Numa entrevista concedida, em 28 de Outubro de 1964, a Günter Gaus, Hannah Arendt diz algo que há muito experimentei: Escrever é uma boa maneira de procurar a compreensão, faz, pois, parte do processo de compreender… Certas coisas encontram aí a sua formulação. Cada vez que se escreve, é como estar diante de uma encruzilhada e escolher um caminho. Essa escolha de um caminho é, ao mesmo tempo, realizar a compreensão de que aquele é o caminho e abandonar a nebulosa em que se vivia perante as difusas possibilidades em aberto. Toda a compreensão é a eliminação de uma nuvem de explicações e a eleição daquela que se revelou através do acto de escrever. Temos assistido, ao longo da história da nossa espécie, com uma ou outra inflexão, à imaterialização progressiva do registo da escrita. Inicialmente, na pedra, depois na argila, em tábuas de madeira revestidas a cera, em ossos e conchas, em papiro, em pergaminho, em papel e, agora, em ambientes virtuais. Contudo, a natureza pétrea da escrita, simbolizada na gravação original em pedra, manteve-se, pois é da sua própria essência ser de pedra. Ao escrever-se um texto, este solidifica-se e consolida a compreensão daquele que escreve, que só então se torna firme. Num diálogo denominado Fedro, Platão, que tanto escreveu, dirige uma crítica severa à escrita. Enfraqueceria a memória, não passaria de uma aparência de conhecimento e, aquela que me interessa, o carácter fixo e inalterável da escrita. A sua natureza pétrea. Platão lamenta que o discurso escrito não responda aos interlocutores, limitando-se a repetir incessantemente as mesmas palavras. Ora, Platão parece ignorar a ductilidade do que é pétreo. Cada nova leitura de um texto, que materialmente se manteve igual, traz-lhe um novo sentido e, caso o interroguemos de cada vez que o lemos, obteremos sempre respostas diferentes. Isto traz, em aparência, um problema à formulação de Hannah Arendt. Ao escrever, fixa-se uma certa compreensão daquilo que se está a pensar, mas, se o autor relê o que escreve, essa compreensão sofre um questionamento, que põe em causa a solidez do que está escrito. É verdade, mas a consequência não é abandonar a escrita, e sim intensificá-la, num processo de reescrita que, idealmente, poderia ser infinito, caso o autor não fosse mortal. Um crente dirá que o mundo está sempre a mudar porque Deus o reescreve infinitamente. Alguém contestará que o processo põe em causa a omnisciência divina, que Deus sabe tudo instantaneamente e, nessa instantaneidade, o escreve. Ainda que se aceite a definição teísta de Deus, tal não invalida o que foi afirmado. A escrita infinita da divindade é ao mesmo tempo instantânea. Para a divindade é instantânea, para nós, é infinita, pois o instantâneo divino é, para um ser humano, um processo sem fim. Os sábados estão a fazer-me mal. Estes textos estão cada vez maiores e mais abstrusos. Talvez seja ainda o efeito do almoço.
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