quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Sapateiros e príncipes

Na página 133 da última edição portuguesa de As Palavras, Sartre escreve: Em Sainte-Anne, um doente gritava da sua cama: «Sou um príncipe! Prendam o Grão-Duque!» Aproximavam-se, diziam-lhe ao ouvido: «Assoa-te!», e ele assoava-se; perguntavam-lhe: «Qual é o teu trabalho?», e ele respondia baixinho: «Sapateiro», e recomeçava a gritar. Sartre acrescenta: Imagino que todos sejamos parecidos com esse homem. Parece-me, porém, que o filósofo francês faz uma generalização precipitada. É possível que existam muitos que, sendo sapateiros, se proclamem príncipes. Será menos vulgar um príncipe gritar que é sapateiro, mas é possível que exista algum. Todavia, há alguns – não sei se muitos ou poucos, nunca tenho à mão as estatísticas de que preciso – que não se sentem nem sapateiros nem príncipes, seja no sentido corrente das palavras, seja no figurado. Este narrador não se sente o príncipe dos narradores, tão-pouco um sapateiro da narração. Aliás, nem se sente narrador. Não se sente seja o que for. E este não se sentir isto ou aquilo talvez seja muito mais comum do que se sentir sapateiro e príncipe, ou apenas uma das alternativas. A experiência de se sentir nada aterroriza as pessoas e, como consequência desse terror, elas perdem a cabeça e começam a sentir-se sapateiros ou príncipes, ou os dois ao mesmo tempo, caso estejam mesmo muito aterrorizadas. É um processo que, ao ser desencadeado, nunca mais pára. É em Isaiah Berlin que encontro uma explicação para esse afogamento numa identidade social. Diz ele – hoje estou em maré de citações – numa obra com o estranho título O Ouriço e a Raposa: Tanto Tolstói como Maistre pensam naquilo que acontece como uma rede espessa, opaca, inextricavelmente complexa de ocorrências, objectos e características relacionados e divididos por ligações literalmente inumeráveis e inidentificáveis – e também brechas e descontinuidades súbitas, visíveis e invisíveis. Ora, esse processo, que leva alguém do nada que sente até ao sentir-se sapateiro ou príncipe, é também ele uma rede espessa, opaca. A pessoa sente-se levada nessa torrente imparável e, um dia, ao acordar, vê-se sapateiro ou príncipe. No caso deste narrador, continua a sentir-se um nada – um zé-ninguém – talvez porque ainda não tenha acordado. Devia chamar a este texto Nota Biográfica, mas não chamo. Um narrador não tem biografia, isto é, não tem bio e não tem grafia.

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