quinta-feira, 3 de abril de 2025

Uma autobiografia

Estava eu em estado de sonolência, quando ouvi a voz do homúnculo que habita dentro de mim a declamar um imperativo: devias escrever uma autobiografia! Uma autobiografia, eu? Sim, tu – continuou o desprezível homúnculo – e desceu à explicitação: devias escrever a autobiografia de um centauro. Respondi-lhe que não era um centauro. Um riso cavernoso – riso próprio dos homúnculos desprezíveis que habitam no desvão da minha mente – ressoou nos interstícios do meu ser, caso eu tenha um ser e este possua interstícios. A quem o dizes, retrucou ele. Bem sei, falta-te tudo para seres um centauro. Falta a parte de cavalo e a parte de homem. Não passas de uma aparência destituída de essência, um vazio recoberto por uma pele opaca – mas, por isso mesmo, podes escrever a biografia de um centauro. Quem é nada pode imaginar ser qualquer coisa.» Discordei: uma contradição na lógica do homúnculo. Se sou nada – e isso posso aceitar –, então não tenho experiência de nada. Falta-me a matéria para a biografia, mesmo para inventar uma biografia falsa. Ficou furioso, soprou como um gato assanhado, mas não me amedrontei. Até que, cansado de silêncio, atacou: Tu, que escreves tanto – uma presunção dele, pensei – sem assunto, sem matéria para escrita, estás agora com pruridos? Que diferença há entre escreveres a autobiografia de um centauro e este texto? Deixei o silêncio pairar, enquanto ouvia o tamborilar da chuva no vidro da janela. São insuportáveis – ouvi –, os limites da tua imaginação e a pequenez do teu entendimento. Se escreveres a autobiografia de um centauro, podes tornar-te um. As pessoas que escrevem autobiografias – continuou – fazem-no não porque tenham sido aquilo que narram, mas para virem a sê-lo. Anuí, mas perguntei: Por que raio hei-de eu querer ser um centauro? Aí, voltou o riso cavernoso. Se fosses um centauro, ao menos eu podia deslocar-me a galope, em vez de ir ao ritmo desses teus passos trôpegos. Uma razão como qualquer outra, pensei.

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