Atravessei a cidade – embora a designação de cidade seja, na verdade, um eufemismo destinado a inflar os orgulhos paroquiais, em especial daqueles que ocupam os poderes no município, sempre muito atreitos a estas coisas, não vão ser tomados por vilões, coisa que ninguém aprecia, especialmente aqueles que o são – atravessei a cidade, dizia, com o carro a rolar muito devagar. Não havia trânsito e, nos passeios, não via ninguém. Tudo recolhido em casa, não fosse o frio enregelar-lhes os corpos e petrificar-lhes o cérebro, o que é muito desagradável, pois exige que a pessoa, para descongelar, seja posta em banho-maria – uma perda de tempo. Fui a uma aldeia, aqui perto, comprar laranjas. Um hábito para animar o comércio local. A venda à beira da estrada pode parecer arcaica, mas tudo muda. A vendedora original foi substituída pela filha e já é possível pagar por transferência através do mbway, o que pode ser uma prova de que se vive no melhor dos mundos possíveis. Por um lado, um sabor à tradição; por outro, o fruto da inovação. O resultado é ficar com as mãos limpas, pois não se mexe em dinheiro – coisa que, como se sabe, suja as mãos, embora raramente manche as consciências. Isto tem uma explicação. Científica, claro. A consciência é revestida por uma película protectora que repele a sujidade. É preciso que a película esteja muito corrompida para a consciência se sentir enodoada e corrupta. Esta é a explicação científica. Não se pense, porém, que a película é fruto de um avanço tecnológico recente – não é. É mais antiga, muito mais, do que o hábito de vender e comprar laranjas à beira do caminho. Desviei-me do assunto, mas talvez não tivesse nenhum assunto. Compradas as laranjas, mas também batatas-doces, voltei para casa. Na cidade, as ruas continuavam vazias, a tarde continuava cinzenta e fria. Os domingos de província sempre foram exaltantes.
Os domingos nos subúrbios de uma grande cidade, são ainda mais exaltantes. Dá vontade de cortar os pulsos, ao som da música do Nelson Ned.
ResponderEliminarAcredito.
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