Um dia de Primavera, ainda tocado por sombras fugazes, vestígios de um Inverno que está longe do fim. Ou talvez tenha acabado e ainda não o saiba. Nem ele, nem nós, pois a sabedoria das coisas é esquiva, tão esquiva que temos de construir armadilhas, cada vez mais ardilosas, para a capturar. Os resultados dessa astúcia, porém, são sempre magros e nunca enchem o coração daqueles que passam a vida a urdir truques e alçapões para capturar, desse saber, um sinal aqui, um indício acolá. Reparei agora que já usei dois verbos com a terminação em -ir, construir e urdir. Fico a meditar no feito e sou levado, por homúnculo insensato que habita no desvão da minha mente, a investigar a proporção de verbos segundo a desinência infinitiva – espero, ao meter a foice em seara alheia, não estar a dizer disparates; embora isso seja irrelevante, pois seria apenas mais um – e confirmo aquilo que sabia. Os verbos terminados em -ar – no infinitivo, claro – constituem uma larga maioria, talvez uma maioria absoluta que ronda os 70%. Somos um povo que dá muita importância ao ar, de tal modo que parte substancial dos nossos verbos tem uma terminação aérea, como amar, lavar, corar, matar, falar. Isto significa que quase todas as nossas acções são feitas, imagino eu, com a cabeça no ar. Se olhar para a percentagem de verbos com terminação em -ir, entre 5 e 10%, descobrimos que não gostamos muito de ir. Dito de outra maneira, a tendência é não ir a lado nenhum. Mas de ficar, de estar, por vezes de permanecer. Ir só mesmo quando tem de ser e se o tem de ser tiver muita força. Há um número considerável de verbos terminados em -er, entre 20% e 25%, como correr, mas jamais se aproximarão dos terminados em -ar. Quem quererá correr, se a sua ânsia é estar, ficar ou parar? Os terminados em -or, todos derivados de pôr, são fruto de uma história exemplar. Tendo a origem no latino ponere, em vez de optar por uma desinência infinitiva em -er, acabou como todos sabemos. Pensou: «Nasci poner, mas não morrerei assim.» Foi ao registo civil e mudou o nome para pôr. Disse ao funcionário que queria um acento circunflexo, pois isso era uma marca heráldica. Mais triste do que a desinência -or, é a em -ur. Nem um verbo português termina em -ur. Uma incompreensível acção discriminatória, a qual tem a sua raiz na ordenação das vogais portuguesas. Isto prova que a distribuição dos verbos pelas respectivas desinências infinitivas foi feita por Epimeteu, esse mesmo. Aquele que ficou responsável pela distribuição das qualidades aos seres vivos e as gastou todas antes de chegar ao homem. O mesmo se passou com os nossos verbos. Epimeteu, que não era particularmente inteligente, não soube dosear o seu entusiasmo distributivo e quase gastou os verbos na primeira desinência em -ar. Quando chegou à -or, foi salvo pela jactância de poner. A terminação em -ur teve um destino mais terrível que o da espécie humana. Nem um deus a salvou.
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