A certa altura de uma obra de Edward Grant com o título Os Fundamentos da Ciência Moderna na Idade Média, o autor escreve: Tal como Buridan, Oresme apresentou vários argumentos a favor de uma Terra em rotação, mas são meramente persuasivos e não demonstrativos. Aqui está o drama em que as nossas sociedades vivem. As nossas crenças são sustentadas por argumentos persuasivos, não por demonstrativos. Estão fundadas na emoção ou em valores que não foram escrutinados na sua congruência, mas que persuadem o auditório. Muitas dessas crenças são, se observadas com rigor, completamente inverosímeis, mas não crer nelas seria de tal modo inquietante que acabam por se tornar convicções indiscutíveis. Ora, a partir do século XVII, os europeus – e o prolongamento da Europa noutros continentes – começaram uma viagem estranha. A partida foi dada por um senhor chamado René Descartes, que um dia tomou a decisão insólita de examinar as suas crenças para descobrir se alguma delas merecia o epíteto de verdadeira. Isso abriu uma brecha que, com o tempo, se foi aprofundando. De um lado, aqueles que procuram regular-se pela demonstração e, do outro, os que vivem ancorados na persuasão. Os tumultos que atingem, por estes dias, o mundo ocidental são uma emanação directa desta querela. Ora, o mais plausível é pensar que factos e demonstrações rigorosas sejam impotentes para enfrentar aqueles cujas crenças entram em conflito com os factos, com a lógica e com a demonstração. Esta meditação soturna está de acordo com o dia de Carnaval que nos calhou este ano: frio, cinzento, sombrio. Tão bisonho me encontrava que comecei a escrever o que escrevi. Poder-se-á, com razão, dizer que o fundamento deste escrito é a bisonhice de quem o escreveu. A questão, todavia, é saber se essa ligação pode ser demonstrada ou se não será, afinal, apenas uma crença nascida de um acto persuasivo, proveniente duma qualquer emoção que tomou conta dos dedos que caem, não sem vigor, sobre o teclado, como se fossem dotados de fé.
terça-feira, 4 de março de 2025
segunda-feira, 3 de março de 2025
Penas e tristezas
Esta é uma das mais penosas épocas do calendário. Refiro-me ao Carnaval. Não ao acontecimento em geral, mas ao caso particular de Portugal. Apesar dos foliões e das folionas, aquilo dá vontade de chorar. O melhor é não pensar nisso e, se as pessoas se divertem, há que não deitar um véu de tristeza sobre a efeméride. Teria sido mais interessante, muito mais, ter feito evoluir o tradicional Entrudo. Contudo, isso não nos permitiria pensar que é possível imitar o Rio de Janeiro, e nós gostamos muito de imitações. Falando em festejos carnavalescos, li há pouco que o nosso ídolo futebolístico não pode entrar no Irão, pois está condenado a levar 99 chicotadas por ter tido a desfaçatez de dar um beijo na face de uma artista praticamente paralisada. Foi um acto de simpatia e de solidariedade por uma pessoa naquele estado. Parece que isso é um crime terrível. Confesso que tenho tentado, mas ainda não consegui perceber a paranóia que as religiões – pelo menos, algumas delas – têm com o corpo e, em particular, com o sexo. A única explicação que encontro nada tem de religioso, mas estará mais próxima de uma coisa que não há fundamentalismo religioso que não abomine. Talvez essa paranóia seja uma vantagem competitiva no processo de adaptação da espécie ao ambiente- Portanto, uma explicação evolucionista. Não tenho informação, mas poderia enunciar um princípio: quanto mais paranóico se é em relação ao sexo, mais filhos se fazem. A repressão da sexualidade – ou de qualquer coisa que a lembre – é uma estratégia para que os espermatozóides oprimidos encontrem, com maior precisão, o caminho para o óvulo atribulado, para que a espécie se reproduza e não entre em extinção – o que talvez nem fosse má ideia. Onde a sexualidade não é severamente regulada, os espermatozóides andam à vontade, cultivam uma faceta liberal e evitam entrar para um óvulo devorador, o qual, diga-se, também estará mais interessado noutras coisas que não em ser fecundado por um elemento estranho. Não devia falar destas coisas, mas hoje o dia está triste, como o Carnaval ou aqueles que vêm num beijo na face um crime sexual ou coisa que o valha.
domingo, 2 de março de 2025
Um domingo exaltante
Atravessei a cidade – embora a designação de cidade seja, na verdade, um eufemismo destinado a inflar os orgulhos paroquiais, em especial daqueles que ocupam os poderes no município, sempre muito atreitos a estas coisas, não vão ser tomados por vilões, coisa que ninguém aprecia, especialmente aqueles que o são – atravessei a cidade, dizia, com o carro a rolar muito devagar. Não havia trânsito e, nos passeios, não via ninguém. Tudo recolhido em casa, não fosse o frio enregelar-lhes os corpos e petrificar-lhes o cérebro, o que é muito desagradável, pois exige que a pessoa, para descongelar, seja posta em banho-maria – uma perda de tempo. Fui a uma aldeia, aqui perto, comprar laranjas. Um hábito para animar o comércio local. A venda à beira da estrada pode parecer arcaica, mas tudo muda. A vendedora original foi substituída pela filha e já é possível pagar por transferência através do mbway, o que pode ser uma prova de que se vive no melhor dos mundos possíveis. Por um lado, um sabor à tradição; por outro, o fruto da inovação. O resultado é ficar com as mãos limpas, pois não se mexe em dinheiro – coisa que, como se sabe, suja as mãos, embora raramente manche as consciências. Isto tem uma explicação. Científica, claro. A consciência é revestida por uma película protectora que repele a sujidade. É preciso que a película esteja muito corrompida para a consciência se sentir enodoada e corrupta. Esta é a explicação científica. Não se pense, porém, que a película é fruto de um avanço tecnológico recente – não é. É mais antiga, muito mais, do que o hábito de vender e comprar laranjas à beira do caminho. Desviei-me do assunto, mas talvez não tivesse nenhum assunto. Compradas as laranjas, mas também batatas-doces, voltei para casa. Na cidade, as ruas continuavam vazias, a tarde continuava cinzenta e fria. Os domingos de província sempre foram exaltantes.
sábado, 1 de março de 2025
Por três vezes
Por três vezes, senti-me perturbado neste dia que inaugura o mês de Março. De madrugada, acordei dentro de um sonho, onde um certo acontecimento ocorrido há mais de quarenta anos se consumava e, ao mesmo tempo, não se consumava. A perturbação não provinha de nenhum dos pólos da situação paradoxal, mas do facto de estar dilacerado entre ambos. O que piorou as coisas ao acordar foi que essa situação nunca fora problemática, e restava-me dela uma recordação delida, embora agradável. Por estar desde ontem, às 11 horas da manhã, ligado a um aparelho para realizar um holter, senti-me na obrigação de registar a hora a que acordei e o estado de perturbação em que me descobri, referindo um pesadelo – embora o conceito seja excessivo. A meio da manhã, decido ir almoçar fora. Estamos na época do sável frito com açorda de ovas. Descubro que, da última vez que fiz a romaria em demanda deste pequeno santo graal, ainda não tinha ocorrido a pandemia. Um dos restaurantes a que ia então, numa aldeia sobre o Tejo, tinha fechado. O outro não me atendia o telefone para fazer a reserva. O mundo tinha mudado mais do que eu pensava. O facto de ter de substituir o certo pelo incerto perturbou-me, talvez porque ainda não estivesse refeito da perturbação inicial. A escolha mostrou-se um êxito, porém. Durante a refeição, fazem-me notar um casal ainda relativamente jovem. Desde que chegaram, ainda não tinham trocado uma palavra, cada um deles vampirizado pelo respectivo telemóvel. Comentei com uma citação de Borges: é um desses amores ingleses que começam por excluir a confidência e que muito cedo omitem o diálogo. Na verdade, Borges não falava de um caso amoroso, mas de uma amizade. Não usa a palavra amor, mas amizade. E esta, no conto, está completamente fora de qualquer contexto erótico. Quando quis situar a frase, não consegui recordar o conto onde ela surge. Depois de grandes esforços, descobri – e foi isso que me perturbou – que ela pertence a uma das narrativas de Borges que mais gosto e que mais vezes li: Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Consta que ontem, no último dia de Fevereiro, sete planetas do sistema solar estiveram todos alinhados. Todas estas perturbações sofridas relacionam-se com o passado. A conclusão a que cheguei pode parecer inusitada, mas não encontrei outra melhor: os planetas, ao desalinharem-se, estão a interferir na relação do meu presente com o meu passado. Ora não há coisa mais perturbante do que essa interferência, pois o que será de mim, se o meu passado se torna incerto?
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025
Caos e gravitas geométrica
Hoje é o último dia de Fevereiro, mas foi já um dia de Março, caso se leve em consideração a sabedoria coagulada em ditados, máximas e provérbios ao gosto popular. Na realidade, do dia de hoje poder-se-á dizer: Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de Verão. Falo disto porque fiz a experiência. Saí de manhã, estava frio e chovia. Depois de almoço, tudo mudou. Pouco depois das quatro da tarde, fui fazer a caminhada do dia e estava sol, uma temperatura agradável, anunciadora da Primavera a vir lá mais para a frente. Seja como for, a situação irrita-me. Sofro de um espírito geométrico e detesto ver o mundo desarrumado. Quando falo de mundo, refiro-me, no caso, às divisões do tempo. Choca com a geometria que me habita a alma esta sobreposição de estações. Em linguagem poética, posso dizer que abomina o encavalgamento: que cada verso comece e termine em si mesmo e não estenda a perna para verso do andar de baixo. Quem diz verso, diz estação ou mês do ano. Que o Inverno comece no primeiro dia de Inverno e acabe no último. Que Março não se antecipe e abalroe Fevereiro. Haja ordem. É evidente que estas disfunções, estes tumultos antigeométricos, me ferem o espírito, porque o meu espírito e a minha alma, apesar de geométricos – e muito século XVII – são caóticos. Veja-se, como exemplo, estes textos: começo a escrever sobre uma coisa, logo salto para outra, numa indisciplina que faria horror à gravitas geométrica de um Espinosa ou ao animus matemático de um Descartes. A minha revolta é um caso de compensação, que é o que acontece com todos aqueles que se revoltam, com grande excitação, sobre um qualquer estado do mundo. Fora eu mais geométrico, e aceitaria de bom grado o caos que resulta quando se escande o ano à procura de uma métrica regular e só se encontram versos livres.
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025
Não incomodar o tempo
A certa altura de um poema do ciclo Cinco Canções Lacunares, Herberto Helder escreve: Não faças com que esse mês te procure. Leio o verso e não consigo decidir-me se estou perante um conselho de prudência ou um imperativo. A equivocidade poética está longe de se reduzir ao campo semântico, derrama-se também sobre aquilo que John Searle denominou actos ilocutórios, tornando a intenção presente no verso – e não no autor, que só ele saberia, se o soubesse – completamente ambígua. Se o verso é um conselho prudencial, posso ainda admitir que, tomando as precauções necessárias, conseguirei fazer com que esse mês – que não sei qual é – me procure, negociando a hora da sua chegada. Contudo, se o verso for um imperativo – e, neste caso, um imperativo categórico –, então devo fazer possíveis e impossíveis para que o mês desconhecido não venha no meu encalço. Não porque ele represente uma ameaça para mim, embora o seja, mas porque não se deve interferir na sua existência: temos o dever de resguardar a sua autonomia. Ora, se imaginarmos que mês é uma metonímia, onde a parte está no lugar do todo, percebemos que está em jogo a nossa relação com o tempo. Conselho prudencial ou imperativo categórico, o verso adverte-nos – sem êxito, diga-se – que não devemos incomodar o tempo. Ele vingar-se-á. Isso sabia-o, há muito, o velho Anaximandro, quando escreveu: De onde as coisas têm a sua origem, para aí também devem perecer, segundo a necessidade; pois pagam castigo e reparação umas às outras pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025
Da repetição
Posso dividir em dois grupos os livros que compro repetidos. Uns compro-os por acaso e contra a minha vontade. Funcionasse a memória, e não os compraria. Por vezes, sou vítima de uma alteração gráfica: compro-o e descubro, depois, que já o tinha. Por norma, são livros que tenho, mas que não li, embora nem sempre isso seja verdade. Outros compro-os por uma decisão genuína, sabendo que os tinha e, por norma, já os lera, mas também aqui isso nem sempre é verdade. Não se trata, como no primeiro caso, dos mesmos livros. O melhor é exemplificar. Ontem, apoiei, numa editora que trabalha com apoio dos leitores, a edição de A Coroa, o primeiro volume da trilogia A Saga de Kristin Lavransdatter, da norueguesa Sigrid Undset. Ora, eu tenho a trilogia. Tenho-a numa velha edição da Portugália. O que tem a nova edição de diferente? Uma coisa simples: a nova é uma tradução a partir do norueguês, feita por João Reis. A outra é uma versão de Maria Franco, provavelmente feita a partir da tradução francesa ou inglesa. Não se trata, na realidade, do mesmo livro. Outro caso é o da minha compra de hoje. Deparei-me com uma edição que desconhecia de O Banquete, de Platão. Tenho uma anterior e respeitável tradução, feita a partir do grego, comprada há muito. Foi nela que li O Banquete, embora há pouco tenha descoberto que não sei onde pára. Esta nova edição, também feita a partir do grego por Maria Mafalda Viana, tem um pequeno, mas curioso, prefácio de José Pacheco Pereira. Dois motivos levaram-me à compra: o prefácio e a inclinação que tenho para apoiar – através da compra – tudo o que disponibilize a obra de Platão. Partilho a opinião do matemático e filósofo Alfred North Whitehead: toda a tradição filosófica consiste em notas de rodapé à obra de Platão. Sou um platónico, talvez não praticante. Platão era um génio. Inventou a filosofia, e fê-lo de um modo que, apesar de algumas tentativas sem especial repercussão, nunca mais ninguém conseguiu seguir: a encarnação dos problemas filosóficos em diálogos, onde várias posições se confrontam. Não se trata de tratados ou ensaios, mas de conversas onde pessoas diferentes trocam palavras e pontos de vista. Há uma encenação que, depois, desapareceu, salvo, como disse, uma ou outra tentativa episódica. Ora, essa encenação não é uma decoração, mas o contexto pragmático que dá sentido àquelas palavras. Perdi-me no que ia escrever. E agora que estou perdido neste louvor a Platão, já não sei o que queria escrever, nem encontro o fio de Ariadne que me leve para fora do labirinto. Talvez esteja condenado a vaguear por ele, deslumbrando-me com a possibilidade de ter encontrado uma saída para, logo depois, suportar a desilusão trazida pelo engano. Se me for permitido dar um conselho, diria que o melhor é evitar labirintos.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2025
Da falsidade e da falsificação
Benjamin Constant criticou a ambição de Saint-Simon de levar o mundo de um estado transitório para um estado definitivo. Constant não se esqueceu de sublinhar que nada é definitivo sobre a terra. Uma evidência, mas, como todos os cultores de evidências, esqueceu-se de que o homem é uma máquina desenhada para, em certas ocasiões, desconfiar das evidências, mesmo que não sejam falsas evidências, e de se inclinar repetidamente para aquilo que nega as evidências e a própria factualidade. Saint-Simon era um membro dessa confraria maquinal que preferia a negação da evidência à própria evidência. Seria melhor sonhar um mundo definitivo do que contentar-se com a contínua transitoriedade de tudo. Essas ilusões ou fantasias não são erradicáveis da nossa espécie. A cada momento, aceitamos como verdadeiro o que é falso. Não por odiarmos a verdade, mas porque a falsidade – vinda em forma de ilusão, fantasia, devaneio, utopia ou mera mentira factual – nos faz falta. Precisamos de nos auto-iludir, para além de iludir os outros. Caso se aceite o evolucionismo darwiniano – e este narrador aceita-o –, teremos de nos perguntar por que razão o longo processo evolutivo pelo qual tem passado a nossa espécie não eliminou a propensão da humanidade para a falsificação. Ora, a resposta talvez seja simples: porque essa inclinação é uma vantagem competitiva da espécie no processo de adaptação ao meio. Com isto, não se afirma que este narrador despreza a verdade e a troca pela mentira. Diz uma coisa mais simples: a humanidade precisa de ambas e, provavelmente, sem qualquer delas, sucumbiria e entraria no extenso rol das espécies desaparecidas. Erradicar o falso é uma empresa tão inútil como erradicar o verdadeiro. O que será preciso é aprender a lidar com ambos e perceber qual é o papel da falsificação na vida dos homens. De há uns anos a esta parte, no espaço público, tem-se observado uma enorme batalha contra as denominadas fake news. A batalha parece perdida, pois não se percebe por que razão são produzidas – embora os combatentes das fake news estejam convencidíssimos de que conhecem muito bem essa razão – e percebe-se ainda menos por que motivo são não apenas acolhidas com agrado, mas intensamente desejadas. Se se quer lidar com as fake news, então há que perguntar pelas razões que levam as pessoas a revoltar-se contra a realidade e contra a verdade que descreve essa realidade. Por isso, muitas das afirmações que se fazem nestes textos são meramente ficcionais – um eufemismo para adoçar o facto de serem puras falsidades.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
Inquietações
Os dias andam inquietos, e a sua inquietação contamina o mundo, as nações, cada um dos homens que habitam o planeta. Alguém dirá que os dias são indiferentes tanto à inquietação como à quietude: são apenas a emanação de um certo arranjo cósmico. A minha observação não passa de uma antropomorfização sem nexo. Aquiesço, apenas porque me falta a vontade de começar essa conversa que não foi iniciada, com um interlocutor que não existe. E continuo a pensar, enquanto escrevo e a noite toma conta da cidade, que os dias andam inquietos, e a sua inquietação atinge a vida dos homens. A inquietação dos dias é uma manifestação de uma inquietação cósmica. Na verdade, é o universo que está a passar por uma fase de grande desassossego, de uma turbulência cuja causa desconhecemos e cujo sentido nos escapa. Isto tem uma vantagem para o que se passa no mundo dos homens: dá uma raiz cósmica à perturbação por que passa. Sim, os homens andam perturbados: uns, sonâmbulos; outros, hiperactivos, todos sem saber o lugar que é o seu. Contudo, mais do que actores desse alvoroço em que vivem, são pacientes que sofrem o poder de forças que não controlam. Esta é a minha contribuição – por certo, estimável – para a compreensão daquilo que se passa neste planeta. Amanhã, caso me ocorra, poderei dar outra, muito diferente desta, se não mesmo contraditória. Sempre se pode afirmar que o próprio narrador é vítima das perturbações cósmicas de que fala. Talvez, mas o mais certo é que este seja um exercício do raciocínio abdutivo, cuja finalidade é criar hipóteses explicativas de fenómenos inesperados ou surpreendentes. E, neste mundo, não nos faltam fenómenos inesperados e surpreendentes. Quanto à qualidade da hipótese proposta hoje, não me cabe ser juiz em causa própria, ou mesmo em causa imprópria.
domingo, 23 de fevereiro de 2025
Uma triste história
Um dia de Primavera, ainda tocado por sombras fugazes, vestígios de um Inverno que está longe do fim. Ou talvez tenha acabado e ainda não o saiba. Nem ele, nem nós, pois a sabedoria das coisas é esquiva, tão esquiva que temos de construir armadilhas, cada vez mais ardilosas, para a capturar. Os resultados dessa astúcia, porém, são sempre magros e nunca enchem o coração daqueles que passam a vida a urdir truques e alçapões para capturar, desse saber, um sinal aqui, um indício acolá. Reparei agora que já usei dois verbos com a terminação em -ir, construir e urdir. Fico a meditar no feito e sou levado, por homúnculo insensato que habita no desvão da minha mente, a investigar a proporção de verbos segundo a desinência infinitiva – espero, ao meter a foice em seara alheia, não estar a dizer disparates; embora isso seja irrelevante, pois seria apenas mais um – e confirmo aquilo que sabia. Os verbos terminados em -ar – no infinitivo, claro – constituem uma larga maioria, talvez uma maioria absoluta que ronda os 70%. Somos um povo que dá muita importância ao ar, de tal modo que parte substancial dos nossos verbos tem uma terminação aérea, como amar, lavar, corar, matar, falar. Isto significa que quase todas as nossas acções são feitas, imagino eu, com a cabeça no ar. Se olhar para a percentagem de verbos com terminação em -ir, entre 5 e 10%, descobrimos que não gostamos muito de ir. Dito de outra maneira, a tendência é não ir a lado nenhum. Mas de ficar, de estar, por vezes de permanecer. Ir só mesmo quando tem de ser e se o tem de ser tiver muita força. Há um número considerável de verbos terminados em -er, entre 20% e 25%, como correr, mas jamais se aproximarão dos terminados em -ar. Quem quererá correr, se a sua ânsia é estar, ficar ou parar? Os terminados em -or, todos derivados de pôr, são fruto de uma história exemplar. Tendo a origem no latino ponere, em vez de optar por uma desinência infinitiva em -er, acabou como todos sabemos. Pensou: «Nasci poner, mas não morrerei assim.» Foi ao registo civil e mudou o nome para pôr. Disse ao funcionário que queria um acento circunflexo, pois isso era uma marca heráldica. Mais triste do que a desinência -or, é a em -ur. Nem um verbo português termina em -ur. Uma incompreensível acção discriminatória, a qual tem a sua raiz na ordenação das vogais portuguesas. Isto prova que a distribuição dos verbos pelas respectivas desinências infinitivas foi feita por Epimeteu, esse mesmo. Aquele que ficou responsável pela distribuição das qualidades aos seres vivos e as gastou todas antes de chegar ao homem. O mesmo se passou com os nossos verbos. Epimeteu, que não era particularmente inteligente, não soube dosear o seu entusiasmo distributivo e quase gastou os verbos na primeira desinência em -ar. Quando chegou à -or, foi salvo pela jactância de poner. A terminação em -ur teve um destino mais terrível que o da espécie humana. Nem um deus a salvou.
sábado, 22 de fevereiro de 2025
Escrita de pedra
Numa entrevista concedida, em 28 de Outubro de 1964, a Günter Gaus, Hannah Arendt diz algo que há muito experimentei: Escrever é uma boa maneira de procurar a compreensão, faz, pois, parte do processo de compreender… Certas coisas encontram aí a sua formulação. Cada vez que se escreve, é como estar diante de uma encruzilhada e escolher um caminho. Essa escolha de um caminho é, ao mesmo tempo, realizar a compreensão de que aquele é o caminho e abandonar a nebulosa em que se vivia perante as difusas possibilidades em aberto. Toda a compreensão é a eliminação de uma nuvem de explicações e a eleição daquela que se revelou através do acto de escrever. Temos assistido, ao longo da história da nossa espécie, com uma ou outra inflexão, à imaterialização progressiva do registo da escrita. Inicialmente, na pedra, depois na argila, em tábuas de madeira revestidas a cera, em ossos e conchas, em papiro, em pergaminho, em papel e, agora, em ambientes virtuais. Contudo, a natureza pétrea da escrita, simbolizada na gravação original em pedra, manteve-se, pois é da sua própria essência ser de pedra. Ao escrever-se um texto, este solidifica-se e consolida a compreensão daquele que escreve, que só então se torna firme. Num diálogo denominado Fedro, Platão, que tanto escreveu, dirige uma crítica severa à escrita. Enfraqueceria a memória, não passaria de uma aparência de conhecimento e, aquela que me interessa, o carácter fixo e inalterável da escrita. A sua natureza pétrea. Platão lamenta que o discurso escrito não responda aos interlocutores, limitando-se a repetir incessantemente as mesmas palavras. Ora, Platão parece ignorar a ductilidade do que é pétreo. Cada nova leitura de um texto, que materialmente se manteve igual, traz-lhe um novo sentido e, caso o interroguemos de cada vez que o lemos, obteremos sempre respostas diferentes. Isto traz, em aparência, um problema à formulação de Hannah Arendt. Ao escrever, fixa-se uma certa compreensão daquilo que se está a pensar, mas, se o autor relê o que escreve, essa compreensão sofre um questionamento, que põe em causa a solidez do que está escrito. É verdade, mas a consequência não é abandonar a escrita, e sim intensificá-la, num processo de reescrita que, idealmente, poderia ser infinito, caso o autor não fosse mortal. Um crente dirá que o mundo está sempre a mudar porque Deus o reescreve infinitamente. Alguém contestará que o processo põe em causa a omnisciência divina, que Deus sabe tudo instantaneamente e, nessa instantaneidade, o escreve. Ainda que se aceite a definição teísta de Deus, tal não invalida o que foi afirmado. A escrita infinita da divindade é ao mesmo tempo instantânea. Para a divindade é instantânea, para nós, é infinita, pois o instantâneo divino é, para um ser humano, um processo sem fim. Os sábados estão a fazer-me mal. Estes textos estão cada vez maiores e mais abstrusos. Talvez seja ainda o efeito do almoço.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025
O sono e os ouriços
De tão ocupado, nem dei pela passagem desta sexta-feira. Melhor: quando dei por ela, já a luz do dia se tinha apagado e a noite tomara conta de tudo, inclusive de mim. Talvez tenha sido por isso que adormeci há pouco. Isso prova que a noite é um soporífero. Talvez estes textos sejam como a noite: escuros e soporíferos. Começo a escrever e o dia vai-se apagando à minha volta, até que, ainda antes de acabar, tudo fica negro — uma noite de lua nova. Aí, o que resta a quem lê? Adormecer. Isso deu-me uma ideia que nunca me ocorrera, mas talvez não seja muito dotado de imaginação ou de inteligência. Quando estou com aquelas insónias desagradáveis e me ponho a ler coisas que os outros escreveram, o sono parece afastar-se, mais e mais. Ora, sensato seria pôr-me a escrever, até que o efeito soporífero me trouxesse o sono desejado e tudo se apaziguasse entre mim e mim ao abrir os olhos e a manhã clara já ter derrotado, com a lança da aurora, uma noite débil que deixara o escudo no canto do quarto. Quem ler este texto — já é a segunda referência a um possível leitor — pensará que estou sem assunto. Isso não é verdade. Por exemplo, podia comentar, e com proveito, um excerto de Isaiah Berlin. Diz ele a Paul Simon: Creio que acredita verdadeiramente que prefiro raposas a ouriços, mas não é assim. Não existe nenhum poeta maior do que Dante, nenhum filósofo maior do que Platão, nenhum romancista mais profundo do que Dostoiévski. Ainda, claro. Estes, apesar de maiores, ou por o serem, são todos ouriços. A ideia parte de um verso de Arquíloco: A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa. Poderia discordar, e com algumas razões dignas de serem atendidas, que Platão fosse um ouriço. Mesmo Dostoiévski poderia ser muito menos ouriço do que pensa Berlin. Concederia, sem discussão, que Dante é um ouriço. Ora, isso conduziria o texto para a elaboração de taxonomias, o que, na minha mão, poderia ter um efeito de tal modo soporífero que poderia adormecer durante três dias e três noites. Isso ultrapassaria a justa medida, coisa que entraria em choque com a minha virtude, e eu vejo-me como um narrador virtuoso, embora não um virtuose da narração. Acabei de bocejar.
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025
Teoria das cordas
Hoje, acordei, depois de uma noite mal dormida, fascinado com a teoria das cordas. Essa mesma, a que alimenta a hipótese de unificar a teoria da relatividade, que se debruça sobre o funcionamento macro da natureza, e a mecânica quântica, que fornece conhecimento sobre coisas muito pequenas, ou seja, partículas subatómicas. Há, entre estas duas teorias, um conflito que ultrapassa a rivalidade futebolística daqueles clubes que habitam na segunda circular da capital deste país. A teoria das cordas fornece uma esperança de unificação, o que significaria que harmonizaria leões e águias em alegre convívio, num fim-de-semana passado no Porto. Apesar de a perspectiva de criar harmonia nos seduzir a todos, não foi isso que me causou júbilo. O fascínio reside na possibilidade de o velho Pitágoras ter razão: todo o cosmos ressoa como uma grande sinfonia mahleriana; a música das esferas celestes. Ora, a teoria das cordas propõe que tudo no universo é composto por pequeníssimas cordas a vibrar. Conforme a vibração, as cordas formam electrões ou quarks, os quais compõem protões e neutrões. Toda a realidade é composta por música, e cada um de nós é um ser musical. Consta que há um pequeno problema com a teoria. Exige que a realidade tenha pelo menos dez dimensões e não as prosaicas quatro a que estamos habituados. Os físicos desconfiam de tanta dimensão, mas um ignorante como este narrador sabe mais de física que os físicos, pois é um narrador pós-moderno. Ora, a pós-modernidade é aquela época da humanidade em que os ignorantes e os idiotas sabem muito mais do que aqueles que dedicam uma vida a estudar a realidade. Estou em casa. Deixo o meu contributo para a explicação da teoria das cordas e para a unificação da teoria da relatividade com a mecânica quântica — coisas de que nada sei, mas que, nos tempos que correm, é uma vantagem competitiva. Para a teoria das cordas funcionar, são precisas exactamente onze dimensões. Não mais, não menos. Eis o meu primeiro contributo para a evolução da física. O segundo é a identificação das 11 dimensões: as quatro triviais onde existimos e as dimensões musicais. Temos uma dimensão do dó, outra do ré, outra do mi, e assim sucessivamente. E é por serem estas as autênticas dimensões da realidade que a teoria das cordas faz todo o sentido. Sob o tempo, o comprimento, a largura e a altura, estão, como se fossem a raiz do ser, as sete dimensões musicais, das quais as notas são uma emanação à grande escala e uma espécie de reminiscência platónica no mundo. Por hoje chega de contributos para o progresso da humanidade.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
Sapateiros e príncipes
Na página 133 da última edição portuguesa de As Palavras, Sartre escreve: Em Sainte-Anne, um doente gritava da sua cama: «Sou um príncipe! Prendam o Grão-Duque!» Aproximavam-se, diziam-lhe ao ouvido: «Assoa-te!», e ele assoava-se; perguntavam-lhe: «Qual é o teu trabalho?», e ele respondia baixinho: «Sapateiro», e recomeçava a gritar. Sartre acrescenta: Imagino que todos sejamos parecidos com esse homem. Parece-me, porém, que o filósofo francês faz uma generalização precipitada. É possível que existam muitos que, sendo sapateiros, se proclamem príncipes. Será menos vulgar um príncipe gritar que é sapateiro, mas é possível que exista algum. Todavia, há alguns – não sei se muitos ou poucos, nunca tenho à mão as estatísticas de que preciso – que não se sentem nem sapateiros nem príncipes, seja no sentido corrente das palavras, seja no figurado. Este narrador não se sente o príncipe dos narradores, tão-pouco um sapateiro da narração. Aliás, nem se sente narrador. Não se sente seja o que for. E este não se sentir isto ou aquilo talvez seja muito mais comum do que se sentir sapateiro e príncipe, ou apenas uma das alternativas. A experiência de se sentir nada aterroriza as pessoas e, como consequência desse terror, elas perdem a cabeça e começam a sentir-se sapateiros ou príncipes, ou os dois ao mesmo tempo, caso estejam mesmo muito aterrorizadas. É um processo que, ao ser desencadeado, nunca mais pára. É em Isaiah Berlin que encontro uma explicação para esse afogamento numa identidade social. Diz ele – hoje estou em maré de citações – numa obra com o estranho título O Ouriço e a Raposa: Tanto Tolstói como Maistre pensam naquilo que acontece como uma rede espessa, opaca, inextricavelmente complexa de ocorrências, objectos e características relacionados e divididos por ligações literalmente inumeráveis e inidentificáveis – e também brechas e descontinuidades súbitas, visíveis e invisíveis. Ora, esse processo, que leva alguém do nada que sente até ao sentir-se sapateiro ou príncipe, é também ele uma rede espessa, opaca. A pessoa sente-se levada nessa torrente imparável e, um dia, ao acordar, vê-se sapateiro ou príncipe. No caso deste narrador, continua a sentir-se um nada – um zé-ninguém – talvez porque ainda não tenha acordado. Devia chamar a este texto Nota Biográfica, mas não chamo. Um narrador não tem biografia, isto é, não tem bio e não tem grafia.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
O florir das orquídeas
No friso das orquídeas, há duas já floridas. Ambas brancas, o que, estatisticamente, não era uma possibilidade forte, pois constituem uma clara minoria entre o rebanho de orquídeas que são pastoreadas por aqui. É um pastoreio sem pastor ou pastora, embora com uma certa transumância, pois, de tempos a tempos, são transportadas para uma banheira, onde são regadas segundo uma metodologia que, confesso, desconheço, mas que oiço dizer ser muito adequada. A esse ritual transumante chamo a procissão das orquídeas, na qual não levo andor nem, tão-pouco, participo. Dito de outra maneira, sou apenas um contemplador e não um cuidador. A surpresa floral não se combinou com uma surpresa no estado do tempo. Se esperava que hoje tivesse um dia de um cinzento depressivo, a expectativa confirmou-se. O dia – logo pela manhã – parece ter-se arrependido de ter nascido e ostenta uma saudade da noite que chega a ser insuportável. Na avenida, as pessoas deslizam em passo incerto: avós em busca de netos na escola primária, alguém apressado para fazer um negócio numa das lojas que ali há, outros que esperam encontrar, num dos cafés, alguém com quem possam trocar umas palavras, para que o dia não seja um poço de solidão e um puzzle sem sentido. Eu sento-me à secretária como se me sentasse na borda de um poço, para colher tangerinas de uma tangerineira que havia nessa casa onde nasci, dizem-me, e cujos habitantes, excepto eu, estão todos mortos. Já não sentem o prazer do florir das orquídeas, nem saem de casa para ir ao café, levando-me pela mão, nem me chamam pelo nome. Talvez o tenham esquecido ou eu tenha trocado de nome e já não me lembre de como, naqueles dias, me chamava. São coisas que acontecem. Não falta por aí quem se tenha esquecido do nome e ostente outro que inventou para esconder a amnésia.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
Falar com os pássaros
Os pássaros, meus vizinhos, voltaram da sua longa viagem. Retornaram as longas conversas e a minha tentativa de compreender a linguagem das aves. Tenho-me esforçado, mas, confesso, os resultados obtidos até hoje são nulos. Existem várias hipóteses. A primeira, de natureza pessoal, diz que sou bastante incompetente na compreensão de linguagens estranhas. A segunda, de natureza colectiva, afirma que os seres humanos são incapazes de compreender linguagens fora da sua espécie. A terceira, de natureza ontológica, assevera que os sons emitidos pelas aves não representam uma linguagem. Caso seja verdade, isso deixa-me desolado. Um mundo em que só a nossa espécie seja detentora de linguagem é pobre, muito pobre. Um mundo desencantado. Não bastava já aquela ideia verrumante de Max Weber, a de desencantamento do mundo, para nos deixar consternados, quanto mais ter de viver num mundo onde ninguém, além de nós, fala. Se isso for verdade, há uma explicação para o facto. Isso dever-se-á a uma lei da compensação. Existe uma espécie que fala tanto, tanto, tanto, que se apoderou de todas as linguagens disponíveis, não restando para as outras qualquer fala possível. Emitem sons, mas não trocam informação estruturada. A minha esperança, porém, é que essa possibilidade seja falsa e que, um dia, cada espécie encontre, nos homens, o seu Champollion, que há de permitir que os homens falem com elas, estudem os seus vocábulos, a sua sintaxe e a sua semântica, o modo como o seu discurso alcança a natureza das coisas.
domingo, 16 de fevereiro de 2025
A Grande Pragmática
Ontem, como parte de um ritual, passei pela livraria Ler, em Campo de Ourique, casa a que volto sempre que venho a Lisboa e tenho algum tempo disponível. Imagino que seja uma faceta levemente romântica que me inclina, no caso dos livros, para o comércio local. Pelo menos, em parte. É agradável saber a quem se compra os livros. E a verdade é que, embora não se note pelas aparências, um mesmo livro comprado numa pequena e séria livraria não tem o mesmo conteúdo do que se for comprado numa grande cadeia multinacional ou mesmo nacional. As letras e as palavras parecem as mesmas, mas não são. Significam de maneira diferente, pois a significação não é apenas um assunto de semântica, mas também de pragmática. A pragmática trata do contexto onde os actos de linguagem ocorrem. Preocupa-se com o modo como a significação emerge do uso da fala em situações concretas, com os seus contextos, intenções, normas sociais, inferências, etc. Esta é, porém, a pequena pragmática. A grande pragmática, que acabei de criar, inclui os discursos escritos, a forma como são trocados e os lugares onde os leitores não apenas os lêem, mas também onde os adquirem. Toda essa constelação de lugares influencia a significação das palavras que estão impressas. Daqui posso avançar para uma nova – e criativa, embora é possível que alguém antes de mim a tivesse criado – tese: qualquer livro – por exemplo, o romance Refúgio no Tempo, de Gueorgui Gospodinov, que comprei ontem – tem, pelo menos, tantas significações quantos os exemplares postos à venda. Disse pelo menos porque se alguém compra um livro e, depois de o ler, o vende, a nova transacção comercial implica a criação de um novo sentido, pois as condições grande pragmáticas, digamos assim, são diferentes. Esta descoberta serenou-me o espírito. Até ao dia de hoje, pensava que, quando comprava uma obra pela segunda vez, isso se devia a um problemático défice da minha memória — antecâmara, sabe-se lá, de que doença do foro neurológico. Hoje descobri que nunca comprei a mesma obra duas vezes. Apesar de as aparências indicarem que são a mesma, a verdade é que os contextos grande pragmáticos são diferentes. Logo, as obras são diferentes. Não apenas acrescentei mais uma criação à minha gesta e ao progresso da ciência, como também encontrei uma explicação sólida para aquilo que eu pensava ser uma fraqueza — uma patologia — da memória pessoal. O domingo está ganho.
sábado, 15 de fevereiro de 2025
Saudades
Imagino que tudo o que se está a passar no mundo não seja mais do que a manifestação de uma saudade que os próprios saudosos não sabem de quê. O estado das coisas está perturbado e é perturbante, disse-me, numa longa chamada de telemóvel, o meu amigo Lodovico Settembrini, o padre Lodo, para a imensa roda de amigos. Está um tempo óptimo para os profetas, respondi-lhe. Ele riu-se, mas acrescentou que o problema dos profetas não é falharem nas profecias, mas de estas serem de tal modo equívocas, que conseguem, ao mesmo tempo, predizer tudo e não predizer nada. Muito me conta, exclamei, mas, continuei, de que andam as pessoas tão saudosas? De forma resumida, respondeu o meu amigo, podemos dizer que estão saudosas do tempo dos mitos. Esta saudade é o reverso do cansaço com três coisas. Quais? Não sei se existe uma ordenação nesse cansaço, respondeu. Estão cansados das explicações científicas. Elas explicam muito, mas as pessoas não entendem uma linha dessas explicações, mesmo que tenham formação superior. Estão cansadas de serem livres, de poderem orientar a vida conforme queiram, usando as suas faculdades e o seu esforço. Por fim, estão exaustas da responsabilidade. Nas nossas sociedades, somos responsáveis pelo que fazemos, mas, acima de tudo, pelo que somos. Este cansaço é o outro lado da saudade do tempo dos mitos. As explicações eram simples e claras, a esfera da liberdade, restrita. A responsabilidade limitada às acções e nunca pelo que se era, pois estava decidido ao nascer. Fiz um longo silêncio, depois perguntei: e chegou a essas conclusões pela observação do mundo ou pela escuta que faz dos crentes no segredo do confessionário. Meu caro amigo, o segredo do confessionário é pouco secreto, pois o que as pessoas confessam não é diferente daquilo que se observa do mundo. Portanto, pode escolher a origem da minha informação. As fontes são maçadoramente repetitivas.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
Desconcerto na casa da consciência
O tempo galopa como um zorro enraivecido. Que abertura dramática, convenhamos. O facto, porém, é que o ano ainda mal começou, e já chegámos a meio do segundo mês. Mais quinze dias – e quinze dias não são duas semanas – e entrar-se-á em Março. Desloquei-me à capital e tive de almoçar segundo o desejo das minhas netas, que acharam que deveria ser pizza para toda a gente, ainda franzi o sobrolho, mas ninguém deu por isso. A verdade, caso haja uma verdade no assunto, é que nem desgosto por aí além, mas acho sempre que é coisa dispensável. Hoje também acharia, não fora o caso da ideia ter partido de onde partiu. Ao cair da tarde, deveria ir ver o treino de râguebi do mais novo, mas um compromisso inadiável caiu no mesmo horário. Este Fevereiro está sarapintado de Primavera, para a qual falta ainda mais de um mês. Voltemos à primeira frase, a de tonalidade dramática que inicia este texto. Está cheia de equívocos. Quem galopa são os cavalos, não o tempo e muito menos um zorro. Também num célebre filme de Martin Scorsese, no título, enraivecido é atributo de touro e não do macho da zorra. Fiz de um pobre raposo o centro de toda a confusão que me vai pela cabeça. Vejo-o como um cavalo, vejo-o como um touro, mas não o vejo como aquilo que ele é, um raposo, que terá a sua raposa e muito raposinhos e raposinhas. Uma das hipóteses aventadas por um certo homúnculo que habita no meu cérebro é que a confusão nasceu do almoço, da condescendência com que encarei a sugestão. Ora, essa criatura, que tem a pretensão de ser a voz da minha consciência, faria melhor em estar calada, antes que eu lhe dê uma ordem de despejo por ocupação ilegal de moradia de que não é legítimo proprietário ou mesmo locatário. Sim, a minha consciência é um lar, mas quando a adquiri não vi no contrato que assinei que esse lar teria um porta-voz. Já protestei perante o fornecedor de consciências, mas ele disse que era uma gentileza – vá lá, não disse que era uma atençãozinha – da administração. Vendem a consciência e oferecem um homúnculo que é o porta-voz. Respondi que dispensava a gentileza, que ficassem com o homúnculo. Nada feito, uma oferta é uma oferta. Perante a minha resistência, mudou de estratégia e recorreu à conhecida falácia do argumentum ad misericordiam: eu que ficasse com o maldito palrador, que não o devolvesse, pois a administração ainda o despedia, ao vendedor, não ao homúnculo, e que tinha mulher desempregada e filhos em idade escolar. Um drama. Condoí-me e fiquei com um homúnculo palrador dentro da consciência e para o desalojar só em tribunal, o que deverá demorar uns vinte anos. Um dia, talvez de Fevereiro, ainda vendo a consciência, desde que não confunda cavalos e touros com zorros ou alguém se lembre de almoçar pizza, não é que desgoste, mas...
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
O dorso de Zeus e a pata do urso
Apesar de estar proibido pelo autor de falar de política, não estou proibido de pensar sobre ela. "Livre pensar é só pensar", como escrevia o humorista brasileiro Millôr Fernandes. E eu, apesar de narrador, penso muito, não sobre política, mas sobre geopolítica. Dá um ar mais sofisticado. A política tornou-se uma coisa paroquial; a geopolítica traz com ela o véu diáfano das coisas cosmopolitas. Os meus pensamentos, apesar de livres, são negros, cada vez mais negros. Houve um momento em que este narrador pensou viver no melhor mundo que estava disponível para viver, um mundo que tem o nome de uma princesa fenícia e que Zeus, disfarçado de touro, decidiu raptar. Hoje, esse mundo, com o doce nome da princesa, ainda é o melhor dos mundos existentes, mas está a ser vendido, literalmente e sem pudor, perante a apatia dos seus sonâmbulos habitantes — não ao desejo taurino de Zeus, mas à pata do urso, à máscara de Hades, que se prepara para destruir o jardim. Talvez tenha dormido mal, talvez as notícias me estejam a perturbar a digestão, mas não consigo deixar de pensar nos meus netos e nos netos daqueles que vivem no melhor dos mundos — e na possibilidade de eles não perdoarem aos avós e aos pais o mundo que pode vir a ser o deles. O melhor será tomar um comprimido para dormir ou abdicar do livre pensar, apesar de este ser só pensar. Está a chegar o crepúsculo. Vou fechar as persianas. Talvez a noite não entre.