páginas todas, mas para segurar o livro nas mãos. Fui ver ao site da editora as características do livro. Queria saber se, por acaso, estava lá o peso. Fiquei admirado: estava mesmo. Uns módicos 1166 gramas; isto é, quase um quilo e duzentos gramas. Não posso com o livro, pensei. Ao fim de uns minutos de leitura vai-me doer a coluna – a partir de certa altura da vida, a coluna tem tendência a doer. Ainda pensei: Bem, talvez o livro seja bom para exercitar a musculatura dos braços – a partir de certa altura da vida, os músculos têm tendência a definhar. Afastei, porém, o pensamento e a futura musculação. Para que me servem os dispositivos de leitura electrónica que pululam nesta casa, perguntei-me. Lá fui pesquisar nas livrarias do Kindle e do Kobo. A editora, porém, preocupa-se imenso com a musculatura dos braços dos leitores e não abre os seus livros (haverá uma ou outra excepção) a ciberleitores, como seria o meu caso. Parece que o ensaio do conjunto já acabou, também o dia definha. O problema da leitura do romance é que está por resolver. Se decidir comprar o livro, inscrevo-me também no ginásio que há ao fundo da avenida e faço musculação durante um mês antes de começar a ler o romance. É possível que no fim da leitura, não apenas tenha uma musculatura de braços digna de um halterofilista, como os próprios Estados Unidas da América tenha acabado e dado lugar a outros países. Nunca se sabe o que pode acontecer quando se começa a fazer musculatura para ler um livro.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Teatralidades

Mais logo, terei de me deslocar à capital do distrito aqui ao lado, o que fica para Norte. Vou ao teatro, mas não faço ideia do que vou ver. Queres ir ao teatro? Respondi que sim, mas não sei se perguntei para ir ver o quê ou quem. Provavelmente, não. Daqui a pouco irei olhar para os bilhetes electrónicos e descobrir o que houver para descobrir sobre o assunto. Nisto há uma mistura de confiança em quem propõe e diminuto entusiasmo pela arte dramática. Há tempos cheguei à triste conclusão de que prefiro ler as peças a vê-las encenadas. Um encenação é sempre um exercício de limitação, uma fronteira que se traça à imaginação. A leitura tem a vantagem de deixar a livre imaginação fluir, tanto no cenário como nas personagens, seja no seu aspecto, na sua voz, no modo como se vestem. Tudo isso está em aberto e é o leitor que o fecha. Na representação, o número de coisas fechadas é grande, e o espaço para imaginação, continuando a existir, é diminuído de modo drástico. Aquele actor, aquela actriz, aquelas vozes, aquele cenário. São esses limites, porém, que tornam o teatro possível, pois este é representação e toda a representação é uma interpretação, a qual é sempre um traçar de limites. Talvez nesta inclinação para a leitura esteja um laivo de misantropia. Uma peça teatral implica a presença da humanidade na pessoa dos actores. No texto, apenas existem palavras combinadas. Quem as produziu, não é visível. Seja como for, sempre posso dar a justificação teórica de que não é misantropia que me move na indiferença pelo teatro, mas a limitação da imaginação que toda a representação impõe. Corro menos riscos, num mundo em que é fácil correr riscos por se ter opinião pouco humanitária sobre isto ou sobre aquilo. Seja como for, não posso dizer que não sou um humanista. Sou, mas um pouco misantropo. Aliás, é plausível que os maiores humanistas sejam, ao mesmo tempo, os maiores misantropos.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Pretéritos imperfeitos

É possível que já tenha escrito aqui sobre o pretérito imperfeito. Também é possível que não, que nunca o tenha feito. Não, temos de ser exactos, pois a verdade também reside na casa da exactidão: no outro dia, escrevi sobre ele. Uma pesquisa no word revelou-me que foi há pouco tempo. Volto a ele porque é assim que me sinto perante este dia, cinzento e frio. Sou uma imperfeição pretérita. Não haja equívocos. Não é a imperfeição que é coisa do passado, sou eu. A imperfeição continua presente, persiste, vence os obstáculos que o desejo de perfeição – se eu tivesse tal desejo – lhe possa pôr no caminho. Sou uma acumulação de pretéritos. Aqueles que me são mais próprios são os pretéritos imperfeitos do conjuntivo. Se eu soubesse escrever, seria escritor. A imperfeição nasce-me de as minhas preposições condicionais nunca se transformarem em categóricas. Falta-me o talento para preencher as condições, logo o meu destino é a imperfeição de cada dia. Sim, é verdade, eu podia falar de outra coisa, caso não me faltasse imaginação e me ocorresse alguma.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Frugalidade imoral

Enquanto contemplava a chuva, dei por mim a pensar sobre o Abade de Mably (1709-1785). Não teria grande vocação eclesiástica; interessava-o, fundamentalmente, a filosofia política e a economia. Pode ser contado entre os precursores da vaga de igualitarismo que explodiu no século XIX, com repercussões ainda no XX. Para além do igualitarismo, tinha opiniões ao arrepio da cosmovisão em que vivemos. Por exemplo, defendia a ideia de que o luxo e o comércio excessivo corrompem. Pior ainda: o Estado deve promover a frugalidade. A justa medida – para evitar o excesso e a corrupção dos costumes – e a frugalidade são ideias moralmente valiosas, mas que os nossos dias não suportam. Se todos formos frugais e evitarmos o excesso de consumo, a economia mundial entrará em colapso, com repercussões nos rendimentos da generalidade dos seres humanos. No mundo de hoje, será pouco caridoso ser frugal. A sobriedade e a moderação podem ser boas para o indivíduo, mas não passarão de um exercício egoísta. Um egoísmo que recusa, em nome da moral, oferecer ao seu ego todos os objectos dos  seus desejos possíveis e mesmo alguns dos impossíveis. Talvez exista um problema qualquer quando aquilo que é moralmente saudável se torna um problema para os outros. A moralidade, que nasceu da necessidade de respeito pelo outro, tornou-se uma imoralidade. Também a chuva que há pouco caiu foi frugal. As nuvens recusaram-se a verter mais água, retiraram-se e deixaram o sol brilhar. Uma conduta imoral, pois sempre precisamos de água para encher as barragens e podermos consumi-la segundo o excesso que a nossa virtude contemporânea exige.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Dia do desacastelhanamento

Esta manhã, ao fazer a caminhada diária, estranhei, sendo segunda-feira, o ar de domingo que o dia me mostrava. Poucos carros a circular e ainda menos gente pelas ruas. Uma caminhada solitária, quase num deserto povoado de fantasmas. Depois, ao ver alguns gatos a apanhar sol, sem preocupação com o modo de ganhar a vida, assaltou-me a ideia de que estivessem em dia feriado. Afinal, não eram eles, mas nós, portugueses, que celebramos mais um aniversário de nos termos visto livres de um rei espanhol, de uma corte espanhola, de uma monarquia que, apesar de se dizer o contrário, era, efectivamente, espanhola. Se há país de que gosto, é de Espanha. Contudo, nem por um minuto gostava de ser espanhol ou, pior, estar sob o domínio dos senhoritos de Castela e Leão. Também nada tenho contra os castelhanos, mas não quero ser castelhano. Por isso, acho bem que o dia 1 de Dezembro seja feriado e nos possamos congratular com a decisão do Duque de Bragança aceitar a coroa das mãos dos insurrectos e apagar as leviandades de um rei que julgava estar numa época, mas estava noutra. O que lhe foi fatal lá para as terras da moirama. A ele e a nós, que tivemos de acastelhanar durante sessenta longos anos. Merecemos o feriado, os humanos portugueses porque se libertaram dos castelhanos; os gatos porque não sabem viver sem feriados, e um mundo sem gatos, mesmo castelhanos ou leoneses, o que não era o caso, como me apercebi ao falar com eles, não seria a mesma coisa.

domingo, 30 de novembro de 2025

Novembro

Despede-te Novembro, o tempo que te foi dado para seres marco do tempo está a acabar. Não voltarás. O próximo Novembro será outro, talvez tão efémero quanto tu. Esforçaste-te. Dias de sol, de chuva, de sombra, de frio. Até ontem me ofereceste uma noite de nevoeiro. Esqueceste-te, porém, de enviar com ele D. Sebastião. Eu sei que o Rei virá numa manhã e ontem era de noite quanto te enevoeiraste, mas podias ter feito uma surpresa. Não mais serias esquecido, pelo menos por aqui, enquanto os daqui fossem descendentes daquilo que são hoje. Era, porém, pedir-te mais do que poderias dar. Não sei se devo avaliar-te como agora se avaliam os serviços e as pessoas que os prestam. Numa escala de zero a dez – em que zero é não em absoluto e dez é um sim absoluto – recomendaria os serviços deste mês de Novembro a familiares ou amigos? Depois de te atribuir um número, para aferir a intensidade da minha recomendação, teria ainda a possibilidade de fornecer razões para justificar a minha avaliação. Poupo-te, porém, à humilhação do processo. Mesmo que voltasses para o ano, eu não te exporia aos humores do CEO do calendário, um inútil sem alma, que julga os meses pelas médias obtidas em inquéritos mais estrábicos que o mais estrábico dos homens. Despede-te da Terra, do tempo e do convívio, nem sempre agradável, com os humanos. Espera-te a eternidade, onde dormirás esquecido destes 30 dias, em que o mundo não melhorou um avo.

sábado, 29 de novembro de 2025

Informação

Quem me visse pensaria que estou decadente. Sentado diante do computador, cabeça inclinada sobre o peito, dormindo, como se o dia tivesse sido cansativo. Não foi, mas existe um conflito, cada vez mais agudo, entre um almoço tardio e estar sentado e desperto a fazer seja o que for. Contudo, a experiência, apesar de humilhante, não me foi inútil. Descobri que a aplicação que no relógio me controla e avalia o sono não deu por nada. Estava eu a dormir e ela devia estar a fazer a mesma coisa, em vez de, como um anjo da guarda, estar atenta e cuidar de colher os dados para me manter ao corrente do que se passa. Fiquei sem informação sobre, nesta sesta involuntária, quais as percentagens de sono profundo, leve e REM. Uma informação que, apesar de não saber o que fazer com ela, nem para o que serve, me seria muito útil, pois a utilidade da informação reside nela própria e não naquilo que se poderá obter com ela. Somos homens informados e, sendo essa a nossa condição, todos os dados não são demais para alimentarmos essa nossa natureza.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Talento

Descobri há pouco que era sexta-feira. Ainda não tinha tido necessidade de me sintonizar com o devir da semana. Tanto me fazia que fosse sexta, terça ou sábado. Quando o descobri também não precisava da informação. Foi um acaso. Ao tomar consciência do dia não me aconteceu nada de extraordinário. Fiz o que estava para fazer e, agora, não sei o que fazer com essa informação; ou para que serve. Claro que me dá um tema para esta narrativa, mas podia colher o tema noutro lugar qualquer. Não faltam por aí coisas risíveis para escrever. E a mim não me falta talento para as escolher. Cada um tem os talentos que lhe foram dados. O meu é o de escrever, nuns dias, sobre nada, noutros derramo sobre coisa nenhuma, em alguns, como o de hoje, sobre coisas ridículas. É nestes que as prosas têm mais conteúdo, apesar da forma permanecer informe, como é hábito. E o hábito é uma segunda natureza.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Sorte

Esta coisa de juntar palavras e delas nascerem frases, textos, discursos… Mostra que a sorte não está desligada da existência. É espantoso como ela opera sobre a linguagem humana. Estamos convencidos – como em tudo, a espécie humana transborda de convicções – de que compomos todos esses produtos da nossa linguagem. Orgulhamo-nos deles e até inventámos prémios para aqueles que apresentam as combinações de palavras mais originais. Ora, navegamos num equívoco. Não somos nós que compomos seja o que for. É a sorte que ordena os sons que saem das nossas bocas e os sinais que saltam dos nossos dedos. É a sorte que compõem os belos discursos e os grandes poemas ou romances. Mesmo os tratados de Filosofia ou as narrativas dos historiadores nascem dessa sorte. Pomo-nos a falar ou a escrever e as palavras começam a sair de nós, sem que tenhamos mãos nelas. Não são nossas. Acontecem-nos. Talvez por orgulho ou por medo de confessar que nada do que dizemos é nosso, convencemo-nos que somos autores. Não somos. As palavras borbulham como numa tômbola e saem, formando configurações que, por pura sorte, parecem fazer sentido. Não fazem. Somos nós que lho atribuímos para não parecermos que estamos loucos. Mas estamos.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Convenções

Os dias continuam a encurtar. Os dias não encurtam, têm sempre 24 horas. Essa é apenas uma razão para eles não se tornarem mais pequenos. Outra, talvez mais séria, seja o simples facto de não existirem dias. Estes são uma convenção engenhosa, baseada, por certo, em observações astronómicas aturadas, mas uma convenção não é uma coisa, mas um arranjo de coisas. Não há dias para uma rocha, uma couve, um protozoário ou uma girafa. Esses seres não têm convenções, ou, se as têm, não as conhecemos. Ao contrário de todos os outros seres que conhecemos, nós temos uma inclinação insuperável para gerar convenções. Na Europa, por exemplo, geram-se, nos dias de hoje, mais convenções do que filhos. A razão disso não é difícil de perceber. Filhos têm de ser educados, o que está longe de ser uma tarefa fácil, e para a qual não há pai que esteja preparado antes de chegar a avô. Quanto às convenções, por difíceis que sejam os partos, não há necessidade de as educar. Se asa avaliamos como desagradáveis, rasgamo-las e fazemos outras. Coisa que não se pode fazer com os filhos. A convenção que tem o nome de dia parece ser do agrado geral, talvez porque tenha utilidade. Por isso, não a rasgámos, ainda. O dia tem uma ontologia convencional. O que não tem neste momento é luz, pois o crepúsculo já quase soçobrou no seio firme da noite.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Militâncias e filosofias

Há coisas que não devia fazer, mas continuo a fazê-las. Por exemplo, comprar um livro – um ensaio de um filósofo contemporâneo – que, à partida, tem tudo para me desgostar. Foi o que aconteceu. Comprei-o e, sempre que o abro para ler isto ou aquilo, a única coisa que encontro é o meu desgosto por aquela prosa enfática, semeada de referências, cheia de entusiasmos. Talvez o autor, quando escreveu a obra, tivesse suspendido a sua condição de filósofo. Ou talvez nunca a tenha tido, mantendo apenas uma aparência cultivada de modo militante. Julguei, por instantes, que entre a Filosofia e a militância haveria um conflito irreconciliável. Depois, pensando melhor, descobri que, desde a origem, os filósofos tiveram uma certa inclinação para essa militância. Platão, com as suas estapafúrdias tentativas de converter tiranos em políticos racionais ou com a fundação da Academia. Também Aristóteles não fugiu à tentação, ao aceitar o cargo de educador de Alexandre. Estes exemplos são mais do que factos, são modelos. Por isso, é natural que haja filósofos – ou quem ostente essa designação – que se sintam tentados a copiá-los. Apesar desta reconsideração sobre a relação entre Filosofia e acção política, não consigo deixar de sentir desgosto – por vezes, confesso, vergonha – por aquela prosa, que seria excelente caso não fosse produzida.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Factos

A pequena luz deste dia apagou-se. Sobre ela veio, mal despontou, uma névoa de sombra, que não mais a largou, até que o decreto do tempo trouxe com a noite a firme couraça da escuridão. Isto devia bastar como aprendizagem da vida, pois ali, nessa luta entre luz e trevas, resume-se tudo o que é a vida. Não se trata de uma pequena alegoria, nem de uma analogia, tão pouco de uma metáfora, apenas de comunicação factual. O problema é se existem olhos para ver e ouvidos para escutar, mas isso é outro assunto, sobre o qual nada me ocorre para dizer. Deixemos a noite navegar no oceano tenebroso, até que encalhe no grande porto da aurora.

domingo, 23 de novembro de 2025

Da morte da literatura

Um autor com ideias não pouco estranhas para nós que vivemos no mundo que nos puseram à disposição, numa obra publicada em 1945, comunicou-nos que vivíamos no reino da quantidade. A mim, não, pois ainda não tinha nascido, e quando nasci não sabia fazer contas. Esta ideia do reino da quantidade saltitou na minha mente quando, nem sei bem a razão, me pus a pensar na quantidade de escritores existentes. Nem estou a falar da quantidade dos que escrevem livros, mas apenas daqueles cujos livros merecem ser lidos. Isto que parece uma vida exuberante, será uma espécie de morte da literatura. Esta não residirá no esgotamento das formas tradicionais ou na morte como instituição cultural da literatura. Esta está a morrer de overdose, da multiplicação dos talentos, da incessante produção de excelentes obras. Talvez no próximo século já não exista literatura, o que poderá ser um bom sinal, o sinal de que nesse deserto literário poderá vir a nascer uma Ilíada, uma Odisseia, um Dom Quixote, meia dúzia de obras e não mais do que isso, que os poucos leitores sagrarão no altar da leitura.

sábado, 22 de novembro de 2025

Caminhada

Fui caminhar de manhã. O frio era iluminado por uma luz vibrante e tudo parecia mais vivo, mesmo a natureza morta onde vivem os objectos. Numa das ruas por onde passei, havia gatos. Cismavam ao sol, silenciosos, imóveis, e nisso pareciam os velhos que, na minha infância, via parados, pensativos, sem dentes na boca ou palavras nos lábios. Tal como os gatos de hoje, eram mudos, temiam que as palavras lhes levassem o calor que o corpo recebia, como uma dádiva de um deus avaro. Depois, ao dobrar a esquina da rua, os gatos desapareceram do horizonte e eu esqueci esses anciãos agrilhoados na infância. Entreguei-me à luz solar, enquanto meditava nas coisas do mundo e aguardava o momento em que chegaria ao lugar de onde parti.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Imperfeição

Chegou a noite. Veio inclinada para terra, bojuda nas suas vestes negras, silenciosa na varanda do céu e, depois, cantante como um contágio de azul sobre as águas do mar. Podia falar de transfigurações nocturnas ou do ócio dos planetas que, num delíquio de gravidade, se fundem na sua estrela. Podia dizer os perigos que o tempo envia sobre a florescência íngreme da humanidade. Podia calar o vento que sopra do paraíso e nos empurra para o fim do tempo. A anáfora nunca deixa de trazer com ela uma cintilação estelar, mas o que resplandece, no fim de tudo, é a imperfeição do pretérito que, na verdade, nega as minhas possibilidades. Devia perder a candura de escrever textos destes, mas também o dever está maculado por essa imperfeição do pretérito, a mais terrível e a mais sublime. Num outro mundo possível, num daqueles em que os planetas não se fundem, como amantes tresloucados, nas suas estrelas, serei um gramático respeitável, que procura decifrar o mistério da imperfeição, seja ela pretérita, presente ou futura. Em todos os mundos possíveis onde existo, é ela, a imperfeição, o dom mais elevado que me foi doado.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Rock

O enorme romance – sempre são umas 770 páginas – do norueguês e putativo candidato a Nobel Karl Ove Knausgård, Os Lobos da Floresta da Eternidade, começa com o relato da audição de um álbum da banda de rock Status Quo. Conta que, aos doze anos, aquando do lançamento do disco, o ouviu sem parar, mas que, a partir daí, nunca mais o ouvira até ao dia em que começa a narrativa. Ouviu-o com um frémito de excitação. E mais uma vez pensei no meu desajustamento institucional com a minha geração. Nunca um disco de rock teve qualquer poder sobre mim. Ouvi alguns, claro, mas aquele mundo nunca foi o meu. Para dizer a verdade, nem sei se alguma vez soube que existia um grupo chamado Status Quo. Não se trata de uma preferência desde muito cedo pela música erudita. Não, esse gosto fui-o adquirindo mais tarde, numa descoberta progressiva e num exercício de auto-educação. Trata-se de outra coisa. Aquela música, a do rock, sempre a senti estranha à cultura de base onde nasci. A minha geração, talvez a primeira que, através dessa música, trocou a influência francesa pela norte-americana, a minha geração, dizia, banqueteou-se ali, recebeu daquele lugar uma orientação espiritual, digamos assim. Nunca compreendi. Devo ter perdido alguma coisa, mas agora é tarde, muito tarde para a procurar, quanto mais para a encontrar. E se a encontrasse, acho que não iria gostar do achado. A cada um os seus preconceitos.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Menoridade

Há dias comprei, numa pequena livraria ao lado de casa, dois livros. Há pouco, quis vê-los, mas não sabia onde estavam. O pior é que nem sequer fazia ideia de que livros eram. Tinham-se evaporado da memória, deixando apenas um leve traço do gesto de aquisição. Andei para um lado e para o outro e descobri um. Sim, aquele é um dos livros comprados. E o outro? Embora não saiba qual é, sei que esse outro é o que me interessa realmente, pois o que descobri só me interessa acidentalmente. Será um romance? Um livro de Filosofia? Não faço a menor ideia. Devia ser interditado de comprar livros. Aliás, devia ser interditado de muitas coisas e não me estou a referir a compras. Aqui, a velha costela iluminista, grita: onde está a tua autonomia, não sabes dirigir a tua vontade? Agora que estás velho, queres um tutor? Esqueceste que a Aufklärung é a saída do homem da menoridade de que ele próprio é culpado? Queres voltar à infância ou sentes falta da culpa? Encolhi os ombros e pensei qualquer coisa de não muito comunicável. Já não tenho idade para os dramas do século XVIII. Preocupa-me descobrir o livro que comprei – caso o tenha comprado – e que estou desejoso de ler, pelo menos enquanto não souber qual é.