domingo, 2 de março de 2025

Um domingo exaltante

Atravessei a cidade – embora a designação de cidade seja, na verdade, um eufemismo destinado a inflar os orgulhos paroquiais, em especial daqueles que ocupam os poderes no município, sempre muito atreitos a estas coisas, não vão ser tomados por vilões, coisa que ninguém aprecia, especialmente aqueles que o são – atravessei a cidade, dizia, com o carro a rolar muito devagar. Não havia trânsito e, nos passeios, não via ninguém. Tudo recolhido em casa, não fosse o frio enregelar-lhes os corpos e petrificar-lhes o cérebro, o que é muito desagradável, pois exige que a pessoa, para descongelar, seja posta em banho-maria – uma perda de tempo. Fui a uma aldeia, aqui perto, comprar laranjas. Um hábito para animar o comércio local. A venda à beira da estrada pode parecer arcaica, mas tudo muda. A vendedora original foi substituída pela filha e já é possível pagar por transferência através do mbway, o que pode ser uma prova de que se vive no melhor dos mundos possíveis. Por um lado, um sabor à tradição; por outro, o fruto da inovação. O resultado é ficar com as mãos limpas, pois não se mexe em dinheiro – coisa que, como se sabe, suja as mãos, embora raramente manche as consciências. Isto tem uma explicação. Científica, claro. A consciência é revestida por uma película protectora que repele a sujidade. É preciso que a película esteja muito corrompida para a consciência se sentir enodoada e corrupta. Esta é a explicação científica. Não se pense, porém, que a película é fruto de um avanço tecnológico recente – não é. É mais antiga, muito mais, do que o hábito de vender e comprar laranjas à beira do caminho. Desviei-me do assunto, mas talvez não tivesse nenhum assunto. Compradas as laranjas, mas também batatas-doces, voltei para casa. Na cidade, as ruas continuavam vazias, a tarde continuava cinzenta e fria. Os domingos de província sempre foram exaltantes.

2 comentários:

  1. Os domingos nos subúrbios de uma grande cidade, são ainda mais exaltantes. Dá vontade de cortar os pulsos, ao som da música do Nelson Ned.

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